Única atleta do futebol a participar de sete Copas do Mundo, e prestes a vestir a camisa da seleção de fut7, Formiga reflete sobre preconceito, machismo, novas gerações e mulheres no comando
Por Luna D’Alama
Leia a edição de agosto/23 da Revista E na íntegra
Seu nome de batismo é composto por três letras M (Miraildes Maciel Mota), mas todo mundo a conhece pelo apelido: Formiga. A alcunha surgiu aos 10 anos, bem antes que ela chegasse a 1,62 metro de altura, num momento em que a garota parecia uma formiguinha jogando futebol com meninos mais velhos. Dos campos de várzea em Salvador, nos anos 1980, até os gramados profissionais, a atleta – com atuação nas posições de volante e meia – teve uma carreira estrelada: foi duas vezes vice-campeã olímpica e uma vez vice-campeã mundial. Completou 234 partidas pela seleção brasileira em 26 anos, até se aposentar em novembro de 2021. Nesse período, comemorou 152 vitórias e 37 gols marcados com a amarelinha.
Única jogadora do planeta a ter participado de sete Copas do Mundo e representado o Brasil em sete edições dos Jogos Olímpicos, Formiga também se tornou, em 2019, a atleta mais velha a entrar em campo numa Copa Feminina, disputada na França. Mas ela ainda não pensa em parar: vai se juntar à seleção na Copa do Mundo de Fut7, em setembro, no México. E faz planos para o futuro como comentarista ou treinadora.
Defensora do poder transformador do esporte e de que nunca se deve menosprezar um adversário, Formiga só pôde jogar profissionalmente porque um ano depois de ter nascido, em 1978, a legislação brasileira derrubou a proibição das mulheres no futebol, estabelecida em 1941 por Getúlio Vargas, sob alegação de “condições da sua natureza”. Em 1983, a modalidade foi finalmente regulamentada no país. Neste Encontros, a atleta – que se casou em janeiro com Erica Jesus e defende que “o amor vence qualquer coisa” – relembra sua trajetória, fala sobre preconceito, novas gerações de jogadoras e os desafios enfrentados pelas mulheres no esporte.
Nasci no momento certo, pois, quando comecei a jogar nos anos 1980, não havia mais proibição ao futebol feminino no país. Mas a maior dificuldade que encontrei no início foram o preconceito, o machismo e a proibição dentro de casa. A gente brigava contra a discriminação, que existia entre os vizinhos, e também tinha o machismo dos meus irmãos. Apanhei bastante deles quando me encontravam jogando no meio dos meninos. Comecei a jogar nas ruas aos 7 anos, no Lobato, subúrbio de Salvador. Por meio da resistência de mulheres pioneiras, tive a oportunidade de nascer numa época em que o esporte já nos era permitido. Minha mãe sempre me apoiou e esteve ao meu lado. Ela acreditava no meu talento, via um diferencial em mim, assim como amigos e vizinhos dela. Foram justamente essas pessoas que me fizeram acreditar que seria possível mudar a história do futebol feminino no Brasil. Que mulher sabe, sim, jogar futebol, mesmo escutando muitos homens dizerem que não.
Para que eu pudesse ser vista pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a Dilma Mendes – que era jogadora e estava em transição para treinadora – simulou uma contusão. Eu tinha 15 ou 16 anos e entrei nesse campeonato, no Rio Grande do Sul. Era a mais nova e fiz a maior “lambança” na zaga do time adversário – metade era da seleção brasileira. Fui revelação nesse torneio e, anos depois, tive a oportunidade de ir para a seleção. Essa história só aconteceu porque existiu uma pessoa que me deu oportunidade, então tenho toda a gratidão à Dilma. É uma mulher que luta até hoje pelo direito das mulheres e do futebol feminino. Hoje, ela é técnica de fut7 e resgata muitas meninas em Camaçari (BA) e Salvador. Se tem duas mulheres no mundo em que me inspiro são minha mãe e Dilma Mendes, que me mostraram que tudo é possível na vida.
Minha vida começou a se transformar no futebol quando passei a ter treinamento certo, direcionamento e disciplina. Eu era um pouco indisciplinada, treinava só no meio dos meninos. Eu mal saía de um jogo e já ia para outro – ia à praia jogar com os pescadores, ou em outros bairros do subúrbio. O certo seria descansar, me resguardar para a partida seguinte, estar bem no outro dia e dar o meu melhor. Por outro lado, isso me condicionou ainda mais, porque, além de jogar nos campos de barro, eu ia para as dunas, para a areia fofa da praia. Eu era muito magrinha, mas, com esses atos indisciplinares, comecei a criar um pouco de massa muscular. Demorei a entender, porém, que o descanso faz parte do treinamento. Depois de uns quatro anos, entendi que precisava me resguardar, fazer um treinamento voltado à recuperação entre um jogo e outro. A disciplina é essencial na vida do atleta. Quando parei de ficar pulando de jogo em jogo, comecei a render um pouco mais, porque estava menos cansada.
O futebol me colocou onde estou hoje, transformou a minha vida, então faz sentido eu retribuir, da maneira correta, tudo o que ele me deu. Quero fazer essa mudança de dentro para fora, com muita dedicação e amor
Formiga
Para quem começa hoje, não pode entrar na zona de conforto, precisa ter dedicação 100%. Não adianta dar três chutes na trave e achar que já é a melhor de todas. Precisa respeitar a história das pessoas que construíram o esporte. A saúde mental é essencial para as meninas também, e esse lado pode ser fortalecido com ajuda dos pais e dos clubes. Algumas garotas acham que já estão no patamar ideal, as famílias só visam ao dinheiro, mas se esquecem de que muitas vezes elas ainda são crianças. Vejo hoje, em times, meninas de 14, 15 anos com depressão, porque é pressão de todos os lados. Muitos se esquecem de que elas estão na adolescência. Já perdemos revelações que não tiveram um bom trabalho em casa ou no clube. Anseiam tanto jogar fora do país, as famílias acham que as meninas podem fornecer o sustento do lar, mas precisam antes criar um caminho para que vinguem no futebol.
Temos uma grande quantidade de meninas no nosso país com talento para o futebol, que nascem com um dom. São diamantes que só precisam ser lapidados. Mas a gente perde para países como os Estados Unidos, por exemplo, porque aqui falta trabalho de base como eles têm lá. Os norte-americanos começam a lapidar suas joias desde cedo. O Brasil é um celeiro de excelentes atletas, e muitas estão jogando no exterior porque o pessoal de fora as contrata. Em termos de estrutura, a gente está muito atrás. Nossa vantagem é a quantidade tão boa de meninas que temos em atividade.
A diferença de trabalhar com uma mulher à frente de um time de futebol, principalmente ex-atleta, é o conhecimento sobre esse universo. Quando a treinadora Pia Sundhage chegou ao Brasil [em 2019], houve uma evolução não só em relação à seleção brasileira, mas ao futebol feminino em geral no país. Ela cobrou investimentos, um trabalho de base, a oportunidade de modificar totalmente a seleção feminina, buscando peças para repor. Foi uma movimentação que, a meu ver, está dando certo. Quando você trabalha com outra mulher, você tem o mesmo linguajar, a confiança de se abrir, independentemente da situação. É nossa obrigação estar ali bem, mas às vezes temos problemas particulares que podem afetar o nosso rendimento dentro de campo. Quando você conversa com uma mulher, seja médica, auxiliar ou treinadora, existe essa sensibilidade de entender a situação, abraçar, apoiar, orientar corretamente, para que a atleta possa render 100% dentro de campo. Claro que, ao mesmo tempo, há a cobrança por desempenho. Mas existe essa facilidade de trabalhar com outra mulher.
Com a visibilidade e a evolução do futebol feminino, hoje temos voz, não podemos mais nos calar. Não podemos ser proibidas de expor nossa opinião na frente de todos, não cabe mais isso. Já ficamos caladas por muito tempo, fomos proibidas inúmeras vezes de entrar em certos assuntos. Portanto, chega de ficarmos com a boca fechada, precisamos nos posicionar, sim. Defender a nossa classe. Porque já passamos por muitas humilhações, muitas situações em que não é legal ficarmos caladas. Temos que expor tudo.
Antes de falar que sou lésbica, eu já sofria preconceito como mulher preta e nordestina. Evitava tocar nessa questão por causa da minha mãe, mas não tenho por que ficar me escondendo. Não estava sendo eu mesma, feliz. Então não “saí do armário”, saí pela porta da frente. Quanto mais você se esconde, é pior, você mostra para as outras pessoas a sua fraqueza. Mas esteja também preparada para enfrentar uma enxurrada de comentários. Não vou deixar meu cabelo grande ou alisá-lo só porque um diretor ou treinador quer. Você precisa ser forte, assumir quem você é. A lei que criminaliza a homofobia [aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em 2019] não te dá 100% de segurança, mas de certa forma consegue fazer algumas pessoas recuarem. Para quem quiser ser feliz, é preciso se libertar. Não dá mais para ficar escondido. Melhor ainda quando você tem uma pessoa que te apoia, que está ali contigo, que te impulsiona. Buscamos esse espaço com respeito e não devemos nos calar em qualquer ofensa. Permita-se ser feliz dentro da sua orientação sexual. As pessoas precisam se permitir, porque o amor vence qualquer coisa. Os clubes podem colaborar, nesse sentido, orientando as atletas e os torcedores a terem respeito e abrirem a mente. Sei que o Brasil é um país machista e preconceituoso, mas com educação e orientação é possível mudar algumas atitudes.
Estamos em um processo que mostra que o futebol feminino pode dar audiência e retorno. É claro que ainda não atingimos o patamar ideal, que seria isso se refletir nas escolas e periferias. As crianças em regiões periféricas realmente têm que ir para a rua jogar, não têm oportunidade de serem vistas nem recursos para bancar escolinhas particulares. Aí a gente acaba perdendo talentos. Então, com a visibilidade que temos hoje, com a velocidade da evolução do futebol feminino, passando na TV e tendo marcas querendo patrocinar times de mulheres, espero que isso realmente se reflita positivamente para essas crianças. Porque não adianta você ter um time, abrir uma escolinha e cobrar de alunos que não têm condições de pagar. Por onde eu vou, falo que a gente precisa olhar para a periferia, para os menores carentes. Espero que daqui a quatro, seis anos, tudo isso que está acontecendo agora possa explodir e dar oportunidade para meninas e meninos também fora das capitais. Eu vim da várzea, ela ainda tem um papel importantíssimo para as(os) jogadoras(es) profissionais. A várzea precisa ser vista, ter oportunidades, ser levada a sério. De lá vêm muitas joias, pessoas com vontade de vencer, porque não têm outra oportunidade. As federações deveriam valorizar mais esses campeonatos, não só de futebol, mas de futsal e fut7. A gente precisa reconhecer essa galerinha que vem de baixo, com vontade de crescer.
Ainda estou com um pensamento de ser treinadora no futuro, vejo a necessidade de ex-atletas estarem na gestão. Infelizmente, existe uma resistência de os clubes aceitarem isso. É preciso buscar melhorias para a modalidade e para as atletas. Então, vendo esse problema, e com as ideias que tenho, devo ir para esse lado da gestão. Não estou dizendo que vou mudar o futebol feminino, mas, se tiver a oportunidade de modificar um local em que estiver trabalhando, com certeza farei, com 100% de dedicação. Não me vejo fora do esporte. O futebol me colocou onde estou hoje, transformou a minha vida, então faz sentido eu retribuir, da maneira correta, tudo o que ele me deu. Quero fazer essa mudança de dentro para fora, com muita dedicação e amor. Eu amo o que faço, amo o esporte, porque ele é transformador. Quero ver o esporte transformar a vida de milhões de crianças que precisam da nossa atenção. Qualquer mudança positiva que houver na vida delas, a gente vai ver bons resultados lá na frente.
Estou ansiosa, mais do que quando eu jogava, para ver as meninas na Copa do Mundo e terem essa oportunidade de ganhar uma medalha. Fico tranquila porque sei que a minha entrega foi total, me dediquei muito a cada campeonato. E também sei que, com todo esse esforço, consegui plantar uma sementinha para que as atletas hoje possam ter uma qualidade melhor de trabalho. O frio na barriga agora está em viver esse papel de torcedora, com muita ansiedade.
Ouça aqui o bate-papo com Formiga, em formato de podcast:
A EDIÇÃO DE AGOSTO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
LEIA AQUI a edição de AGOSTO/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.