Quem tem medo de Rita Von Hunty?

29/05/2024

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Drag queen criada pelo ator e professor Guilherme Terreri usa humor e arte para refletir sobre temas sociais e políticos 

POR LUNA D’ALAMA

Leia a edição de JUNHO/24 da Revista E na íntegra

Além de estampar características clássicas de uma drag queen, como perucas, maquiagem, acessórios e roupas coloridas, Rita von Hunty também tem postura e conteúdo típicos de uma professora. Há mais de uma década, essa figura exuberante e carismática trata, com desenvoltura, de temas como estudos culturais, literatura, política, filosofia e sociologia. Seu sotaque de tia do interior paulista (com o “t” no céu da boca) vem da ascendência italiana, sempre vibrando o “r” no início das palavras. O nome é composto por uma miscelânea de inspirações: Rita homenageia a diva do cinema hollywoodiano Rita Hayworth (1918-1987); o estilo pin-up e a preposição “von” vêm da dançarina burlesca estadunidense Dita von Teese; e “hunty” é uma gíria usada entre drag queens nos Estados Unidos para demonstrar carinho ou admiração. 

Toda essa mistura de referências ganhou, também, o seu canal no YouTube, Tempero Drag, que conta com 1,2 milhão de inscritos e, desde 2015, já publicou mais de 320 vídeos que abordam, sempre com bom humor, questões sociais, políticas, identidade de gênero, sexualidade e estereótipos LGBTQIA+, entre outras. Além disso, desde 2021, Rita assina uma coluna na revista Carta Capital, na qual explora assuntos relacionados à comunidade LGBTQIA+, corpos e modos de vida diversos.

A personagem foi criada como uma brincadeira, no Carnaval de 2013, pelo ator e professor Guilherme Terreri Lima Pereira. Natural de Ribeirão Preto (SP), Terreri é formado em artes cênicas e em língua e literatura inglesa. Sua drag queen politizada acredita – assim como ele – na educação como ferramenta emancipadora. Neste Encontros, ele dá vida e voz à sua criação mais famosa, que compartilha reflexões, inquietações e provocações sobre temas urgentes na sociedade contemporânea.

DRAG: UM DUPLO

Quando encarno uma personagem drag queen, sustento uma duplicidade. Carrego meu duplo para onde for. Então, existe uma dualidade que precisa ser mantida. Todas as pessoas que estão vivas nesta era digital também têm um duplo de alguma forma, dão corpo a esse impossível. A pessoa que sustentamos em público – ética e moralmente – convive e pode existir com outra pessoa que não fazemos questão de ser em público, ou que não podemos ser. Segundo Judith Butler [filósofa estadunidense e uma das principais pesquisadoras do feminismo e da teoria queer], se tivéssemos acesso às fantasias sexuais de todas as pessoas, não haveria esfera pública como a gente entende na democracia. Como é que nós respeitaríamos as autoridades sabendo de suas fantasias eróticas? Como estabelecer relações de impessoalidade assim? Em suma, Rita von Hunty é, indissociavelmente, o duplo que Guilherme Terreri sustenta neste espaço e tempo. Então, querendo ou não, tenho que dar cabo da Rita na minha análise, e provavelmente a Rita teria que dar cabo do Guilherme na análise dela.

ATRIBUTOS DO SUJEITO

Segundo prega o pós-estruturalismo [corrente filosófica surgida na França, nos anos 1960, que descarta a interpretação do mundo dentro de estruturas preestabelecidas e socialmente construídas], o corpo é presente da linguagem. Quem cunhou essa ideia foi o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981). E o que significa isso? Que, a cada tempo histórico, a gente aprende e desaprende formas de enunciar, de imaginar, de nomear esse pedaço de carne que carregamos conosco. A cientista política e quadrinista sueca Liv Strömquist aborda esse tema. Em seu livro A origem do mundo, a autora conta que, até o século 19, não havia nome para o órgão genital feminino. Aliás, ele não era visto como um órgão, mas como a ausência de pênis e testículos. Grandes lábios, pequenos lábios, clitóris, vagina e vulva: nada disso existia para a medicina até dois séculos atrás. Essas partes não eram nomeadas; portanto, eram desconhecidas, não existiam. Já a filósofa estadunidense Nancy Fraser se opõe aos usos do lacanismo pela teoria feminista, e acredita que o corpo e a linguagem são atributos do sujeito. Isso porque, para ela, existe um polo produtor de linguagem, e esse polo não está interessado em produzir linguagem sobre algo que não o valida. A partir daí, há todo um campo em disputa.

LINGUAGEM NEUTRA

Temos visto grupos sociais lutando por tímidas mudanças na língua portuguesa. E do coração de outros grupos – que imaginamos eruditos, interessados e abertos ao debate – nasce o reacionarismo. Dizem: “Vocês estão destruindo a língua, inventando termos”. Na sala de aula, eu brinco: “Claro, porque proparoxítona veio de uma bromélia. Feminicídio estava na terra. Alguém bateu uma enxada e a palavra saiu”. Toda palavra é inventada. A linguagem busca incessantemente estabelecer bordas para o real, para os corpos. A questão que fica escondida nesse ódio conservador é qual grupo pode inventar e qual não pode. Temos pessoas lutando socialmente para dar voz ao próprio corpo, dizendo que não respondem à desinência e gênero “o” nem “a”. No sentido contrário, há grupos falando: “Cale o seu corpo. A estrutura da gramática normativa importa mais que a sua vida”. O que nos move na educação é repensar as perguntas.

Sou considerada, por muitos, uma ameaça porque coloco em xeque a manutenção, a estabilidade das coisas. Por que será que figuras insurgentes como eu causam tanto frisson? 

Foto: Leo Fagherazzi

RUMOS DOS FEMINISMOS

Esta é uma batalha do aqui e agora. Judith Butler, por exemplo, acaba de publicar no Brasil Quem tem medo do gênero? (Boitempo, 2024). Já a Silvia Federici [filósofa e feminista italiana radicada nos Estados Unidos] publicou, no fim do ano passado, o livro Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo (Elefante, 2023). E a Nancy Fraser debate o tema na obra Destinos do feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal (Boitempo, 2024). Estamos enfrentando um movimento feminista de extrema direita, de tradwives, esposas tradicionais. Em abril, por exemplo, uma deputada estadual defendeu, em plenário, que “o homem é a cabeça da família” e que “a mulher deve ser submissa ao marido”. Sobre o assunto, a professora de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carla Rodrigues [e Sônia Corrêa] publicou em 2023, nos Cadernos Pagu, o artigo Apresentando “Apresentando ‘Terfs, movimentos críticos do gênero e feminismos pós-fascistas’”. É um dossiê sobre o avanço de movimentos trans-excludentes, e o que isso nos informa sobre para onde estamos indo. Essas correntes que falam da mulher “natural”, da mulher “de verdade”, da mulher tradicional, jogam fora pelo menos dois séculos de luta feminista. É um discurso que começa a ser produzido para justificar, nas diferenças morfológicas, as diferenças sociais. É perigosíssimo e temos que combatê-lo. 

VIP DA HUMANIDADE

Em 2021, publiquei um vídeo no canal Tempero Drag chamado “Humanidade, sei…”. Explico que, mesmo na tentativa de rebeldia, de furar o imaginário social, existe uma barreira da inteligibilidade do corpo. “Olha, você até pode existir, reivindicar acesso à universidade, pleitear uma barra acessível no banheiro, uma sinalização no chão, um sinal auditivo no trânsito, desde que seu corpo possa ser entendido numa determinada particularidade.” Ailton Krenak [líder indígena, filósofo e imortal da Academia Brasileira de Letras] fala sobre quais são os corpos que podem acessar o VIP da humanidade. Sujeitos merecedores de receber o selo de ser humano. A gente continua produzindo esse modelo que almeja a existência de um cidadão universal. E aceita que corpos fora do padrão sejam deixados para trás. Podemos chamar uma pessoa LGBTQIA+, mas só no mês de junho, do orgulho LGBTQIA+. Em paralelo, quem será que continua falando sobre política habitacional, taxa Selic, dívida pública? Enquanto os grupos minoritários são entretidos nos debates que tangem, que pautam, que montam suas diferenças, quais são os corpos autorizados a falar em nome da universalidade? Existe algo muito perigoso e nocivo no fato de a gente ser capaz de pensar a identidade dos sujeitos, mas não a atribuição social que os torna sujeitos ou objetos. É um discurso libertário dentro de um sistema de controle.

VÉSPERA DO FIM

Uma questão que tem me rodeado agora é: “De que adianta educar às vésperas do fim do mundo?”. Estou às voltas com isso desde que a crise climática global chegou à beira de seu ponto de inflexão, ou seja, de uma mudança irreversível. Segundo o chefe do clima da Organização das Nações Unidas (ONU), Simon Stiell, a humanidade tem dois anos para reverter o quadro de destruição do planeta ou abraçá-lo. E abraçá-lo significa entender que está dada nossa possibilidade de existência dessa outra forma, em um mundo apocalíptico. Essa tem sido uma grande angústia do Guilherme e da Rita. Para usar uma formulação cara ao filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995): “O que pode um(a) educador(a) frente ao fim do mundo?”. Ailton Krenak talvez nos dissesse que a gente pode retardar, adiar o fim do mundo. Ou que, no fim do mundo, a gente pode dançar, dada sua inevitabilidade. Nossa postura final talvez seja decidir como enfrentar essa situação. Precisamos pensar numa pedagogia ancestral para o fim do mundo, pois o mundo dos povos originários – tal qual eles o conheciam – já acabou há 524 anos.

JEITO CERTO?

Há alguns anos, dei uma aula intitulada “Quem tem medo de Cassandra Rios?”. Cassandra Rios (1932-2002) foi a autora de literatura mais censurada pela ditadura civil-militar brasileira. Conhecida como Safo de Perdizes, ela escrevia sobre lesbiandade e sua literatura flertava, muitas vezes, com o erótico. Essa minha aula, porém, não era sobre a escritora nem sobre a sua obra, e sim sobre as estruturas que tremem quando os temas gênero e sexualidade são chamados à baila. Este, aliás, é um dos meus interesses de pesquisa: “Quem tem medo de drag queen? Quem tem medo de Rita von Hunty?”. Essas perguntas dão pano para manga, pois confrontam dimensões como a performance de gênero, a construção do corpo, da personalidade, dos trejeitos, da voz. Sou considerada, por muitos, uma ameaça porque coloco em xeque a manutenção, a estabilidade das coisas. Por que será que figuras insurgentes como eu causam tanto frisson? O conservadorismo e o reacionarismo não são exclusivos da direita ou da extrema direita. Quando brigamos com alguém pelo jeito “certo” de arrumar um travesseiro, ou discutimos se o feijão vai em cima ou embaixo do arroz, entre muitos outros exemplos da vida cotidiana, estamos dando voz aos pequenos conservadores que habitam em nós.  

Ouça a íntegra da conversa com Rita von Hunty, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 24 de abril de 2024. A mediação do bate-papo é de Emilia Carmineti, psicóloga e assistente de gênero e sexualidade na Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Edição: Carol Mendonça.

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