Especializado em turismo comunitário, pesquisador catalão Ernest Cañada defende o desenvolvimento de práticas turísticas sustentáveis
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Leia a edição de OUTUBRO/24 da Revista E na íntegra
Instrumento de desenvolvimento pessoal e coletivo, o turismo se reinventa com o passar da história. Diante de diferentes contextos culturais, políticos, econômicos e ambientais, assume diversas formas para atender aos desejos e necessidades de cada tempo, local e grupo social. Modalidades como o turismo comunitário, o turismo social ou o ecoturismo são exemplos de iniciativas que buscam oferecer uma experiência turística respeitosa e consciente tanto para quem visita quanto para quem recebe.
Segundo o artigo primeiro do Código de Ética Mundial do Turismo, do qual o Sesc São Paulo é signatário, “a compreensão e a promoção dos valores éticos comuns da humanidade, em um espírito de tolerância e respeito à diversidade, às crenças religiosas, filosóficas e morais são, ao mesmo tempo, fundamento e consequência de um turismo responsável”.
Esse é o campo de atuação do catalão Ernest Cañada. Doutor em geografia e integrante do Alba Sud, centro de pesquisa especializado em turismo responsável (do qual é membro fundador), Cañada dedica-se a pesquisas e ações propositivas neste setor, especialmente na Espanha e América Latina. Entre idas e vindas ao Brasil, esteve no litoral paulista, em 2022, para a produção de um relatório sobre a experiência do Centro de Férias do Sesc Bertioga, a partir de um olhar para o turismo social na América Latina, e em agosto passado, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo. Na ocasião, Cañada falou sobre a pesquisa Turismo comunitario urbano en Brasil: autoorganización popular ante la desigualdad y la exclusió [Turismo comunitário urbano no Brasil: auto-organização popular frente à desigualdade e exclusão], realizada junto à turismóloga Aline Bispo, com o apoio da Diputación de Barcelona [instituição do governo local que fomenta o desenvolvimento da cidade e o bem-estar dos cidadãos].
Na pesquisa, Cañada e Bispo jogam luz sobre experiências de turismo comunitário urbano no Brasil, tendo como recorte grupos de Recife, Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Essas iniciativas são exemplos de como organizações sociais buscam não só a geração de renda em seus territórios, mas também o sentimento de pertencimento entre os habitantes.
Nesta Entrevista, Ernest Cañada reflete sobre o caráter emancipatório do turismo, analisa as raízes do processo de turistificação em destinos como Barcelona, na Espanha – cidade que enfrentou, em julho passado, uma onda de protestos contra o turismo em massa –, além de apontar caminhos para práticas turísticas mais conscientes.
Apesar de distintos, ainda há confusão quanto ao conceito de turismo comunitário e turismo social. Poderia diferenciá-los?
O turismo comunitário é, fundamentalmente, um modelo de gestão. É uma forma de gerir a atividade turística baseada no objetivo de uma organização coletiva. As formas podem ser de diferentes maneiras: cooperativas, associações, grupos comuns. E esses modelos decidem como vai ser organizada a oferta. Ou seja, é a ideia da comunidade, do coletivo organizado que busca assumir as formas como se gerenciam as atividades turísticas. Já o turismo social nasce em outro contexto, como parte de políticas para tornar acessíveis atividades turísticas para diferentes grupos sociais que não conseguiriam ter acesso a elas. Isso pode ser organizado por políticas públicas do Estado, por iniciativas mistas e, em algumas ocasiões, em contato com o turismo comunitário. Ambos são conceitos que, de alguma maneira, estão buscando uma certa integração e inclusão de populações não hegemônicas e que, seja do lado da oferta ou da demanda, possibilitem o acesso às atividades turísticas. Hoje, tanto o turismo comunitário quanto o turismo social encontram-se em contextos de disputas.
O que representa esse território de disputa?
Tem a ver com lógicas que mudaram a organização do turismo. Passamos de um modelo fordista a um modelo pós-fordista. Não desapareceram as formas como organizávamos aquelas férias com tudo incluído e nas quais todos faziam o mesmo roteiro. Antes, organizava-se a atividade turística, fundamentalmente, como uma atividade de grandes proporções – todo mundo tentava obter a mesma experiência. Em termos culturais, a ideia era: “Eu também fui lá”. Só que, a partir dos anos 1990, houve uma mudança e as formas de organização do turismo começaram a se fragmentar e reduzir. Surge a ideia: “Olha para onde eu fui”. Ou seja, busca-se uma diferenciação do outro. Nesse contexto, tudo se transforma em atração turística, desde paisagens e lugares ameaçados pelas mudanças climáticas, ou mesmo lugares de pobreza. E aí, o turismo comunitário encontra-se em disputa. Porque, por um lado, o objetivo de comunidades marginalizadas e empobrecidas é ter o controle da atividade turística, mas, ao mesmo tempo, o que elas estão oferecendo passa a ser objeto de interesse de quem está de fora. Com o turismo social, acontece algo parecido. Segmentos sociais que não têm acesso à atividade turística passam a ser vistos como “nicho de mercado”. Temos a contradição: há quem olhe para o turismo social como uma oportunidade de fazer negócios, quando na verdade ele é um direito. Devemos garantir que as pessoas possam descansar, ter espaços de ócio e de tempo livre, e isso pode ser organizado de diferentes maneiras.
No caso da apropriação de um território por agentes de fora, podemos apontar como um exemplo os passeios que ainda ocorrem em comunidades do Rio de Janeiro?
Eu acredito que o turismo urbano comunitário está em permanente tensão entre a intenção de gerar uma economia local, de melhorar as condições de vida e de revalorizar espaços e territórios para que se livrem de um estigma e, ao mesmo tempo, a intenção de apropriação dessas atividades e desses espaços para o lucro privado. Acredito que o fundamental para organizar isso, em um sentido ético, tem a ver primeiro com quem organiza. Quem tem o controle da atividade turística? São agentes de fora da comunidade ou é a comunidade organizada que desenvolve e cria as normas do que oferece, do que se pode ou não fazer ali?
Por exemplo: o turista pode ter uma ideia de perigo, de risco, porém, ele pode sair deste território percebendo a capacidade da comunidade de se organizar, de transformar seu espaço, de oferecer uma gastronomia popular bastante rica etc. Quer dizer, ele pode vir com uma certa ideia e sair com outra. Creio que isso é parte do processo e que é fundamental tirar do espaço esses atores externos que tentam utilizar as favelas ou os bairros populares como se fossem um “safári”. É preciso reorganizar esses territórios a partir da reapropriação feita pela própria população, com base em como ela quer ser vista e representada.
Quais aspectos foram observados nas iniciativas de turismo comunitário urbano, que compõem a pesquisa Turismo comunitario urbano en Brasil: autoorganización popular ante la desigualdad y la exclusión?
A pergunta que fazíamos, Aline Bispo e eu, tinha a ver com o que estávamos percebendo: o turismo comunitário urbano estava crescendo em muitos lugares da América Latina. Vimos experiências na Argentina, Colômbia, Brasil, e nos demos conta de que, até agora, havíamos estudado o turismo comunitário como uma realidade do mundo rural. No entanto, o que estávamos vendo é que nas grandes metrópoles estavam aparecendo formas de organização de turismo comunitário. Então, nossa pesquisa procurou saber como essas atividades eram organizadas. Partimos de três perguntas: qual era a motivação para organizar essa atividade? Por meio de quais estruturas ela era realizada? Qual era o papel do turismo nessas comunidades? Partimos de uma hipótese, provavelmente ingênua, que se tratava de pensar que, de alguma maneira, o turismo comunitário urbano havia nascido como uma resposta ante o mal-estar que provocavam esses “safáris”, e que havia uma certa ideia de que a comunidade reivindicava: “Não quero ser vista dessa maneira”. Com a pesquisa, nos demos conta de que as motivações iam muito além, eram mais complexas e ricas.
E quais eram as motivações dessas organizações sociais?
Nós visitamos oito experiências em cinco cidades: São Paulo (SP), Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e Salvador (BA). Trabalhamos por um ano nessa investigação. O que percebemos, e acredito que foi o principal, é que entre as motivações há uma pluralidade de objetivos, ainda que esteja presente uma certa rejeição a formas externas de organização do turismo, sobretudo, nas favelas. Em primeiro lugar, está a busca de uma economia local: busca-se gerar renda para a comunidade sem que ela precise sair do território, ou seja, há uma dinamização da economia. Outra motivação está relacionada à manutenção das organizações populares – o turismo poderia ser não apenas um mecanismo para manutenção das famílias, mas também para gerar recursos à gestão das atividades das organizações sociais. Também encontramos respostas pelas quais não esperávamos. Por meio do turismo, a comunidade decide mostrar-se e, assim, construir alianças com pessoas de outros lugares. Num contexto de muita desigualdade, exclusão e violência, isso move a busca por alianças e, de alguma forma, a criação de uma espécie de “cordão de segurança” que, por sua vez, está associado a uma cultura de paz. Também está entre as motivações a vontade de derrubar certos estigmas. Há lugares onde as pessoas não conseguem trabalho porque quando lhe perguntam o endereço, elas são associadas ao perigo e à insegurança de onde vivem. A ideia é reverter isso e converter o território em um lugar de orgulho local e de pertencimento. Acredito que o turismo e as motivações do turismo comunitário urbano que podemos encontrar em diferentes cidades do Brasil respondam a essa complexidade de motivações.
Que reflexões se somaram à pesquisa com a inclusão da Comunidade Cultural Quilombaque, no bairro do Perus, zona noroeste da cidade de São Paulo?
Trabalhamos com os membros da Quilombaque, uma experiência que nasce fundamentalmente desse desejo de sair do estigma de bairro-dormitório, e de uma vontade de alavancar uma economia local, além de fomentar atividades culturais e gerar um sentimento de pertencimento e orgulho. Acredito que esse seja um dos casos que mostra essa capacidade e potência da organização popular, e do uso de diferentes linguagens artísticas como forma de reivindicação popular e de demonstração de orgulho. Esse tipo de organização é parte de outras organizações. Ou seja, a atividade turística é parte de um conjunto. De alguma maneira, o turismo não nasce sozinho, mas nasce a partir de contextos nos quais há altos níveis de organização social e, ao final, o turismo é um complemento dos múltiplos outros que existem. A base dessas experiências é a potência da organização popular e de que maneira essa organização utiliza o turismo como uma ferramenta a serviço de diferentes objetivos. Acredito que essa seja a chave no caso da Quilombaque. O que estamos vendo é que primeiro essa potência de organizações sociais nasce e, então, nasce a atividade turística.
Isso também pode ser constatado em outras iniciativas de turismo comunitário urbano?
A lógica é essa: partimos da organização popular para resolver, primeiro, problemas imediatos da vida cotidiana – moradia, ruas, segurança, arte e cultura. Então, em algum momento, identifica-se o turismo como um possível instrumento a serviço desse desenvolvimento de caráter popular. Também se trata de promover identidade em torno do desenvolvimento urbano que está sendo gerado. Ou seja, é um caminho inverso do que algumas agências de turismo fazem quando querem mostrar esses bairros como se fossem algo “exótico”, na lógica de satisfazer a curiosidade dos turistas de fora. Outro aspecto importante que o turismo comunitário urbano me mostra no Brasil é que ele também passa a ser presente para parte da população local que não conhece esses lugares e que desejaria conhecer. Então, há um vínculo com o turismo doméstico, o turismo nacional, o turismo de proximidade, que também são muito importantes.
Recentemente, protestos foram realizados em Barcelona, sua cidade natal, contra o tipo de turismo praticado por lá. Quais as motivações desses protestos?
Barcelona tem uma população de um milhão e 600 mil pessoas e recebia, antes da pandemia da Covid-19, 28 milhões de turistas [por ano]. Assim como em Barcelona, em Maiorca e outras cidades da Espanha, esses protestos surgem acompanhados por grandes problemas. Há o deslocamento da maioria da população, uma vez que o turismo provocou aumento de aluguel e compra de residências; aumento do custo de vida; problemas de transporte, principalmente em lugares que conectam os espaços turísticos, mas onde também vivem moradores; e o fechamento do comércio de bairro. Além disso, o emprego no turismo é precarizado. Então, temos essa contradição. A partir de 2008, começa a crescer a atividade turística. Houve, então, uma expansão em termos quantitativos e qualitativos. Em 2014, começamos a ver os primeiros efeitos dessa dinâmica de turistificação, e isso gerou um primeiro ciclo de protestos na Espanha. Em 2020, temos a pandemia de Covid-19, um momento em que o turismo desaparece e nos mostra, com toda crueza, sua vulnerabilidade. Vemos aí o problema do emprego, mas ao mesmo tempo, a sociedade descobre o que é viver em uma cidade sem turismo. Depois da pandemia, o turismo reage com muita pressão e força. No entanto, é preciso levar em consideração uma crise climática de grandes consequências, uma crise energética, tensões geopolíticas cada vez maiores, porém nenhum investimento numa transição socioecológica justa para garantir tempo livre, férias, espaços de ócio para a maioria da população.
É nesse cenário que emerge o conceito de “turismofobia”? O que está por trás dessa ideia?
Nas raízes dos protestos contra as dinâmicas da lógica da turistificação, há um conceito que não é teórico nem acadêmico: “turismofobia”. Essa ideia é usada para identificar os mobilizadores de protestos sociais. Como se suas ações fossem algo irracional e sem sentido, deslegitimando-as. Em cidades como Barcelona e Palma de Maiorca esse processo de especialização em atividades turísticas está gerando problemas sociais muito graves em relação à moradia, ao transporte, à vida cotidiana. E os protestos não estão dirigidos aos turistas. Nesse processo aparece outro conceito que, de alguma maneira, é contraditório: “o turismo massivo”. Mas o problema não é esse tipo de turismo; o problema é a turistificação, que trata de envolver todo um território a serviço do setor turístico. Essa turistificação pode ser um turismo de massas ou um turismo de elites, para poucos. Precisamos aprender com outros países como desenvolver políticas de turismo social muito mais fortes e pensadas para a maioria da população. Não é possível que só possamos pensar a atividade turística sob uma única lógica. Acredito que podemos pensar e organizar o turismo em função das necessidades da maioria da população, com objetivos de emancipação social.
Fale um pouco de sua próxima pesquisa, que relaciona turismo a movimentos sociais de luta pela memória e contra a impunidade.
O Alba Sud está trabalhando, há algum tempo, em uma pesquisa entre Espanha e América Latina, que partiu da demanda de um movimento de memória na Espanha que estava organizando rotas nas montanhas que percorriam as lembranças da guerrilha antifranquista, durante a ditadura na Espanha (1939 a 1975). Chegamos à conclusão de que em muitos desses movimentos e espaços de memória contra a impunidade e a violação dos direitos humanos durante as ditaduras, o turismo estava presente. Em alguns casos, esses movimentos se aproximaram do turismo como uma forma de chegar a mais setores sociais. Em outros, já havia lugares de memória, recebiam turistas, mas não sabiam exatamente como se relacionar com o público. Percebemos que esse é um debate que precisava ser abordado. O que estamos trabalhando nesta nova pesquisa é a sistematização de experiências na Espanha e na América Latina, tentando entender como estão sendo produzidas essas relações visando fortalecer a lógica de que, por meio do turismo, podemos atingir vários objetivos associados à emancipação e às necessidades humanas. Em alguns casos, satisfazer a necessidade de descanso, de ócio, de saúde, mas em outros casos, o turismo pode estar associado a um caráter cultural, de memória. O turismo é uma ferramenta que podemos utilizar para tudo isso.
Assista a trechos da entrevista realizada com o pesquisador Ernest Cañada, realizada em agosto de 2024, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.
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