Por Helen Baum
Ilustrações de Mirian Baião Cambolo
*Este relato traz conteúdos sensíveis que podem gerar gatilhos emocionais.
Registrar um relato é como entrelaçar fios de memória no tecido do presente, para que o passado nunca seja esquecido e, assim, possamos tecer um novo futuro. Muitas pessoas saem da prisão e desejam esquecer suas vivências. Eu, por outro lado, mergulho na militância contra o encarceramento feminino e em massa, e luto para manter viva minha história e a de tantas outras mulheres que são aprisionadas diariamente em nosso país. Dar visibilidade ao aprisionamento feminino e às múltiplas violências que nele ocorrem é uma forma de lutar para que não se repitam, e para que não sejam esquecidas.
Eu sou Helen Baum, mãe solo, hoje com 52 anos, sobrevivente ao crack, às ruas e ao cárcere. Além disso, sou integrante da 1ª Frente de Sobreviventes do Cárcere e do Núcleo Memórias Carandiru, que faz parte do Instituto Resgata Cidadão (Irec). Sou também pesquisadora do Instituto Rino Educação, pós-graduada em Direito Penal e mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Comecei a usar cocaína aos 17 anos, nas baladas com amigos do trabalho. Era um uso esporádico, geralmente aos fins de semana. Aos 24 anos, engravidei e interrompi o uso da droga por alguns bons anos. Em 2010, resolvi cursar Direito e também voltei a usar cocaína esporadicamente, mas, em 2011, minha mãe, funcionária do Fórum João Mendes, descobriu e tomou a guarda do meu filho, que tinha apenas 14 anos na época, e me expulsou de casa, proibindo-me de vê-lo.
Eu não tinha ideia de como a maternidade tinha me transformado, e perder o meu filho me fez perder a vontade de viver. Nada mais fazia sentido, e me afundei nas drogas, conhecendo o crack, um caminho sem volta talvez, se não fosse o amor incondicional pelo meu filho.
Quando comecei a usar crack, numa viagem delirante e sem ter para onde voltar, me adaptei às ruas do centro de São Paulo, encontrando pessoas iguais a mim nas diversas cracolândias do território. Senti-me acolhida nessas tribos, nas quais a maioria narrava histórias quase idênticas à minha, e me deixei estar em situação de rua por anos. Até que, em outubro de 2013, em uma dessas “assepsias” que a prefeitura insiste em fazer no centro de São Paulo, fui presa dentro da biqueira, assumindo uma quantidade de drogas considerável que a polícia encontrou no telhado. É óbvio que os verdadeiros traficantes não frequentam esses locais, mas o Estado precisa “mostrar serviço” para a sociedade e faz isso encarcerando pessoas vulneráveis. A biqueira era onde eu sentia alguma segurança, porque havia gente por perto. As mulheres em situação de rua passam por diversos abusos e violências, e estar sozinha pode aumentar os riscos.
Passei quatro dias na delegacia aguardando transferência para o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Franco da Rocha e só me dei conta da situação em que me encontrava quando entrei no convívio do CDP. Lembro-me do medo que senti ao saber que a prisão era em outra cidade. Eu não conhecia aquele local, não sabia onde era Franco da Rocha e entrei em pânico. Um desespero avassalador me invadiu, medo de não sobreviver naquele lugar. Meu único pensamento foi voltar a ver meu filho, nem que fosse por só mais um dia, e foi isso que me deu forças para superar dia após dia naquela máquina de destruir pessoas. Dias sombrios passaram, com crises de abstinência, adaptação, aprendizagem do dialeto (gírias carcerárias), conhecimento da disciplina da cadeia imposta pelas próprias mulheres presas e conquista do respeito entre elas. Afinal, “nóia” é nada na cadeia. Cheguei a fazer um dicionário com as novas palavras que aprendi na prisão.
Fiquei presa na penitenciária de Franco da Rocha, no interior de São Paulo, por 1 ano e 6 meses. Depois desse período, fui transferida para o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Feminino Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã, onde permaneci mais 1 ano e 9 meses.
Enfrentei muitos desafios na prisão devido à dependência química. Lutei, briguei e sofri, mas também encontrei empatia entre as mulheres que compartilhavam da mesma situação. Na prisão, não havia rotina, apenas o constante medo e a incerteza do que o próximo momento poderia trazer. A prisão é um lugar onde não se dorme, apenas se cochila, sempre alerta para qualquer perigo iminente. E, apesar de todas as dificuldades e desafios, a vida na prisão seguia, dia após dia, em uma realidade distorcida pela violência e pelo desespero. Foi uma época muito difícil, principalmente por ter de lidar com a abstinência do crack: uma luta constante entre sobrevivência e dependência química. Lembro-me vividamente do desespero e das dores intensas. Desde o primeiro dia na prisão, sabia que precisava sair dali para ver meu filho, que já era um pré-adolescente na época e que eu já não via há muito tempo, desde que fui para as ruas.
Por constantes confusões em que me envolvi por conta da abstinência, comecei a ter atendimento contra dependência química no Hospital Penitenciário (antigo Centro de Observação Criminológica (COC)), na Zona Norte de São Paulo, para o qual era levada uma vez por mês, ao contrário das outras mulheres que foram presas comigo, no mesmo local. Atribuo essa diferença de tratamento ao racismo, já que as outras mulheres não eram brancas como eu.
Não tem como falar sobre o sistema prisional sem falarmos sobre racismo.
Mesmo sendo atravessada pelo sistema, percebi que o tratamento era desigual. As mulheres negras enfrentavam uma discriminação ainda mais severa, com menos acesso a tratamentos de saúde, oportunidades de reabilitação e programas educativos, reforçando um ciclo de marginalização e exclusão.
Em 2015, fui transferida para o CPP do Butantã, em regime semiaberto, em que precisei recomeçar minha jornada carcerária. Essas transições são extremamente difíceis; cada unidade tem sua própria disciplina, e a adaptação com as novas companheiras não é nada fácil. É como se começássemos do zero: celas superlotadas, poucos pertences, sem “jega” (cama) e rodeada de pessoas estranhas, todas tentando superar suas dores.
Além das dificuldades de adaptação, enfrentamos uma constante sensação de insegurança e vulnerabilidade. A convivência com tantas histórias de vida diferentes e, muitas vezes, traumáticas, torna o ambiente ainda mais desafiador. Cada nova transferência é um recomeço forçado, em que precisamos nos ajustar às regras e à dinâmica do novo local, além de tentar construir novas relações de confiança em um ambiente que muitas vezes é marcado pela desconfiança e pela hostilidade.
A superlotação das celas agrava ainda mais a situação, aumentando o estresse e a tensão. A falta de recursos básicos e a precariedade das condições de vida dentro do sistema prisional dificultam a recuperação e a reintegração social. No entanto, apesar de todas essas adversidades, encontrar forças para continuar e buscar uma vida melhor se torna essencial para a sobrevivência e para a esperança de um
futuro diferente.
Minha mãe, que havia começado a me visitar em Franco da Rocha, parou de fazê-lo quando fui transferida. Além de a nova unidade ser mais distante, ela também estava lidando com problemas de saúde mental. Com o tempo, comecei a ter saídas temporárias, e meu único objetivo era reconstruir minha relação com meu filho. Na primeira oportunidade, procurei por ele e pedi uma chance para reconquistar sua confiança. Ele foi minha salvação, acolhendo-me com muito amor.
Apesar das dificuldades e do tempo que passamos separados, nosso reencontro foi um momento de esperança e redenção. Eu sabia que reconquistar a confiança dele não seria fácil, mas estava disposta a fazer o que fosse necessário. Cada pequena vitória, cada gesto de carinho, dava-me forças para continuar lutando contra o meu passado e construir um futuro melhor para nós dois.
Durante minhas saídas temporárias, aproveitava cada momento para mostrar ao meu filho que eu estava mudada e comprometida em ser uma mãe presente e amorosa. Passávamos tempo juntos, conversávamos e redescobríamos nossa conexão. Esses momentos eram preciosos e me motivavam a seguir em frente, enfrentando os desafios com determinação e coragem.
A jornada de reconstrução do nosso relacionamento foi longa e cheia de obstáculos, mas o amor incondicional do meu filho foi a chave para a minha transformação. Ele acreditou em mim quando eu mesma duvidei, e a confiança mútua nos fortaleceu. Juntos, começamos a criar novas memórias e a superar as cicatrizes do passado, construindo um vínculo ainda mais forte e profundo.
A experiência na prisão me deixou com muito ódio e revolta, o que dificultou minhas interações sociais. Foram quatro anos de luta, dores e solidão, até a minha soltura em 2017. Após ser liberada, fui morar em Praia Grande, no litoral de São Paulo, no mesmo ano em que minha mãe faleceu. Precisei fazer um tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para me libertar dos psicotrópicos que tomava.
A reinserção na sociedade tem sido difícil. Apesar de ter uma rede de apoio, formada principalmente por minha família e pela Primeira Frente dos Sobreviventes do Cárcere, ainda enfrento muitas dificuldades. A sociedade ainda me trata com preconceito e discriminação, e encontrar emprego na minha área de atuação tem sido praticamente impossível. É uma luta constante, e reconheço que muitas pessoas egressas do sistema prisional enfrentam os mesmos desafios.
Mesmo com o apoio que recebo, a rede ainda é pequena e não consegue atender a todas as minhas necessidades. É uma batalha que parece interminável, mas continuo lutando na esperança de que as gerações futuras encontrem um caminho mais fácil.
O sistema prisional me ensinou que sou muito mais forte do que jamais imaginei. Cada dia é uma prova de resistência e determinação, e, mesmo diante das adversidades, continuo a buscar uma vida melhor. A experiência também me fez perceber a importância de lutar contra o sistema prisional e a forma como a sociedade trata as pessoas egressas. A luta pela reintegração é coletiva, e é essencial que as vozes daqueles que passaram pelo sistema prisional sejam ouvidas e respeitadas.
A vida fora da prisão é cheia de desafios, mas também de pequenas vitórias que me lembram da minha capacidade de superação. Cada conquista, por menor que seja, representa um passo em direção a uma nova vida. A jornada é longa e árdua, mas é minha, e cada passo que dou é uma afirmação da minha força e resiliência.
Sobrevivi às ruas, ao crack e ao sistema prisional, portanto, sou muito mais do que um número de matrícula. No sistema prisional, a luta é pela sobrevivência todos os dias, e aqui fora não é diferente. Toda manhã antes de sair de casa, visto minha armadura, porque sei que estou saindo para lutar. Quando estava nas ruas, envolvida com o crack, achava que não tinha nada a perder, que só tinha dois caminhos: a morte ou a cadeia. Hoje não é assim, minha perspectiva mudou. Sei que não consigo mudar o mundo, mas meu objetivo é continuar lutando para abrir caminhos. Quero que, depois da minha morte, outras pessoas continuem lutando, pois todos os nossos direitos foram conquistados com muita luta e sacrifício. Tenho muitos medos, mas o maior deles é ter alguém que amo preso e não ter feito nada para mudar esse sistema.
Partirei com a certeza de que plantei sementes e de que mais pessoas, depois da minha trajetória, continuarão plantando sementes.
Hoje sinto muito orgulho de mim mesma, porque meu filho se orgulha de mim, e esse era o objetivo desde o início da caminhada.
Em 2022, voltei para a cidade de São Paulo para trabalhar no Núcleo Memórias Carandiru, onde estou até hoje lutando contra a invisibilidade do aprisionamento feminino e pelos direitos das mulheres presas e seus familiares e de egressas do sistema prisional.
Cada dia é uma nova oportunidade de transformar dor em força, de transformar cicatrizes em histórias de resistência. Sou uma voz entre tantas que clamam por justiça e dignidade, e continuarei a erguer essa voz até meu último suspiro. O sistema prisional não me quebrou; ele apenas revelou minha verdadeira força. Sou um testemunho vivo de que, mesmo nas trevas, há sempre uma centelha de esperança.
A vida me ensinou a valorizar cada pequena vitória e a continuar plantando sementes de mudança, na esperança de que um dia elas floresçam em um mundo mais justo. Minha jornada não termina aqui; ela continua em cada pessoa que se inspira na minha história para lutar por um futuro melhor. Hoje, sou a mulher que nunca imaginei que poderia ser: forte e determinada a fazer a diferença. E, assim, sigo adiante, com meu filho ao meu lado, orgulhosa de quem me tornei e esperançosa pelo que ainda está por vir.
Helen Baum
52 anos, sobrevivente ao crack, às ruas e ao cárcere. Integrante da 1ª Frente de Sobreviventes do Cárcere e do Núcleo Memórias Carandiru, que faz parte do Instituto Resgata Cidadão (Irec). Pesquisadora do Instituto Rino Educação, pós-graduada em Direito Penal e mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Mirian Baião Cambolo
Mirian Baião Cambolo é angolana e mãe de três filhos. Ela é especialista em tranças afro, desenhista em caricatura gráfica a lápis, ilustradora, dançarina, escritora, poeta e atriz.
#CANCELA: Ecos do Cárcere
Este relato integra o projeto #CANCELA: Ecos do Cárcere, que propõe uma programação transdisciplinar sobre o encarceramento em massa e a privação de liberdade, refletindo sobre o punitivismo enquanto política de Estado e suas intersecções com raça, gênero e classe social.
Em 2024, o #CANCELA: Ecos do Cárcere convida um ciclo de ações relacionadas aos diferentes aspectos que atravessam a vivência em penitenciárias femininas e mulheres no sistema carcerário. Violência, racismo, encarceramento em massa, saúde mental, relações afetivas e apartamento de seus familiares são alguns dos temas.
Acesse aqui o material de mediação e acompanhe a programação completa em sescsp.org.br/cancela.
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