Um alarme nos desperta para o começo da jornada de trabalho, outro sinaliza a hora de se exercitar e um terceiro indica que a live de música vai começar. Reuniões e ligações de família acontecem por videochamadas, enquanto notícias e outras informações roubam sua atenção em aplicativos e redes sociais. Se antes da pandemia de Covid-19 estes dispositivos já ocupavam a rotina de bilhões de pessoas em todo mundo, nestes dois últimos anos, eles tiveram seu uso intensificado diante da necessidade de restrições sociais. Consequentemente, a concepção de “uma vida normal” foi reavaliada, assim como a maneira como cuidamos da saúde. Neste contexto, de que modo a cultura e os meios digitais reinventam o cotidiano e participam de novas estratégias em busca de bem-estar e de uma vida saudável?
Para entender de que forma a cultura influencia a produção de saúde coletiva é preciso desdobrar seu conceito para além do modelo biomédico, cuja definição reduz a saúde à doença e à cura, centralizando-se apenas no papel do médico e do hospital. Esse modelo vem sendo questionado desde o século 20, uma vez que o conceito de saúde abarca as condições de vida em sociedade. Ou seja, nosso estilo de vida e comportamentos contribuem e muito na produção de saúde. Dessa forma, a possibilidade de frequentar equipamentos culturais e ter acesso a linguagens artísticas, seja em formato presencial ou digital, somam-se na promoção de saúde.
Segundo o médico patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, já foi comprovado que viver perto de um equipamento de lazer diminui em 30% o risco de doenças cardiovasculares. E quando uma pessoa realiza alguma atividade artística ou se reúne com pessoas para fazer algo prazeroso, ela produz mais substâncias anti-inflamatórias, “mas a gente não prescreve isso”, compartilhou em entrevista à Revista E, em julho de 2017 [leia a seção Encontros publicada na Revista E nº 253]. Sendo assim, “o desafio é incorporar esses novos conhecimentos a políticas de saúde”, disse o especialista.
Se antes da pandemia, a medicina e outros campos de conhecimento debruçavam-se sobre as interfaces entre cultura e saúde, as restrições e uma nova rotina impostas pela Covid-19 influenciaram esse cenário. A fim de entender esses reflexos, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e o Sesc São Paulo realizaram a pesquisa A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia – o lugar da cultura (leia boxe Outras PERSPECTIVAS). Coordenada pelos professores Ricardo Rodrigues Teixeira, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, e Rogério da Costa Santos, coordenador do LInC – Laboratório de Inteligência Coletiva da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com a colaboração da professora Sabrina Helena Ferigato, do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e apoio do Centro de Formação e Pesquisa (CPF) do Sesc, a pesquisa investigou as múltiplas estratégias criadas para reinvenção de modos de viver, considerando o papel de práticas e de atividades culturais, especialmente aquelas transmitidas online, na produção de saúde.
Respondido por mais de mil participantes, entre homens e mulheres, principalmente do Estado de São Paulo, o questionário levantou temas como sentimentos vivenciados na pandemia, impactos no cotidiano e na vida social, mudanças de hábitos e de comportamentos em relação aos cuidados com o corpo e com a saúde, além da relação com o tempo livre. Segundo o professor Ricardo Rodrigues Teixeira, a investigação partiu da hipótese teórica de que “a gente produz saúde enquanto produz mundos a partir de matérias-primas disponíveis”.
Para a fabricação de novos mundos possíveis: livros, filmes, peças, shows, cursos, vínculos sociais e outras expressões culturais. “Se compreendemos a saúde para além do bem-estar físico, incluindo, portanto, nossa própria condição subjetiva, nossa capacidade de estar em relação com os outros, bem como nossa apreensão do sentido de mundo, em seus aspectos políticos, históricos, sociais etc., então, o acesso aos processos culturais, sejam eles físicos ou digitais, constitui um vetor essencial para a produção dessa saúde ampliada”, analisa o pesquisador Rogério da Costa.
A capacidade humana de se reinventar e de se adaptar também reside no exercício da imaginação e da resistência para a criação de novos modos de viver. Para isso, a arte e a cultura exercem um importante papel ao longo de séculos atravessados por guerras, regimes políticos autoritários, desastres ambientais e pandemias. “A partir do que a Covid-19 nos provoca, temos uma nova oportunidade de reposicionar o lugar de importância da produção cultural no escopo das produções da saúde coletiva, por exemplo; tomando a produção cultural não apenas como uma dimensão do processo saúde-doença, mas como uma substância dos processos de produção de saúde e cuidado individual e coletivo”, ressalta a pesquisadora Sabrina Helena Ferigato.
Entre algumas análises prévias da pesquisa A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia – o lugar da cultura, Rogério da Costa destaca verbos utilizados por quem respondeu ao questionário. “Tivemos cerca de 50 páginas de afirmações como: aprendi algo que sempre desejei; fiz um curso que sonhava; reencontrei meu violão; inventei; criei; comecei a cozinhar; me formei; diminuí meu consumo; cuidei mais da saúde etc. São páginas de movimento emocional, subjetivo, intelectual, justo numa época em que tudo parou”, pondera. O pesquisador ainda destaca que a partir dos resultados obtidos pela pesquisa, será possível “ampliar o olhar dos produtores e promotores de cultura, de modo que possam perceber a correlação profunda entre ‘produção de saúde’ e a fruição cultural da sociedade”.
As restrições sociais impostas pela pandemia não só provocaram uma revisão dos modelos de trabalho e de consumo, das relações sociais, da fruição cultural e de outras esferas da vida como também derrubaram as fronteiras que julgava-se haver entre a vida online e offline. “O mundo real das pessoas não é ‘uma relação com a rede’ separado do “fora da rede”. As pessoas circulam nos dois ambientes o tempo todo”, disse o sociólogo Bernardo Sorj [leia Entrevista publicada na Revista E nº 298, de agosto de 2021].
Segundo a pesquisadora Sabrina Helena Ferigato está evidente o que já parecia óbvio: as plataformas digitais cumpriram e cumprem um papel importantíssimo na pandemia, para quem tem acesso a elas. No entanto, na pesquisa A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia – o lugar da cultura não é possível julgar este impacto.
“Isso porque, ao mesmo tempo em que as tecnologias digitais ganharam uma centralidade sem precedentes, conforme apontam os dados (da pesquisa) – entre os respondentes, 41,8% declaram um aumento de sua preocupação com a saúde em decorrência do excesso de tempo de exposição às telas e 53,4% tiveram suas preocupações com a saúde mental aumentadas pelo uso excessivo de dispositivos eletrônicos –, estamos diante de uma situação muito complexa. As saídas construídas para ela são igualmente complexas e podem expressar situações paradoxais às quais estamos submetidos”, pondera.
A sabedoria de povos ancestrais de diferentes culturas do mundo já alertava para os efeitos provocados por toda ação em excesso. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem muito, nem pouco, apenas o caminho do meio. O caminho da moderação deverá ser apreendido para que o uso das tecnologias digitais seja em prol da saúde individual e coletiva.
Para que isso aconteça, a pandemia de Covid-19 escancara a necessidade de refletirmos sobre o que pensávamos ser “normal” e até mesmo “saudável” em nossos hábitos e prioridades, segundo o pesquisador Ricardo Rodrigues Teixeira. Ficou evidente, por exemplo, a necessidade de revisar o uso que fazemos do tempo dentro e fora das telas. Experimentamos um momento único na história contemporânea de reformular a maneira como vivemos, como nos relacionamos e produzimos bem-estar e saúde em nosso cotidiano. E você? De que forma está se reinventando nesta pandemia?
Com a Constituição de 1988, a saúde passa a ser reconhecida como um direito universal, tendo como um de seus princípios basilares a integralidade. E garantir o direito à saúde integral é um objetivo que instaura um questionamento permanente a respeito do alcance dessa integralidade. Certamente, o direito à saúde integral não pode se restringir ao tratamento de doenças, mas deve incluir também a prevenção. E não apenas a prevenção e o tratamento de doenças, mas também a promoção da saúde. (…) a criação de um sistema público de atenção à saúde orientado pelo princípio da integralidade instaurou um campo fértil para a invenção de práticas de cuidado integral, que articulam tratamento, reabilitação, prevenção e promoção, em práticas individuais e coletivas, combinando saberes profissionais, tradicionais e populares, em ações interprofissionais, intersetoriais e coletivas, o que inclui também as práticas artísticas e culturais.
Ricardo Rodrigues Teixeira, no artigo Produzir saúde na produção do mundo, publicado na Revista do Centro de Pesquisa e Formação nº 10, de agosto de 2020.
O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais, de Ladislau Dowbor (Edições Sesc São Paulo, 2020)
Finalista na categoria Ciências Sociais da 63ª edição do Prêmio Jabuti, este livro escrito pelo economista e professor da PUC-SP Ladislau Dowbor propõe uma análise sobre um conjunto de mudanças do capitalismo, que está em transição para outro modo de produção. Dowbor aponta que foi deixada para trás a chamada era industrial e inaugurada uma “era do conhecimento”. Segundo Dowbor, podemos estar diante de uma sociedade mais conectada e colaborativa. No entanto, problemas ambientais, sociais e econômicos agravam-se, assim como o controle individualizado sobre as populações, por meio de algoritmos e de inteligência artificial. Afinal, que rumos tomaremos frente a esse “mundo novo”?
Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (Companhia das Letras, 2020)
Considerada uma parábola sobre os tempos atuais, este livro escrito por um dos maiores pensadores indígenas da atualidade critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza. “Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. (…) Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, descreveu Ailton Krenak.
O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, de Carola Saavedra (Relicários Edições, 2021)
O que pode a literatura em um mundo em colapso, assombrado pelo aquecimento global, por pandemias, pelo aumento da miséria, entre outras tragédias? Neste livro de ensaios da escritora Carola Saavedra, traz questionamentos que fazem o leitor vestir-se de encontros e desencontros sobre o que é ser humano. Através de uma escrita que incorpora a dinâmica de um “mundo desdobrável”, Carola reúne temas como o fim do mundo, a ancestralidade, a permacultura, a literatura feita por mulheres, a literatura indígena, entre outros temas. Um livro para se pensar a literatura como oráculo e abertura de novas possibilidades de estar no mundo.
Interdependence (2019), concepção de Adelina von Fürstenberg
Cineastas de 11 países, de todos os continentes, refletem sobre as relações entre a sociedade humana e o ambiente natural, agravadas pelas mudanças climáticas. As produções, que têm entre 7 e 11 minutos cada, transitam entre a ficção científica, drama, comédia e videoarte. Entre os filmes, o curta-metragem marroquino A sunny day (Um dia ensolarado), dirigido por Faouzi Bensaïdi, acompanha a vida de um homem que, ao “desfrutar” de um momento de lazer na praia, tenta desviar de uma onda de resíduos descartados no mar e dos efeitos devastadores das mudanças climáticas. Assista: www.sescsp.org.br/sesctv.
Descarte (2021), de Leonardo Brant
Documentário dirigido e produzido pelo cineasta paulista Leonardo Brant questiona o consumo e o descarte de resíduos no Brasil a partir de histórias inspiradoras de artistas, designers, artesãos e ativistas que transformam materiais recicláveis com inovação e sensibilidade. Entre os entrevistados está a catadora e artista Dulcinéia, presidente da Cooperativa do Glicério em São Paulo, que teve a vida transformada pela separação de resíduos e valorização do descarte. Saiba mais: www.descarte.net.
As Invasões Bárbaras (Canadá/França, 2003), de Denys Arcand
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e dos prêmios de melhor roteiro (Denys Arcand) e melhor atriz (Marie-Josée Croze) no Festival de Cannes, este longa-metragem traz na alegoria de um historiador à beira da morte, cercado apenas por poucos parentes e amigos, os valores da sociedade contemporânea. Enquanto sofre com a solidão e o distanciamento da filha, com quem fala apenas por uma tela de computador, no hospital, o protagonista reflete sobre a vida e também sobre as transformações econômicas, culturais e sociais ao longo da história da humanidade. Disponível na programação Cinema Em Casa do Sesc São Paulo até dia 4/02: sesc.digital/cinemaemcasa.
De que forma arte e cultura podem promover saúde? Com o objetivo de investigar essa relação, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo realizaram a pesquisa A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia – o lugar da cultura. “Ao realizar esta pesquisa, o Sesc, para além de contribuir enquanto instrumento de análise para identificar o impacto da pandemia no cotidiano do público respondente, possibilita iluminar certas percepções sobre o movimento da vida e o significado da cultura para a leitura do mundo, como diria Paulo Freire”, explica Andréa de Araújo Nogueira, gerente do Centro de Pesquisa e Formação.
A partir deste mês, os primeiros dados e análises da pesquisa estarão disponíveis ao público no portal do Sesc São Paulo. A ideia é que ao produzir um banco de dados quantitativos e qualitativos sobre diferentes aspectos da vida reinventada na pandemia, seja possível construir um mapeamento da condição cultural e da saúde dos participantes. E a partir desse material, contribuir para o desenvolvimento de novos projetos, políticas e práticas setoriais e intersetoriais que dialoguem com as necessidades e potencialidades identificadas.
Para investigar reinvenções de modos de viver e de se produzir saúde diante das mudanças impulsionadas pela pandemia, refletindo sobre o lugar da cultura e do mundo digital nesse contexto, a pesquisa se vale de um questionário dividido em dois blocos e que ficou disponível ao público no portal do Sesc até novembro de 2021. Respondido integralmente por 1.118 pessoas, o questionário levava, em média, 45 minutos para ser finalizado.
Para percorrer essa “trilha reflexiva”, foi possível escolher como guia um dos quatro artistas convidados: a jornalista, apresentadora e diretora, Adriana Couto; o cantor, ator, diretor e produtor teatral Pascoal da Conceição; o compositor e rapper Rael da Rima; e a professora, atriz e youtuber Rita von Hunty. “Concebida por meio de um questionário acolhedor em formato de experiência cultural em que artistas acompanham todo o percurso das perguntas, a pesquisa oferece indicadores dos efeitos deste período nos hábitos culturais, na vida prática e na convivialidade, e, fundamentalmente, proporciona fabulações sobre a produção de novos modos de vida”, ressalta a gerente do CPF.
Segundo um dos coordenadores da pesquisa, o professor Rogério da Costa, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o objetivo principal da pesquisa foi o de levantar os hábitos culturais, digitais e de saúde, antes e depois da pandemia, considerando diferentes aspectos da saúde, com destaque para a experiência subjetiva. “Nesta perspectiva humanista, em que podemos mensurar as conexões digitais e presenciais desenvolvidas neste momento tão dramático do mundo, reside a compreensão do quanto devemos ainda fazer, nos achegar, pois o Sesc preserva a profunda convicção sobre a dimensão cultural da vida em sua essencialidade. E a cultura só acontece na integração, na relação com o outro. Nas práticas democráticas, em que ouvir se sobressai às normatizações e entendendo que a saúde também está no valor afeto”, complementa Andréa de Araújo Nogueira.
Saiba mais: portal.sescsp.org.br.
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