Renato Teixeira já contava com dez anos de carreira quando um fato mudou sua vida: Elis Regina gravou uma composição sua. Em uma era pré-internet, ter uma música registrada pela cantora era como viralizar nas redes sociais ou ir parar no topo das paradas de sucesso das plataformas digitais. Ou seja: era tirar a sorte grande. A canção em questão era “Romaria”, que havia sido criada por ele em 1973, mas seria gravada apenas em 1977, no álbum Elis, tornando-se um grande sucesso e mudando não só o rumo da trajetória do artista, mas da música sertaneja no Brasil. “Foi ela que abriu a porta, porque o Água já tocava havia três anos”, analisa o artista, referindo-se à banda que o acompanhava.
Foi no embalo da repercussão da canção que Renato lançou um disco batizado a partir dela, em março de 1978, e realizou uma série de shows no mítico Teatro Pixinguinha, no Sesc Consolação. Com o Grupo Água, ele se apresentou entre os dias 11 e 15 de setembro, diariamente, às 18h30, provavelmente dentro do histórico projeto Seis e Meia. Em seguida, a banda Santa Morena, de chorinho, subia ao palco. Foi a última dessas noites, uma sexta-feira, que rendeu o registro que vem à luz agora no álbum Relicário: Renato Teixeira (ao vivo no Sesc 1978), sexto lançamento do projeto do Selo Sesc.
Embora desde a infância ele tenha se envolvido com a música — seu avô era compositor, e sua mãe, pai e tias estavam no métier, ainda que de forma amadora — e seu primeiro álbum, Maranhão e Renato Teixeira, seja de 1969, até a gravação de “Romaria” por Elis o cantor, compositor e instrumentista não tinha conseguido seu lugar ao sol no mercado fonográfico. Roberto Carlos havia registrado uma música sua, “Madrasta”, em 1968 (no álbum O inimitável), o que rendeu a Renato e a seu parceiro Beto Ruschel uma boa quantia em dinheiro. Mas, em 13 de dezembro de 1968, os militares haviam instituído o Ato Institucional n.º 5, o AI-5, endurecendo ainda mais a ditadura em vigor no Brasil. Piorou para todo mundo, e não poderia ser diferente com os artistas.
“No momento em que a censura começou a pegar pesado, o Brasil estava vivendo um período de exceção política, o mercado da música foi atingido em cheio. E todo mundo meio que tirou o time de campo: uns foram embora, outros se recolheram. Eu precisava viver. O que eu fiz, nesses dez anos anteriores a ‘Romaria’, foi me recolher na publicidade. Uma questão de sobrevivência”, lembra ele. “Eu não tinha, ainda, um grande sucesso, apesar de, em 1968, o Roberto Carlos ter gravado uma música minha. Eu já estava no mercado, mas me afastei e fui para a publicidade”, conta ele, que tinha uma produtora de jingles, assim como outros integrantes do Grupo Água, que o acompanhava.
A banda que subiu ao palco do Teatro Pixinguinha era formada por Carlos Alberto de Souza, o Carlão, na viola caipira; José de Ribamar Viana, o Papete (que partiu em 2016), na percussão; Rodolpho Grani Junior, no contrabaixo; Oswaldo de Almeida e Silva, o Oswaldinho do Acordeon; Sergio Werneck Muniz, o Sergio Mineiro (morto em 2005), no violão; e Marcio Werneck Muniz, o Marcinho, na flauta — justamente na noite da gravação, ele não pôde participar do show, e sua função também ficou a cargo de Sergio, seu irmão. Dudu Portes, morto recentemente, embora tenha tocado no álbum Romaria (1978), não é citado nesse show, que não conta com bateria, nem havia sido creditado como integrante do Grupo Água no disco Elis (1977).
A temática rural ganhou espaço na MPB nos anos 1970, talvez em uma resposta (consciente ou não) à acelerada industrialização que o país vivia. Mas, para Renato, a vida no campo não era uma idealização, e sim parte de sua história. Nascido em Santos, no litoral de São Paulo, ele foi criado até 11 anos na também praiana Ubatuba, onde cresceu ouvindo sua família tocar os grandes nomes do rádio da época, como Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Ivon Curi, Orlando Silva e Francisco Alves. Dali, foi para Taubaté, no interior do estado, onde viveu por cerca de dez anos e teve contato com “uma cultura sertaneja, campesina”.
Ao se mudar para a capital paulista, em 1967, conheceu a música universitária da época: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Também se encantou por ela. Até que, um dia, quando estava na Galeria Metrópole, no Centro de São Paulo, com o publicitário Marcus Pereira (que, mais tarde, criaria o importante selo com seu nome), o compositor carioca Sidney Miller (1945-1980) apresentou a Renato um artista que já tinha alguma estrada na música, mas também ainda não era famoso: Paulinho da Viola. Ele mostrou “Coisas do mundo, minha nega” (“que o Sidney dizia que era o melhor samba já composto”), e Renato ficou muito impressionado. “Falei: ‘Esse cara toca a vida dele.’ Ele conhecia aquilo que ele estava cantando numa profundidade que eu não tinha na minha música”, lembra ele.
A partir dali, ele resolveu, então, “voltar” para Taubaté. “Não fisicamente, mas voltei culturalmente, voltei emocionalmente. Entendi que, se eu quisesse ser tão verdadeiro quanto o Paulinho da Viola, tinha que cantar as coisas que eu conhecia. Então, aí, eu pego essa Taubaté que me criou, com os seus símbolos, com as suas músicas: esse era o meu mundo. Eu falei: ‘Agora vou achar meu som.’ E foi muito legal, porque a primeira coisa que nasceu, no comecinho de 1973, por aí, foi ‘Romaria’”, rememora.
Aos 79 anos, o artista conta que ficou muito feliz com o disco ao vivo e a possibilidade de se transportar para aquela ocasião e se reencontrar com sua versão de 33 anos. “Esse álbum parece que encaixa as coisas na minha cabeça, dá uma ordem nisso tudo para mim. Ele é muito bonito, muito bem tocado, muito bem cantado. Eu ainda não tinha a habilidade que tenho hoje para lidar com o público, então pega um pouco da minha ingenuidade, de falar coisas. O que eu digo é dito na hora, não tem nada escrito, nada pensado”, analisa ele. O contrabaixista Rodolpho Grani Junior celebra o pioneirismo do Grupo Água. “A gente descobriu uma forma nova de fazer a música do sertão, deu uma outra tradução para ela. E fomos bem avaliados por todo mundo”, pontua.
Das dez músicas tocadas no show, cinco eram do álbum Romaria (1978): “Sentimental eu fico”, “Viola malvada”, “Vira-bosta”, “Antes que aconteça” e a faixa-título. Três eram do trabalho seguinte, Amora (1979): a canção que batiza o disco, “Canta moçada” e “Sina de violeiro”. “Madrasta” havia sido gravada por Roberto Carlos e defendida por ele no IV Festival de Música Popular Brasileira (“Madrasta”), em 1968, e também foi registrada por Taiguara, no mesmo ano. Já “Murro n’água” ficaria inédita em disco até 2015, quando foi incluída na versão remasterizada em CD de Amora.
Com uma banda totalmente acústica, a sonoridade combina a música caipira (sobretudo pela presença da viola caipira e do acordeom) a influências como o folk americano (àquela altura também em alta entre alguns artistas no Brasil). Os vocais sobrepostos remetem à música sertaneja, mas também à MPB de nomes como os artistas do Clube da Esquina. A apresentação abre com a melancólica “Sentimental eu fico” (que também havia sido gravada por Elis Regina no álbum Elis, de 1977, em versão mais dramática do que a de Renato Teixeira).
Em seguida, o interior se faz presente explicitamente, em “Viola malvada”, que começa com uma algazarra que combina apitos, sanfonas e gritos que lembram os dos caubóis: “Chora, viola malvada / no punho da minha mão / Que a lua tá desgarrada / Tá perdida no sertão / Lua velha, cara inchada / pinta tudo de azulão”, canta o artista. A pandeirola traz um ar contemporâneo, enquanto a sanfona ora lembra a gaita presente no folk, ora traz a tradição interiorana brasileira. A sanfona faz as vezes de berrante em alguns momentos.
A terceira canção, “Vira-bosta”, tem uma levada com forte influência do country americano, mas conversando com a música brasileira (no toque do triângulo, por exemplo). Sons de passarinhos se ouvem em alguns momentos. A letra, divertida, observa a urbanização crescente do país nos anos 1970. “É lindo o canto do canário Volkswagen / Emocionante o relincho de um Corcel”, diz a letra em um trecho, em referência a uma marca e a um modelo de carro, respectivamente. “O meu quintal fica no centro da cidade / Quase do lado do Viaduto do Chá / Como se vê, o clima é bom e o ar é puro / Só falta é fazer um muro que é pro povo não me olhar”, segue ele, em outro momento, com ironia. Ao final do número, Renato se dirige à plateia pela primeira vez naquela noite.
“Essa música que eu acabei de cantar chama-se ‘Vira-bosta’, tá no meu LP Romaria e passou pela censura. Outra coisa que também passou pela censura foi a história de uma família da roça, do sertão, com todas as suas desgraças”, explica ele, antes de emendar em “Sina de violeiro”. Com a viola caipira em evidência, é uma das mais sertanejas do repertório, na sonoridade e na temática. Em 1978, a luta pela anistia aos perseguidos pela ditadura havia se intensificado. São Paulo havia sediado, em novembro daquele ano, o 1º Congresso Nacional pela Anistia. Havia o princípio de uma abertura em curso, o que dava a Renato uma certa liberdade para fazer esse tipo de comentário (e de letra) sem ser preso.
Antes de começar a faixa seguinte, ele se dirige ao público novamente. “Depois que a Elis gravou Romaria, foi assim como se eu tivesse obtido um diploma de faculdade. Poder exercer a profissão, assim, numa boa. Então você… Aparecem shows, aparecem discos para se gravar. E realmente é uma situação muito confortável, muito boa, porque dá para a gente trabalhar direito, trabalhar legal. Mas eu já gravei música com muita gente. Eu tô há dez anos, e o que cês tão vendo aqui em cima não é nada de novo. Eu faço essa música há bastante tempo. É a boca do funil que é um pouquinho apertada para a gente passar, né (risos)?”, diverte-se ele.
Ele segue enumerando os artistas com os quais já havia gravado: Quarteto em Cy, MBP4, Nara Leão, Ronnie Von, Nalva Aguiar, Rinaldo Calheiros e Jorge Veiga. “Mas uma boa gravação de uma música minha, feita pelo Roberto Carlos, no festival de 68 Record, foi ‘Madrasta’. Então eu nunca cantei essa música em show, não. Mas agora, um dia, a gente tava tocando, brincando assim, saiu. Então, eu acho legal cantar essa música. Vou cantar pra vocês”, diz, emposta a voz na última frase, fazendo a plateia rir. “Minha madrasta, bem-vinda na varanda / onde me escondo dos medos / na paz que ofereço a você / nossa casa, aceite o afeto”, diz a letra da singela canção. Composta no início da carreira profissional de Renato Teixeira, a balada não sofreu influência da música caipira, remetendo à tradição da canção brasileira no período.
Antes do próximo número, ele apresenta os músicos, elogiando e fazendo graça com eles: diz que Oswaldinho não é o melhor sanfoneiro do Brasil, porque o posto pertence a Pedro Sertanejo, pai do instrumentista, e brinca que apresentava Sergio Mineiro como “John Travolta da Pampulha”, mas que ele esteve acamado, e, portanto, está abatido. Também frisa que o violonista é músico-chave da banda. “É o cara que deu uma orientação assim pra todo o som, inclusive pro arranjo de ‘Romaria’ que tá no disco da Elis, e a gente vem fazendo todo esse trabalho praticamente juntos há muito tempo”, pontua. Renato, Carlão, Sergio, e Marcinho inclusive tocaram na gravação da cantora, assim como o baterista Dudu Portes, que mais tarde se juntaria ao grupo.
Antes de interpretar “Amora”, o cantor explica que a música estará em seu próximo álbum, que ele começa a gravar na segunda-feira seguinte. “Amora é uma frutinha que eu acho que… É um momento muito bom da gente lembrar da amora, essa frutinha, porque não tem mais nada pra se acreditar mesmo. Então eu acho ótimo, sabe, a amora é uma coisa real na vida de todo mundo. E eu proponho assim, né, que todos comam amora, pra ver o que acontece”, comenta ele, cheio de sarcasmo, provocando risos na plateia. Bucólica e com a pegada de “sertanejo contemporâneo” proposta pelo grupo, a música fala de um amor inocente: “Vou contar para o seu pai / Que você namora / Vou contar pra sua mãe / Que você me ignora”.
A sétima canção é releitura de uma música gravada por Tonico & Tinoco, uma das duplas mais importantes da história da música sertaneja no Brasil: “Canta moçada” (de Tonico, Nhô Fio e Nonô Basílio), que também integra o álbum Amora (1979). “Infelizmente, o preconceito até hoje não deixou que o público pudesse sentir toda a pureza e toda a beleza do trabalho deles, mas um dia isso fatalmente irá acontecer. Foi um dos grandes sucessos da dupla”, explica ele, antes de interpretar a canção, em versão com forte influência folk.
Ao anunciar “Murro n’água”, Renato diz que a música também estaria em Amora, mas ela acabaria ficando de fora do trabalho. “Todo mundo já deu o seu murrinho n’água, ou com seus burrinhos n’água (risos). Também tá no próximo disco. Vai sair na época do Natal, uma época assim boa, é um presentinho tranquilo”, diverte-se, fazendo o público rir mais uma vez. A letra pode ser interpretada como um protesto sobre a situação do trabalhador: “Escuta o que eu tô dizendo, rapaz mocinho / A gente é quem planta a uva, mas não bebe vinho / A gente é quem mantém teso o arco da velha / E, assim, vamos nos ralando devagarinho”. A música caipira brasileira marca presença com a viola, mas a levada é bastante influenciada pelo folk. A flauta e os sons de passarinho trazem um clima campesino.
A nona faixa é a melancólica “Antes que aconteça”, somente com a viola e o violão e vocais de apoio acompanhando o cantor. “Antes que aconteça / da fera te pegar / Trate que pareça / vontade de cantar / Nada muito igual / ao ato de enganar / Aja como quem / vai trabalhar”, canta Renato. Com clima grave, vai ao encontro da música de protesto da época. E, fechando os trabalhos, com aquela que não poderia ficar de fora: “Romaria”, ovacionada desde que ele entoa os primeiros versos. “Sou caipira, pira, pora / Nossa Senhora de Aparecida / Ilumina a mina escura / E funda o trem da minha vida”, diz o inesquecível refrão, nessa homenagem aos romeiros (peregrinos) que vão a Aparecida do Norte (SP) – cidade que fica a pouco mais de 40 quilômetros de Taubaté e na qual Renato Teixeira se apresentou muitas vezes.
Para o artista, o Relicário: Renato Teixeira (ao vivo no Sesc 1978) capta uma época decisiva em sua carreira, que impactaria tudo o que aconteceria em seguida. “O tempo passou, e eu vi que ali, sim, estava começando um momento inédito na música brasileira. Foi a primeira banda a aplicar o conceito MPB na música caipira, como, num determinado momento da nossa história, os músicos aplicaram jazz no samba e criaram a bossa nova”, compara. “Eu fiz muitos discos, estou fazendo um monte ainda, mas esse tem um sabor completamente diferente. Se hoje eu estou fazendo disco com o Fagner, com o Antônio Adolfo, com o Yamandu Costa, se meu público é de duas, três mil pessoas, tudo isso eu devo a esse momento. Foi aí que eu plantei a minha semente. Esse disco devia se chamar ‘Semente’ (risos).” E que belos frutos ela rendeu.
Kamille Viola é jornalista e pesquisadora musical. Autora do livro África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver, lançado pelas Edições Sesc.
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