Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
Se hoje Gilberto Gil atualizasse o livro biográfico Gilberto Bem Perto (HarperCollins, 2013), escrito por ele em parceria com a jornalista Regina Zappa, certamente o ano de 2022 ganharia destaque no roteiro de sua vida e obra. Foi nestes últimos meses que o artista baiano – marido de Flora e pai de oito filhos (cinco deles também músicos) – completou 80 anos de idade e 60 de carreira, ganhando homenagem do Grupo Corpo, na coreografia Gil Refazendo, e estrelando a série documental Em Casa com os Gil, do Amazon Prime Video.
Foi também em 2022, no início de setembro, que Gil subiu ao palco do festival Rock in Rio ao lado de filhos, netos e noras para cantar clássicos como Aquele Abraço (1969), Andar com Fé (1982) e Tempo Rei (1984). O ponto alto do show foi o dueto de Gil com a neta Flor, de 13 anos, filha de Bela. Os dois interpretaram Garota de Ipanema, em português e inglês, e a adolescente chegou a chorar no ombro do avô.
Como se não bastassem todos esses marcos, o ex-ministro da Cultura e membro da Academia Brasileira de Letras lançou, em julho, a terceira edição do livro Todas as Letras (Companhia das Letras), organizado pelo jornalista, compositor e escritor Carlos Rennó, que se debruçou sobre 535 canções desse que é um dos criadores do Tropicalismo. No fim de agosto, Gil e Rennó estiveram presentes no Teatro do Sesc Pompeia para uma conversa sobre a obra. Neste Depoimento, que traz trechos do bate-papo, Gil relembra sucessos, aborda seu processo criativo, vivências, inspirações e memórias.
Assista, na íntegra, ao bate-papo com Gilberto Gil, no Sesc Pompeia
Quando você revolve o terreno da vida, em qualquer aspecto, vêm sempre as minhocas. Você fica vendo como o terreno da vida é fértil, como ele é fertilizado, e vai se oferecendo aos cultivos das coisas todas, às lavouras. Acho que nas conversas que a gente teve aparecia isso. Foram três momentos distintos [de interação entre Gilberto Gil e Carlos Rennó]. Quando da primeira edição do livro, nós começamos a trabalhar a partir de 1994. [Para a] segunda edição, em 2002. Nos últimos dois anos, durante a pandemia, nos reunimos para mais conversas e para trabalhar a complementação do repertório para a terceira edição [que tem ilustrações inéditas de Alberto Pitta e textos de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik].
Eu tive um encantamento pela canção que permanece até hoje, desde que eu era menino. Quando minha mãe perguntou o que eu queria ser quando crescesse, disse: “Quero ser musgueiro [derivação de musiqueiro, alguém que trabalha com música] e pai de menino”. Coisas que acabaram sendo proféticas na minha vida: me tornei um cançonetista e pai de oito filhos. Eu tinha na infância um encantamento inicial pela forma como Luiz Gonzaga (1912-1989) [músico pernambucano conhecido como o Rei do Baião] cantava, pelas descrições que Humberto Teixeira e Zé Dantas [compositores parceiros de Gonzagão em clássicos como Asa Branca e Xote das Meninas] faziam da paisagem humana, física, geográfica da vida nordestina. Nasci e cresci naquele momento. Foram momentos extraordinários que me deram aquela sensação de que eu deveria levar avante aquele trabalho, ir para a rua render os “guardas de trânsito” [da música] e me tornar, eu mesmo, um deles.
Quando poetas como Noel Rosa e Vinicius de Moraes apareceram, foi exatamente na música popular, para mudar o trânsito, provocar “engarrafamentos” novos e, ao mesmo tempo, novas formas de influência no trânsito da palavra cantada. E a minha geração chega depois desses que fizeram intervenções importantes no trânsito da canção popular, no modo como uma canção popular chegava [ao público].
Aí aparecem o Caetano [Veloso], o Chico [Buarque], o Milton [Nascimento], o Paulinho da Viola. Estava na hora de rendermos os anteriores e passarmos a fazer do nosso modo, efetivamente muito influenciados por tudo aquilo que já tinha sido feito, mas também com aquela coisinha buliçosa na alma dizendo: “Vamos acrescentar uma coisinha, falar disso aqui de um jeito que ninguém falou até agora”. É aí que eu começo a ser mais consciente da minha complexidade, da complexidade do mundo e da vida humana. E aí [aparece] o papel do escritor, do descritor, do poeta.
Na canção Aqui Agora (1977), digo num dos versos que “amor é tudo o que move”. É uma declaração ousada, mas é defensável, verdadeira, explicável, compreensível. E é um pouco isso: esse sentimento do amor, sobre o amor, está em todas as canções que fiz, que têm como tema central a “amorabilidade”, a habilidade de amar. Eu acho que o amor concretizado, nos vários atos de aproximação entre pessoas que se amam – [sejam] duas, três ou quatro, quantas forem, ao mesmo tempo ou não –, nesses movimentos todos do amor, [tem sua] questão final no êxtase. O mais intenso, o mais completo possível, que sempre nos arremessa ao plano do divino. Nos arremessa [para] fora da atmosfera do real, do terreno, para a estratosfera do além, divino. O amor é sempre isso, é para isso.
“Essa é a função [do poeta], a gente veio para isso, para ser no nosso tempo uma espécie de aglutinador de tudo: dos tempos que nos antecederam, do nosso tempo e do tempo que nos sucederá. É para isso que a gente é poeta, músico, criador“
Gilberto Gil
Naquele período [do Tropicalismo], a gente tinha tido contato com os poetas concretos, todas as referências – como [o estadunidense] Ezra Pound (1885-1972) e [o francês Stéphane] Mallarmé (1842-1898) –, os procedimentos e as formas do proceder poético. A gente estava impregnado daquele ambiente concretista, e uma das ambições do Tropicalismo era abranger esses aspectos não convencionais do mundo poético.
Numa noite, na casa do Caetano [em São Paulo], a gente resolveu fazer uma canção desse teor, que é Bat Macumba (1968), e [sobre] como isso está impregnado no imaginário brasileiro, na religião afro-brasileira, no candomblé. E ali [estávamos] nós dois, com essas coisas todas na cabeça, e fomos desconstruindo essa frase, para depois reconstruí-la através da supressão e da adição das sílabas. Você vê um Batma[n] que aparece como intruso, no momento em que nós estamos cortando as sílabas. A construção do próprio elemento semântico da canção é feita ali, e personagens intrusos aparecem ali por força do próprio procedimento poético.
[Sobre as críticas à música Realce (1979)] eu entendi que haveria algum tipo de reserva em algumas manifestações de críticos, de colegas. [Diziam:] “Ah, mas Realce é uma música menor num certo sentido, é uma arrumação feita para poder atingir um público superficial dessa coisa toda pop, atual e tudo o mais”. A canção é tudo isso, mas ela ser tudo isso não retira dela, não anula nela um desejo natural, permanente, de profundidade, de elevação, que sempre move os poetas, os compositores. Então, tive que fazer a defesa dela em nome desse desejo permanente, profundo, de elevação e de profundidade que os poetas sempre têm. Foi uma defesa da sofisticação que eu entendo existir nessa canção, contra as alegações de superficialidade e banalidade que muitos fizeram em relação a ela. Porque era uma música para dançar, era uma disco music da época, à la Donna Summer. Eu tive que ser um pouco enfático contra o preconceito.
Durante a pandemia, passei dias, meses, horas tocando violão, simplesmente inventando canções, cançonetas. Algumas menores, outras um pouco mais ambiciosamente longas. E só tocadas, sem cantar, sem dizer palavra nenhuma a respeito daquelas sonoridades. São canções puramente musicais. Um dia, um dos meus amigos foi lá em casa e disse: “Você não precisa continuar sendo um compositor do jeito que sempre foi, porque pode fazer isso, pegar seu violão, chamar as pessoas e tocar para elas desse jeito”. Eu disse: “É uma possibilidade”.
Fiz [recentemente] uma viagem de excursão com a família e, quando voltei, peguei o violão em casa. Pelo menos sete dessas canções tinham ido embora [da mente]. Aí meu neto Bento, outro dia em casa, disse para a Flora: “Poxa, vó, por que você não gravou?” Ela disse: “Porque ele mesmo sempre fez isso [gravou]. Desta vez, por alguma razão, ele confiou demais [na memória]”. Foi um pouco isso mesmo, um excesso de confiança que eu, num determinado momento, resolvi dar à memória do velho. Fiquei todo cheio [de autoconfiança]: “Olha aqui como eu posso fazer isso!”. Coitado de mim, quando voltei da excursão, só ficaram três [composições].
[Sobre canções de Gil que têm um caráter antecipatório, visionário, sobre campos de interesse humano, há exemplos como] Futurível (1969), [que trata da] mecânica quântica. Pela Internet (1997) [que foi atualizada em Pela Internet 2, de 2018, e aborda] o celular, a célula, a eletrônica. Essa coisa de abrir porta sem precisar usar maçaneta, a distância. Todas essas coisas, este mundo, essa ciência nova que possibilita tecnologias revolucionárias. A defesa do meio ambiente [presente em canções como Refazenda]. Essa é a função [do poeta], a gente veio para isso, para ser no nosso tempo uma espécie de aglutinador de tudo: dos tempos que nos antecederam, do nosso tempo e do tempo que nos sucederá. É para isso que a gente é poeta, músico, criador.
O futuro, por mais que a gente queira, ele não se antecipa. A gente não tem essa capacidade, o futuro não se sabe. Se nem o passado, na verdade, a gente sabe, imagina o futuro! [O passado é muitas vezes] redescoberto, alterado, revisitado. Os tempos de hoje, as dificuldades do tempo de hoje, o horror deste tempo, eu vejo que já foi assim 50 anos atrás, tínhamos as mesmas queixas. Daqui a 50 anos, talvez estejamos ainda reproduzindo as mesmas queixas e, no entanto, as coisas têm mudado. O mundo muda, as coisas avançam. A gente é hoje, como humanidade, no sentido geral, melhor do que já foi.
Assista, na íntegra, ao bate-papo com Gilberto Gil e Carlos Rennó sobre o livro Todas as Letras (Companhia das Letras, 2022), realizado em agosto de 2022, no Teatro do Sesc Pompeia.
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Neste mês, discutimos a acessibilidade em museus e espaços expositivos. Para além de uma arquitetura acessível, instituições culturais apostam em recursos táteis, auditivos e visuais para ampliar a fruição e acolher públicos cada vez mais diversos. Conheça as políticas de acessibilidade de espaços como a Pinacoteca, Museu do Ipiranga, Museu do Futebol e unidades do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E de novembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que destaca a potência da criação coletiva e processual nas artes cênicas; uma entrevista com Eliseth Leão, que defende que a conexão com a natureza ajuda na manutenção da nossa saúde; um depoimento de Gilberto Gil, que se reiventa aos 80 e compartilha conosco memórias, vivências e inspirações; um passeio por croquis, desenhos de cenografia e fotos de palco que celebram o legado do italiano Gianni Ratto; um perfil de José Saramago (1922-2010), escritor português que faria um século de vida; um encontro com a diretora e dramaturga Joana Craveiro, da companhia portuguesa Teatro do Vestido; um roteiro por 5 espaços no estado de SP adornados por azulejos; um texto inédito da prosadora mineira Cidinha da Silva; e dois artigos que fazem um balanço sobre os 10 anos de criação da Lei de Cotas.
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