Divagações sobre um certo aparelho que ajudou a escrever uma história de amor entre um adolescente e a rádio. Por Jean Paz
Jean Paz é um gaúcho gremista que queria ser um Novo Baiano. Baixista autodidata, é formado em Publicidade e Propaganda e possui especialização em Assessoria de Comunicação e Mídias Sociais. É autor do livro “Manual Prático para Pais de Primeira Viagem”, que reúne crônicas e causos sobre a sua experiência com a paternidade e apresenta o programa Baixaria Sonora, que vai ao ar todas às sextas, às 21h, através das ondas da Internova Rádio Web. Desde 2016 atua como Editor de Conteúdo Web no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.
Ilustrações por Ale Amaral. Ale é paulistano e pai da Laura. Trabalha no Sesc São Paulo desde 2004, atualmente como designer gráfico no Selo Sesc. Toca bateria no barulhento duo Bugio e colabora musicalmente com diversos artistas nacionais da cena experimental e de improvisação livre.
(Para ler ao som de “Radinho” música de Pipo Pegoraro)
Era década de 90.
A internet ainda era acessível a poucos e smartphones eram objetos imagináveis apenas como artigo de luxo em algum filme futurista distópico.
Recém-chegado do interior, eu estudava em uma escola pública que ficava a uns 2km da minha casa. Além de gostar de estudar, também gostava de ficar na escola depois da aula, para ver pessoas e para fazer o dinheiro da condução valer a pena.
Num desses dias, enquanto me preparava para ir embora já com a sala vazia, reparei algo embaixo de uma das carteiras da classe.
Era um Walkman amarelo, com detalhes azuis, uma antena de alumínio e botões pretos emborrachados, que também tocava fitas K7 e era alimentado por um par de pilhas AA.
Fiquei surpreso e empolgado com o achado, pois voltaria para casa ouvindo música, no único lado do fone que funcionava.
O aparelho era acompanhado por um par de fones intra auriculares nada confortáveis, que possuíam uma capa de espuma e um fio extremamente fino, que era capaz de romper com o mínimo movimento.
Na manhã seguinte, ao chegar na escola perguntei para minha colega que sentava naquele lugar se ela havia esquecido algo no dia anterior, pois como eu me considerava muito honesto, pretendia concluir o Ensino Médio sem nenhum delito no meu currículo.
Senti um certo alívio quando ela disse que não havia esquecido nada, e após questionar outras pessoas que se sentavam ao seu redor, sorri aliviado, pensando no que ouviria no retorno para casa.
No meio do caminho as pilhas acabaram, e minha distração nos minutos seguintes foi explorar todos os detalhes daquele aparelho que cruzou meu destino por acaso.
Em pouco tempo ficamos íntimos.
E ele me ensinou, sem pudores, que uma das relações mais sinceras que existem é a de uma fita K7 com uma caneta esferográfica.
E a curtir o efeito pitch shifter, que surgia ao natural quando as pilhas ficavam fracas no meio da audição de uma fita.
Dali em diante, aquele radinho de pilha, que já havia viajado o mundo e agora havia encontrado um lar, se tornou meu companheiro noturno, visto que a única tv da casa era disputada por 3 pessoas, e eu estava em larga desvantagem por ser o mais jovem.
(Era comum as pilhas me deixarem na mão. Nessas horas era preciso recorrer à tradicional técnica familiar de ferver as pilhas para aumentar suas vidas úteis).
Durante o dia, quando as pilhas permitiam, ele me acompanhava no retorno para casa e nos afazeres domésticos.
E uma simples lavagem de louça ou de banheiro se tornava uma deliciosa viagem pela Tropicália, por garagens de Seattle e pela Jovem Guarda.
Logo nas primeiras noites em sua companhia descobri um programa chamado “Pijama Show”, que me tocou de um jeito diferente.
Transmitido por uma das maiores rádios do estado, o programa misturava música, misticismo e filosofia e era apresentado por um radialista de voz grave, de senso de humor sagaz e capaz de sinapses geniais chamado Everton Cunha ou simplesmente Mr. Pi.
Suas histórias me levavam a lugares inimagináveis para um jovem estudante que morava na periferia de uma grande cidade do sul do país e que até bem pouco tempo atrás passava o dia jogando futebol de botão e colando figurinhas em álbuns nunca completados.
Suas reflexões nada convencionais, acompanhadas por uma trilha sonora impecável, me faziam viajar por cidades europeias, praias desertas e montanhas pouco exploradas, e que a grande maioria, provavelmente eu nunca vá conhecer.
E me faziam querer estar do outro lado, naquele ambiente que criei em minha cabeça, com luzes em tons de roxo, com incensos espalhados pelos cantos e garrafas térmicas com chá ao meu dispor.
Não foram poucas as vezes em que desejei, durante a transição do estado de vigília para o sono leve, estar no comando de um programa radialístico, fazendo minhas próprias seleções musicais, recebendo convidados famosos e contando histórias relacionadas àquelas canções.
Esse dispositivo que me fazia viajar sem sair da cama também me acompanhou em jornadas futebolísticas heróicas e em outras nem tanto, marcando presença em conquistas históricas e derrotas vexatórias, porque nem tudo são flores.
E como diz o ditado, “O futebol é uma caixinha de surpresas”.
E foi responsável pela trilha sonora de diversas histórias de amor que só existiram na minha cabeça e que encheram folhas de cadernos que se perderam com o tempo.
Meses mais tarde, quando enfim a tal da obsolescência programada decidiu agir, meu velho companheiro precisou ser substituído em grande estilo por um aparelho mais moderno, com fones mais anatômicos e que me acompanhou em inúmeras aventuras.
Mas isso já é outra história.
Esta é uma obra de autoficção e qualquer semelhança entre pessoas ou situações não é mera coincidência.
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