Leia a edição de janeiro/23 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
O signo feminino, na concepção de vários povos indígenas, vai muito além das mulheres: está presente nos seres da natureza – árvores, rios, animais e nos humanos, sejam eles homens ou mulheres, adultos ou crianças. A partir dessa visão ancestral, o feminino está na base de tudo, no chão, no território, na mãe-Terra. “Está também na Lua, que nos ajuda nos plantios e nas colheitas. A mulher, porém, é considerada a versão mais completa do feminino, porque tem a capacidade de reprodução da vida, do cuidado, embora todos possam cuidar. Além disso, nós não vemos a função doméstica como pejorativa, porque a nossa casa, nosso lugar de moradia, é considerado muito importante”, explica Fabiane Medina Cruz, doutoranda em ciência política. Ela, que é da etnia Avá-Guarani, do Mato Grosso do Sul, pesquisa gênero, feminismo indígena e políticas públicas para mulheres indígenas, além de trabalhar em dois documentários sobre essas temáticas e integrar a curadoria da exposição Coração na aldeia, pés no mundo, no Sesc Piracicaba [Leia mais em Da aldeia para o mundo].
Fabiane defende que falar sobre arte indígena no Brasil é tão importante quanto tratar de arte em geral. “É uma necessidade, pois a expressão artística é algo natural de todo ser humano e de toda cultura”. A também curadora da exposição Fabiana Bruno, que é pós-doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), alega que é preciso evidenciar as heranças e o lugar das mulheres indígenas no século 21, salientando a riqueza de suas sabedorias e a importância delas na transmissão de conhecimentos tradicionais, sem invisibilizar suas identidades. “Há temas urgentes que afetam a vida de todos nessas comunidades: a perda das terras, o apagamento étnico e o genocídio. O êxodo de mulheres e suas famílias deixa marcas profundas de violência. Elas passam a viver desaldeadas, em contextos de exclusão socioeconômica, política e racial; apartadas de laços e heranças cosmológicas e ancestrais; e negligenciadas de seus direitos humanos”, contextualiza Fabiana.
A designer Benilda Vergilio, que assina como Benilda Kadiwéu (nome de sua etnia), é uma das novas representantes da arte indígena brasileira, presente na exposição com uma fotografia de pintura facial feita por mulheres da aldeia Alves de Barros, em Porto Murtinho (MS). “Mostro, no meu rosto e corpo, as pinturas e os grafismos do povo Kadiwéu, buscando dar visibilidade e fortalecer a nossa cultura, para que a arte indígena no país tenha um alcance cada vez maior e seja mais valorizada. Há muitos(as) indígenas(as) talentosos(as) pelo Brasil, e o que esses parentes precisam é apenas de uma oportunidade, pois a arte já existe em nós desde a infância”, aponta. Para Benilda, é fundamental reforçar a representatividade das mulheres indígenas na arte, porque muitas são linha de frente em suas comunidades ou nos centros urbanos onde moram. “Nós, artistas indígenas, existimos e somos capazes de criar conexões, impactar o público e influenciar todo o mercado de artes”, conclui ela, que desenvolve um trabalho educativo com crianças para divulgar sua cultura e diminuir o preconceito.
Coração na aldeia, pés no mundo (Uk’a Editorial, 2018) é, originalmente, o título de um livro publicado pela cordelista e poeta indígena contemporânea Auritha Tabajara, nascida em Ipueiras (CE). “A literatura é uma ferramenta muito forte de resistência. Na minha escola, não havia livros de autoria de mulheres indígenas, então eu sempre falava que seria uma escritora para que outras com o mesmo sonho tivessem a coragem de concretizá-lo”, lembra. Para ela, que desde criança se interessava pelos cantos, rezas e ervas medicinais da avó, ter os pés no mundo e, ao mesmo tempo, manter o coração na aldeia é conectar o mundo ancestral com as novas tecnologias. “Espero que obras feitas por mulheres ganhem cada vez mais espaço, sejam vistas, lidas, mostradas, interpretadas. É importante que nos escutem, respeitem as nossas vozes, os nossos corpos, valorizem os nossos trabalhos e nos deixem viver”, ressalta.
A curadora Fabiane Medina Cruz, que nasceu em uma aldeia urbana, em Campo Grande (MS), mas se mudou para a aldeia Jaguapiru, em Dourados (MS), completa que, se por um lado as populações indígenas são subalternizadas e excluídas, “nós sempre andamos em grupo e trazemos esse legado [dos demais] conosco”. Ela acredita contribuir com essa missão coletiva ao colocar “artistas juntos(as) para conversar, como se fosse uma assembleia, uma roda de conversa, sempre com a ideia de rede em mente”, finaliza.
Exposição destaca universo feminino indígena, seus corpos, simbologias e saberes ancestrais
Em cartaz até 30 de abril, no Sesc Piracicaba, a exposição Coração na aldeia, pés no mundo reúne 108 obras contemporâneas – como pinturas, fotografias, vídeos, instalações, esculturas e desenhos – feitas por 22 artistas (a maioria de origem indígena) de sete estados brasileiros e do exterior. A curadoria de Fabiane Medina Cruz e Fabiana Bruno estabelece um diálogo entre nomes já consolidados nas artes visuais – como Claudia Andujar, Anna Bella Geiger, Cildo Meireles e Frans Krajcberg –, com artistas que estão no meio do caminho – como Denilson Baniwa e Edgar Xakriabá – e com os(as) que começam a despontar – como Vanessa Pataxó e Priscila Tapajowara, primeira mulher indígena do país a se formar em produção audiovisual, com atuação na Amazônia.
Organizada em três núcleos – Território Corpo-Sangue, Território Corpo-Vida e Território Vida-Resistência –, a mostra está disposta em um espaço assimétrico, que começa em um andar e avança para outro, chegando a um salão intimista. Logo na entrada, há trabalhos de Jaider Esbell (1979-2021), uma homenagem a esse expoente da etnia Macuxi, de Roraima, que morreu em plena ascensão da carreira, aos 42 anos. No percurso, o público ainda conhece a Yandê, primeira rádio digital indígena do Brasil, no ar desde 2013.
Segundo a curadora Fabiane Medina Cruz, são apresentadas obras tão importantes quanto belas para o universo indígena. “Há mulheres sorrindo, pintando, marchando, lutando. Os visitantes poderão sentir tanto a paz, o sossego, a beleza e a harmonia de estar entre os povos originários, quanto a nossa ira, revolta, tristeza, vulnerabilidade e miséria. Queremos provocar emoções, reflexões e mudanças de estilo de vida. Que as demais pessoas vejam o mundo de um modo diferente, menos materialista, mais sensível e permeado por relações de afeto.” Para Fabiane, Coração na aldeia, pés no mundo sintetiza todo o período em que a equipe sonhou em conjunto. “Passamos pela pandemia, perdemos o Jaider, então é uma mistura de muitos sentimentos”, analisa.
“Falamos sobre a ancestralidade dos povos originários, a expropriação de territórios, a migração forçada para as cidades, o lugar do feminino – que muitas vezes é violado e violentado. É uma mostra rica em diversidade: há representantes das etnias Guajajara, Pataxó, Baniwa, Terena, Kadiwéu e Xakriabá, entre outras”, explica Margarete Regina Chiarella, técnica de programação do Sesc Piracicaba. Para Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, “a participação das mulheres indígenas tem sido fundamental na proteção de seus povos, fortalecendo e valorizando o conhecimento tradicional, garantindo as práticas dos saberes ancestrais, da espiritualidade e da cultura de seus antecessores como forma de respeito a suas existências”.
PIRACICABA
Coração na aldeia, pés no mundo
Até 30/4, de terça a sexta, das 13h30 às 21h30; sábados, domingos e feriados, das 10h às 17h45. Grátis. Mais informações: sescsp.org.br/piracicaba.
A EDIÇÃO DE JANEIRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
No mês em que acontece o Sesc Verão 2023, discutimos a relação entre as tecnologias e a prática físico-esportiva. A reportagem principal desta edição defende que usar o tempo livre para atividades que não movimentam o corpo favorece o sedentarismo, além de elevar o risco de doenças crônicas. No entanto, o texto também aponta que, quando utilizado de maneira equilibrada, o tempo em frente às telas pode motivar a prática de atividades físicas, por meio do uso de aplicativos e aparelhos que medem frequência cardíaca, gasto calórico, qualidade do sono, entre outros indicadores.
Além disso, a Revista E de janeiro/23 traz outros conteúdos: uma reportagem que percorre os caminhos de gestação de uma obra literária, desde o surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores; uma entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que conta sobre sua relação com a literatura brasileira, seu processo criativo e revela de que forma os antepassados guiam sua escrita; um depoimento com a cantora e compositora Ellen Oléria sobre música, teatro e afrofuturismo; um passeio visual por imagens que celebram o universo feminino indígena no universo das artes visuais; um perfil da médica Nise da Silveira (1905-1999), pioneira na humanização do atendimento psiquiátrico por meio da arte; um encontro com o jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, que fala sobre popularização de podcasts e luta antirracista no Brasil; um roteiro nostálgico pelas miudezas arquitetônicas de São Paulo, em celebração aos 469 anos da capital paulista; um conto inédito da escritora Natalia Timerman; e dois artigos que discutem a relação entre envelhecimento e inclusão digital.
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