Maria Cláudia Curtolo e Jessica Ruth Ebaku. Projeto Culinárias de Refúgios, edição 2019, no Sesc São José dos Campos. Créditos das imagens: Lucas Lacaz Ruiz/ A13.
–
Por Maria Cláudia Curtolo*
Esta é a primeira pergunta que fazemos em produção cultural para colaborarmos em ações e projetos que teçam redes de sociabilização, pertencimento, atuação e transformação.
A situação de refúgio é uma condição legal criada a partir da promulgação do Estatuto dos Refugiados em 1951 pela Organização das Nações Unidas para proteger pessoas que, por motivos massivos de raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social e opiniões políticas, precisam se deslocar, forçadamente, de seu país de origem.
A Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984 complementa o Estatuto da ONU, considerando refugiadas, literalmente, pessoas que tenham partido de seus territórios de origem pelo fato de suas vidas, segurança ou liberdade terem sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça de Direitos Humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.
No Brasil, em 1997, com a instituição da Lei de Refúgio, que permanece seguindo o Estatuto da ONU e a Declaração de Cartagena, é incluído como critério os conflitos armados e, em 2017, com a instituição interna da Lei da Migração, pessoas em situação de refúgio, imigrantes e emigrantes são reconhecidos como sujeitos de direito.
É assim que, no Brasil, ao serem reconhecidas pelo Estado Nacional como refugiadas, pessoas nesta situação têm acesso a Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), fundamental para a garantia de seus direitos e o exercício de seus deveres enquanto migrantes durante seu período de permanência. Estes direitos envolvem segurança física, liberdade de expressão e movimento, proteção contra tortura e tratamento degradante, direitos econômicos e sociais, com destaque para o direito à água potável, à alimentação, à assistência médica, à infraestrutura básica de moradia, ao saneamento e ao transporte, à escola, ao trabalho e à conectividade. Já os deveres se baseiam principalmente no respeito às leis nacionais.
De fato e de direito, uma pessoa em situação de refúgio é um migrante. Porém, a recíproca não é verdadeira, pois nem todo migrante realiza o ato de se deslocar forçadamente, estando em risco de morte – seja ele um migrante interno que se movimenta por territórios de seu país de origem; seja ele um migrante internacional que partiu de seu país de origem.
Os processos de migração interna e internacional são fundamentalmente diversos e não estão nem um pouco ilesos às mazelas produzidas pelas desigualdades sociais, econômicas, políticas que regem relações humanas mundo a dentro e mundo a fora.
O trabalho com pessoas em situação de refúgio se iniciou no fim do segundo semestre de 2018 no Sesc São José dos Campos. Em 2019, na esteira de uma sensibilização estratégica para a questão do refúgio, envolvendo a participação inicial da equipe de funcionários da Unidade, realizamos o projeto processual Culinárias de Refúgios, uma série de ações ministradas por pessoas em situação de refúgio, cujas histórias de vida foram compartilhadas junto aos públicos participantes enquanto pratos típicos de suas regiões foram preparados. Contamos com congoleses, iraquianos, moçambicanos, peruanos, ugandenses e venezuelanos.
Foi nesta primeira edição que Jessica Ruth Ebaku, de Uganda, pouco antes de preparar a tradicional panqueca Kabalagada a base de bananas e farinha de mandioca e o biscoito de farinha de trigo Chin Chin (querido pelas crianças ugandesas tal como o bolinho de chuva por muitos de nós) optou por colocar sobre o pé da mesa suas sandálias vindas do outro lado do Atlântico ao narrar seu trajeto até o Brasil após sofrer violações de Direitos Humanos, sobretudo por causa de violência contra a mulher, conflitos sociais, guerra civil e opiniões políticas.
Durante esta edição do projeto, tivemos a oportunidade de entrar num contato bastante tênue, diante da invisibilidade real do tema, com pessoas em situação de refúgio de origem síria em São José dos Campos, que têm comércio de culinária, e com imigrantes venezuelanos, conforme mudanças socioeconômicas e políticas em curso no país. Muitas foram as dúvidas por nós mediadas dos públicos das oficinas com relação à condição legal do refúgio na região, no país e no mundo, para a proteção destas pessoas. Houve também demonstrações de empatia com os protagonistas e seus assistentes que, para além da riqueza culinária, foram frutos das escutas, trocas e interações socioculturais ao longo dos encontros do projeto.
Um dos feixes de percepção privilegiado que estamos considerando para nos aproximarmos e tornarmos mais visível a realidade do refúgio e da migração no Vale do Paraíba e Litoral Norte Paulista, é compreendermos mais sobre os trânsitos migratórios das pessoas em situação de refúgio e dos imigrantes.
A chamada Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte (RMVPLN), criada em 2012, composta por 39 municípios e por mais de 2,5 milhões de habitantes, passou a receber fluxos migratórios consequentes de processos que atingiram o Brasil nas primeiras duas décadas do século XXI, como se observa no “Atlas Temático: Observatório das Migrações em São Paulo – Migrações Internacionais”, de 2018, organizado por Rosana Baeninger e Duval Fernandes, que subsidia políticas públicas nos municípios, estados e federação.
Neste Atlas, constata-se que, entre os anos 2000 e 2016, o Brasil se consolidou na rota de migrações internacionais num contexto em que se misturam imigrantes altamente qualificados, os chamados trabalhadores do conhecimento de países do Sul e Norte Globais, com a intensidade da migração Sul-Sul, composta por imigrantes, em sua grande parte, com menor nível de escolaridade e ocupações menos qualificadas provenientes de (e entre) países do Sul Global. Esta constatação se dá a partir articulação das fontes Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros da Polícia Federal (SINCRE); Comitê Nacional para Refugiados (CONARE); Autorização de Trabalhos para Estrangeiros da Coordenação Geral de Imigração (CGIg) e do Conselho Nacional da Imigração (CNIg); Relação Anual de Informações Sociais (RAIS); e Censo Escolar e a Missão Paz – Centro de Estudos Migratórios.
O Atlas Temático em questão aponta que a Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte recebeu nos primeiros quinze anos do século XXI um percentual de 3,79% do total de imigrantes registrados no Estado de São Paulo para o período. Destacam-se aqui as cidades de São José dos Campos, com 34,7% dos registros; São Sebastião, com 29,7%; Taubaté, com 8,9%; Guaratinguetá, com 6,1%; e Jacareí, com 4,9%.
Estes imigrantes são principalmente angolanos, bolivianos, chilenos, chineses, coreanos, cubanos, equatorianos, haitianos, hondurenhos, japoneses, libaneses, mexicanos, norte-americanos, paraguaios, peruanos, portugueses, sírios, uruguaios e venezuelanos, habitando uma Região Metropolitana localizada entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que é polo de atração de fluxos internacionais de capital vinculados à ciência e tecnologia, e à pesquisa e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se constitui em alternativa para o desenvolvimento econômico e sociocultural frente às restrições de migrações internacionais impostas, em grande medida, por países do Norte Global.
No que diz respeito especificamente às pessoas em situação de refúgio nesta Região, em 2016, está contemplado o percentual de 3,53% do total de pessoas registradas no Estado de São Paulo no período. Os destaques são as cidades de São José dos Campos, com 40,1% dos registros; São Sebastião, com 21,1%; Guaratinguetá, com 7,2%; e Taubaté, com 7%.
Em diálogo com o Atlas Temático e no contexto da pandemia, atualizações produzidas a partir do cruzamento de dados do Sistema Nacional de Cadastros (SINCRE) e do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), presentes na publicação “Imigração internacional na macrometrópole paulista: novas e velhas questões”, de janeiro a abril de 2020, de Rosana Baeninger, Natália Belmonte Demétrio e Jóice Domeniconi, apontam que a Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte segue emergindo como espaço de trânsito das migrações internacionais junto das macrometrópoles de São Paulo e Campinas, com filipinos e argentinos despontando, e haitianos declinando.
Ainda, o protagonismo das migrações Sul-Sul segue trazendo novos processos para esta Região, com a intensificação da migração refugiada, marcada pela diversificação das questões culturais, e o destaque para os trânsitos dos venezuelanos de classe média e empobrecidos.
Na obra “Impactos da pandemia de Covid-19 nas migrações internacionais no Brasil – resultados de pesquisa”, de setembro de 2020, coordenada por Rosana Baeninger e Duval Fernandes, quanto ao interior paulista, entrevistou um percentual de 0,5% de imigrantes respondentes da Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte, residentes em São José dos Campos. Na investigação, reforçam-se importantes tendências relacionadas à diversidade de modalidades migratórias em curso no país, com as migrações altamente qualificadas Sul-Sul Globais e Norte-Sul Globais, mais brancas e com grande parte dos imigrantes trabalhando, junto e em flagrante contraste com a migração refugiada crescente, também branca, em diferentes estágios de vulnerabilidade socioeconômica, temerária diante da discriminação, preocupada com a destruição dos laços sociais e desconhecedora de seus direitos.
A sensibilização para o contato com pessoas em situação de refúgio por meio de projetos e ações socioculturais torna consciente a possibilidade de fazermos parte desta rede de diálogo e de subsídio às políticas públicas nacionais e internacionais bem como promovermos, coletivamente, Direitos Humanos, seja de nossos próprios lugares de existência, seja de nossos trânsitos, trocas socioculturais, ocupações e causas.
Em 2020, a segunda edição do projeto Culinárias de Refúgios no Sesc São José dos Campos teve apenas uma oficina presencial com o haitiano Manier Sael e sua Sopa Joumou, a Sopa da Liberdade, a base de abóbora e carne, que Manier narrou ser servida tradicionalmente no dia 01 de Janeiro, diante da independência de seu país de origem. E, então, a pandemia chegou para todos nós.
Durante este momento, em oficinas on-line, o projeto Culinárias de Refúgios contou com pessoas em situação de refúgio e imigrantes bolivianos, colombianos, indianos, sírios e venezuelanos que compartilharam suas histórias e suas situações de vida atuais com públicos internautas enquanto cozinharam diretamente de suas cozinhas e salas de jantar.
Todos são empreendedores que aliam suas memórias culinárias, ofícios e profissões nos países de origem e as novas experiências a partir das vivências no Brasil à geração de renda para o sustento familiar e/ou comunitário.
Fatima Ismail, da Síria, enquanto preparava os pratos milenares Hommus, à base de grão de bico, e Babaganush, à base de berinjelas, decidiu contar como imigrou inicialmente para a Jordânia na tentativa de aguardar a passagem da guerra em seu país natal e como chegou ao Brasil após sofrer a violação de Direitos Humanos por causa de opiniões políticas, guerra civil e religião. Celebrou sua história com uma larga bandeja ornamental em que os pratos preparados foram gentilmente dispostos e compartilhados junto aos familiares.
Fatima Ismail. Projeto Culinárias de Refúgios, edição 2020, para o Sesc São José dos Campos. Créditos da arte: Renata Oliveira Teixeira de Freitas
Estes encontros on-line trouxeram entusiastas de fora do Estado de São Paulo, da capital do Estado e de São José dos Campos, Jacareí, Taubaté, Caçapava, Paraibuna e Caraguatatuba, parte deles, saudosos frequentadores do Sesc. Exercer a compreensão dos desafios enfrentados pelos protagonistas durante uma crise sanitária e estabelecer relações mais empáticas após a escuta ativa de relatos e memórias foram as tônicas destas oficinas.
Agora, estamos em contato mais próximo com a Cáritas Diocesana de São José dos Campos, entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos Direitos Humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário, e Alex Prado, membro do Comitê e da Diretoria da Cáritas Diocesana, nos contou que a entidade “prestou apoio a refugiados venezuelanos que vieram em busca de apoio médico. Infelizmente, houve situação de óbito e a Cáritas também prestou auxílio para o retorno do corpo ao país de origem em respeito à dignidade da vida humana”.
Num panorama global de acirramentos envolvendo a situação de refúgio na pandemia, informações e dados disponibilizados por Gisele Netto, assistente de Campo Sênior no ACNUR, agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados, em relatoria de junho de 2020, revelam que 79,5 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar no mundo até o final de 2019. Deste montante, 50% são crianças, o que requer proteção específica; 85% vivem em países em desenvolvimento; e 77% está em situação prolongada de deslocamento, superior a cinco anos.
É neste contexto que este relatório do ACNUR, intitulado “Unindo forças pela educação de pessoas refugiadas”, aponta que a pandemia expôs lacunas não apenas na oferta educacional, mas em conectividade, acesso à água potável e bom saneamento, habitação segura, transporte viável e oportunidades de emprego, e que a adaptação de pessoas em situação de refúgio tem sido especialmente difícil nos países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos, entenda-se, nos fluxos da migração Sul-Sul.
As soluções possíveis sinalizadas no relatório são pautadas na articulação de atores e setores de governos centrais e locais, de escolas e universidades, do setor privado e de todos nós, concentrados no combate à xenofobia. Importante ressaltar aqui que o Código Criminal Brasileiro, no Artigo 140, prevê penalidade por motivos raciais a uma pessoa que comete insulto racial contra outra pessoa específica, isto é, quando uma pessoa ofende a honra de alguém usando elementos de raça, cor, etnia, religião ou país de origem.
Diante deste panorama mais amplo, permeado por camadas globais, nacionais, regionais e locais, em constante e acelerado movimento, ainda são muitos os caminhos a trilharmos em produção cultural na Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte, com projetos e ações socioculturais que colaborem na construção dos Direitos Humanos, da diversidade e da cidadania. Seguimos!
*Maria Cláudia Curtolo é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cursa pós-graduação em Gestão Cultural com foco em cultura, desenvolvimento e mercado pelo Senac. É produtora cultural e atua como animadora sociocultural no Sesc São José dos Campos.
—
BAENINGER, Rosana; e FERNANDES, Duval (coordenação). Atlas Temático: Observatório das Migrações em São Paulo – Migrações Internacionais. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 2018, 2ª edição.
BAENINGER, Rosana; e FERNANDES, Duval (coordenação). Atlas Temático: Observatório das Migrações em São Paulo – Migração Refugiada. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 2018, 2ª edição.
BAENINGER, Rosana; BÓGUS, Lúcia Machado; MOREIRA, Júlia Bertino; VEDOVATO, Luís Renato; FERNANDES, Duval; SOUZA, Marta Rovery de; BALTAR, Cláudia Siqueira; PERES, Roberta Guimarães; WALDMAN, Tatiana Chang; MAGALHÃES, Luís Felipe Aires (organizadores). Migrações Sul-Sul. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 2018, 2ª edição.
BAENINGER, Rosana; DEMÉTRIO, Natália Belmonte; e DOMENICONI, Jóice. “Imigração internacional na macrometrópole paulista: novas e velhas questões”. Em: Metropolização: dinâmicas, escalas e estratégias – Caderno Metrópole 22 (número 47), de janeiro a abril de 2020.
BAENINGER, Rosana; e FERNANDES, Duval (organizadores). Impactos da pandemia de Covid-19 nas migrações internacionais no Brasil – Resultados de Pesquisa. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 2020.
BAENINGER, Rosana; VEDOVATO, Luís Renato; e NANDY Shailen (coordenadores). ZUBEN, Catarina von; MAGALHÃES, Luís Felipe; PARISE, Paolo; DEMÉTRIO, Natália; e DOMENICONI, Jóice (organizadores). Migrações internacionais e a pandemia de Covid-19. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 2020.
CUNHA, José Marcos Pinto da; SILVA, Késia Anastácio Alves da; BECCENERI, Leandro Blanque (organizadores). Vale do Paraíba e Litoral Norte: diversidades socioespaciais. Campinas, SP: Librum Editora, 2019.
NETTO, Giselle. Relatório online “Unindo forças pela educação de pessoas refugiadas”. ACNUR, 2020.
REDIN, Giuliana (organizadora). Migrações internacionais [recurso eletrônico]: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil. Santa Maria, RS: Ed. UFSM, 2020.
Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo – Trabalho Sociocultural com Pessoas em Situação de Refúgio e Culturas em Trânsito. Em: https://www.sescsp.org.br/programacao/223140_CULTURAS+EM+TRANSITO. Último acesso em 17/06/2021.
UNHCR ACNUR. Agência da ONU para Refugiados. Em: https://www.acnur.org/portugues/. Último acesso em 12/06/2021.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.