PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA ENFRENTAM INÚMERAS DIFICULDADES PARA TER ACESSO A DIREITOS SOCIAIS E AUTONOMIA
A paisagem se modificou, mas a rotina do padre Júlio Lancellotti, 71 anos, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, começa às 7 da manhã, ao abrir os portões da Igreja São Miguel Arcanjo, no tradicional bairro da Mooca, Zona Leste de São Paulo. Há mais de 30 anos, sua rotina se entrelaça ao apoio dos mais vulneráveis que ocupam as ruas da cidade distribuindo alimento a essa população. Durante a pandemia, a refeição vem acompanhada de kits de higiene. Todos os dias, até 500 pessoas recorrem ao auxílio. A internet também é ocupada por Lancellotti. Aos sábados e domingos, o padre realiza missas transmitidas pelas redes sociais e, em seu perfil oficial @padrejulio.lancellotti, esse cotidiano é acompanhado por mais de 240 mil seguidores. Convidado a participar do debate População em Situação de Rua: Quem Cuida?, realizado pelo Sesc Ideias, Júlio Lancellotti, que também é coordenador da Pastoral do Povo da Rua, há 35 anos, destacou a importância de reconhecer e respeitar os direitos de homens e mulheres em situação de rua.
Não digo que trabalho com a população de rua. Eu convivo com a população de rua, porque afirmar o contrário poderia torná-la objeto. E a convivência é construtiva, alegre, desafiadora. Porque na convivência não tem nada preestabelecido, a não ser estar no mesmo nível, e sabemos que na convivência há encontros, desencontros e desafios. O princípio fundamental para todos nós é que a população que está em situação de rua não deve ser nem idealizada nem demonizada. São pessoas com todos os conflitos e questões que perpassam a condição humana.
A população em situação de rua tem as suas características. É uma população heterogênea, em crescimento no mundo todo, em todas as grandes cidades. Só em Nova York são 60 mil pessoas que estão pela rua. No Rio de Janeiro, o crescimento foi exponencial, chegando a 17 mil pessoas. Em São Paulo chegamos a 25 mil no último censo. É importante saber: o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não faz o censo da população de rua, então se desenvolveu uma metodologia própria. Em São Paulo o crescimento foi de mais de 50%. Acreditamos que na cidade de São Paulo tenhamos mais de 30 mil pessoas nessa situação. Os dados da última pesquisa são bastante questionáveis, mas muito dramáticos, quando mostram que mais de 50% da população de rua da cidade não está abrigada.
CUIDAR É NÃO INVISIBILIZAR.
CUIDADO EXIGE ACESSIBILIDADE
Quando falamos em cuidado, temos a ideia de tutelar. A população de rua não precisa de tutela. Ela precisa de cuidado e autonomia. Precisa de uma palavrinha que hoje se usa mais no modelo arquitetônico: acessibilidade. Tem que ter acesso à educação, cultura, moradia, ao trabalho, a várias formas cooperativas. [Durante a pandemia] nossa convivência diária e matinal só mudou de forma. Passam pela paróquia onde estou de 400 a 500 pessoas por dia. Na Casa de Oração passam mais de 600 pessoas, e no Largo de São Francisco estão passando mais de 1.000 pessoas diariamente. O nosso objetivo não é dar a comida, dar um kit de higiene e sobrevivência. É, especialmente, que as pessoas estejam nutridas para que elas possam ter resistência.
A tragédia para a população em situação de rua não é maior graças aos grupos que são muitos e, espalhados pela cidade, ajudam no acesso à alimentação, à água potável, a álcool em gel, a máscaras limpas, e a noções de saúde. Os consultórios de rua medem a temperatura das pessoas. Aqueles com suspeitas são socorridos para fazerem exames e para estarem em observação. Então, cuidar é garantir acessibilidade à dignidade de vida, para que as pessoas possam dormir em uma cama limpa e, de preferência, não em um dormitório coletivo. Que eles possam ter uma mesa para pôr comida e ter comida para pôr sobre a mesa, uma porta para fechar, uma cama com o seu cheiro para dormir.
Me chama muito a atenção que, quando conseguimos uma roupa, a primeira coisa que eles fazem é cheirar, pois a roupa vai ter o cheiro próprio. Eles percebem rapidamente quando a roupa é nova. Você imagina quantas mulheres gostariam de usar uma calcinha já usada? As mulheres em situação de rua não têm acesso ao mais simples. Há também a situação dramática das mulheres trans que não têm acesso a roupas femininas. Há abrigos que não aceitam mulheres trans, lugares onde, para entrar, elas precisam cortar o cabelo ou não podem usar seu nome social. São muitos os sinais que mostram a ausência de cuidado. Quem pergunta ao morador em situação de rua o que ele está sentindo? Ninguém quer saber. Durante a pandemia, eles são os que mais me perguntam como eu me sinto. No meu Instagram, eu faço um diário desse cotidiano da pandemia. Cuidar é não invisibilizar. Cuidado exige acessibilidade. O povo da rua não é anjo, porque anjo não sente fome, não ama nem odeia. Eles são seres humanos como nós.
Este artigo é parte da edição de outubro da Revista E. Acesse a edição completa em sescsp.org.br/revistae
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