Diferentes camadas do envelhecimento ganham protagonismo em obras literárias atuais, com personagens complexas em tramas plurais
POR MATHEUS LOPES QUIRINO
Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra
Nunca desejamos nem nunca esperamos a velhice, e quando tentamos imaginá-la foi sempre de forma superficial, grosseira e distraída.” A frase, crua e contundente, foi escrita pela escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) num artigo publicado no jornal italiano La Stampa, para o qual colaborou, entre 1968 e 1970. No texto intitulado justamente “Velhice”, Ginzburg, aos 52 anos, classificou o período como “uma zona cinzenta” de difícil compreensão, tanto para a literatura quanto para a sociedade, em que “o mundo que temos hoje diante dos olhos não nos espanta, ou nos espanta muito pouco”. A perspectiva da escritora sintetizava a visão de sua época sobre o envelhecimento.
Meio século depois, uma safra de novos livros chega para atestar justamente o contrário. Em um mundo hiperconectado e em veloz transformação, personagens idosas são retratadas com sentimentos à flor da pele. Obras como Ojiichan (2024), do brasileiro Oscar Nakasato, e A segunda vinda de Hilda Bustamante (2024), da argentina Salomé Esper, mostram essas figuras de forma multifacetada e abordam desde a transformação pessoal ao surgimento de “primeiros amores” tardios.
Também de safras atuais, títulos como Misericórdia (2024), da portuguesa Lídia Jorge, e Humanos exemplares (2022), da brasileira Juliana Leite, são ficções centradas nos dramas de mulheres idosas. Neles, é possível observar a persistência das protagonistas em profunda reflexão sobre o fim. No romance de Jorge, o presente é o foco, onde mostra-se a riqueza do cotidiano no Hotel Paraíso, uma casa de repouso agitada. Já na ficção de Leite, uma centenária passa a limpo sua biografia, ressaltando períodos difíceis, como a ditadura militar.
Para Maria do Rosário Alves Pereira, professora do programa de pós-graduação em letras do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), hoje os dramas íntimos de personagens mais velhas abordam questões diversas do contemporâneo, a exemplo do feminismo. “Ora enfatizando o silenciamento do corpo feminino, ora tendo a morte como pano de fundo ou a degenerescência do corpo físico e, em outras obras ainda, percebe-se um movimento, sobretudo nas autoras mais contemporâneas, de ressignificar a velhice.” Pereira cita também Invisíveis olhos violeta (2022), de Rosângela Vieira Rocha, e a coletânea de minicontos de Alê Motta, Velhos (2020), como obras nacionais imersas nesse tema.
Derrubar crenças
Essa mudança de abordagem na literatura nas últimas décadas reflete o crescimento da população idosa em âmbito mundial. Segundo levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU), a expectativa de vida global aumentou de 64,2 anos em 1990 para 72,6 anos em 2019, com projeções indicando que ultrapassará os 77 anos até 2050. No Brasil, a expectativa de vida em 2024 atingiu seu maior número, de acordo com o IBGE: 76,4 anos. Segundo Danute Salotto, geriatra do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (FMUSP), é necessário romper preconceitos relacionados ao etarismo para lidar com as questões naturais dessa fase: “O avanço da expectativa de vida exige ações que integrem os idosos ao tecido social, com políticas de saúde focadas em prevenção para objetivarmos o envelhecimento saudável e não doente, e uma reabilitação que mantenha a autonomia e participação”, constata.
Como descreveu a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) no livro A Velhice (1970), historicamente essa fase da vida era retratada por meio de duas categorias de personagens: “loucas” e “sábias”. A partir dessas condições, o arco narrativo costumava reforçar estereótipos, e a complexidade das tramas era baixa. “Limitadas a essas duas categorias, as personagens velhas tinham seu desenvolvimento comprometido e, por consequência, dificultavam uma maior identificação com os leitores. Hoje essas personagens expõem suas fragilidades, incertezas e desafios, demonstrando para os leitores que o passar do tempo ou as experiências que tiveram não as tornaram uma fonte inesgotável de sabedoria e convicção”, analisa Cristiane da Silva Alves, que pesquisou o tema na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Características como força, resiliência e garra passam a compor a identidade de personagens idosas na literatura atual, sem deixar de abordar aspectos como suscetibilidade ao erro, tratado como natural em qualquer etapa da vida, compondo, assim, perfis mais complexos nessas representações. “A literatura escrita no século 21 tem apresentado diferentes camadas das personagens de idade avançada. Nas produções de décadas mais recentes, é possível observar uma resistência feminina maior. As personagens se mostram mais empenhadas na busca por autonomia, driblando as imposições dos filhos e da sociedade em geral, tentando preservar seu lugar e sua voz”, assinala Alves.
As personagens (mais velhas) se mostram mais empenhadas na busca por autonomia, driblando as imposições dos filhos e da sociedade em geral, tentando preservar seu lugar e sua voz.
Cristiane da Silva Alves, doutora em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Para a pesquisadora da UFRGS, retratar alguém velho como detentor de sabedoria não é o cerne da questão. “O problema é limitar-se a isso, como se a pessoa velha estivesse sempre apta e disposta a aconselhar e não tivesse, também, as suas questões”, pondera. No caso do “louco”, explica Alves, “frequentemente posto à margem e/ou silenciado, há risco de recair na caricatura, desumanizando a personagem ou desmerecendo a sua narrativa”. Por fim, “um dos avanços da literatura mais recente é justamente demonstrar que, como qualquer ser humano, as pessoas velhas não são perfeitas, como também não são, ou não devem ser, apartadas da sociedade”, complementa.
Tramas complexas
O novo romance do escritor paranaense Oscar Nakasato, Ojiichan, que, em japonês, significa “vovô”, acompanha as lutas e metamorfoses de um protagonista engenhoso e reflexivo chamado Sr. Satoshi. Funcionário de carreira há décadas em uma escola pública, ele é aposentado compulsoriamente ao fazer 70 anos e sua sagrada rotina se vê abalada. A vida do professor passa, então, por uma mudança radical. Depois de algumas inesperadas perdas, ele é obrigado a viver em um pequeno apartamento longe do centro da cidade. Satoshi aceita seu destino, ainda que contrariado, e parte com a mulher Kimiko, que sofre de Alzheimer, para o novo endereço.
“Quando estava escrevendo o livro, percebi que a gente não consegue escapar de quem a gente é. Quando você deixa coisas para trás, você deixa uma parte do que você é, sua história. É uma espécie de morte”, descreve o escritor. Autor do romance Nihonjin (2011), vencedor dos prêmios Benvirá e Jabuti, Nakasato, que tem 61 anos, escreve para mostrar como a vida de seu protagonista é marcada não só por adversidades, mas por amizades, amor, reconstrução… e só está começando. “Os velhos são diferentes, mas são tratados como iguais. Essas diferenças precisam ser respeitadas”, defende.
(foto: Acervo Oscar Nakasato)
No romance, a ausência provocada pelo Alzheimer é retratada com profundidade. “Kimiko não sabia que a vida lhe sequestrara o tempo e o espaço, as duas dimensões em que o ser humano vive”, escreve o autor em Ojiichan. Ao narrar o processo da esposa do protagonista, Nakasato reflete sobre a mesma situação que passou com o pai. “Convivi por seis anos com a doença do meu pai, e, quando ele morreu, foi só o final de um processo. Nossa relação se pautava na consciência de que eu era o filho dele, e na dele, de que ele era meu pai. Quando ele deixou de me reconhecer, foi uma espécie de morte. Eu não sabia quem eu era. A morte é um processo, não um ato”, reflete. O tema rendeu inúmeras pesquisas do autor, que também se inspirou em dramas reais, pinçados de reportagens que contavam o contexto solitário dos idosos no Japão.
Camadas contemporâneas
Em uma espécie de movimento contrário, o romance A segunda vinda de Hilda Bustamante (2024), estreia da escritora argentina Salomé Esper no gênero, narra com ares fantásticos a ressurreição de uma senhora em um pequeno povoado argentino. A morte ganha uma feição tragicômica, embalada por uma prosa sensível que parte do renascimento como possibilidade de reparar erros e fortalecer laços. “Se há dor na perda do que nos é próprio, dói duas vezes mais perder aquilo que foi conquistado, o carinho conquistado, o abraço conquistado, a confiança conquistada”, escreve a autora, num trecho do livro.
“[No romance,] foram os outros que tiveram de acomodar esse vazio do luto em suas vidas. Penso que a morte foi um tema recorrente na minha escrita, agora com o romance e antes com a poesia, porque me interessava dar vazão à ideia do absurdo de alguém deixar de existir de um momento para o outro, por qualquer razão, mesmo que seja esperada”, conta Esper. Ao narrar o retorno da protagonista, Hilda analisa sua vida com uma sabedoria transcendental e questões como amor, amizade, machismo e as oportunidades que teve na vida ganham camadas contemporâneas: “Hilda e sua pele fina, com poucas rugas para a sua idade e ainda menos para a sua morte. Hilda, a dos olhos cor de caramelo, pequenos. Hilda, que não teve filhos e é avó. Hilda, a companheira de Álvaro, a mulher Devota”, descreve a autora, num raro momento de solidão em que a personagem encara suas dúvidas.
(foto: Paula Luvatti)
Produções recentes da literatura trazem um processo de desmistificação de papéis sociais, mostrando como as novas gerações de escritores se propõem a narrar a vida por olhos experientes. A pesquisadora Cristiane da Silva Alves reflete: “a solidão e a ausência de escuta são, com bastante frequência, questões que se destacam. No caso das mulheres, somam-se as dificuldades para encontrar ou manter parcerias amorosas e/ou sexuais e, também, uma tentativa maior de controle dos filhos ou das pessoas próximas, buscando frear seus desejos ou limitar suas ações e espaços.”
No romance Chuva de papel (2023), da jornalista e escritora Martha Batalha, a confiança é o elo entre Joel, um jornalista veterano que se vê impossibilitado de viver só, e Glória, uma senhora que vive em um apartamento na Tijuca. “Joel viveu da porta para fora, reportando as notícias do Rio, enquanto Glória viveu da porta para dentro. São duas figuras opostas e, também, semelhantes por carregarem o peso da memória, do arrependimento e da solidão”, conta a escritora.
A imperfeição das personagens e o peso da memória dão o ritmo do romance de Batalha, que mostra como a intensidade do Rio de Janeiro marca quem vive a cidade. “Eu vejo os dois como ilhas, figuras engessadas por seus limites mentais, que a princípio toleram, depois se ajustam e finalmente apreciam a presença alheia, apesar de não serem capazes de reconhecer”, explica.
Ou seja, a pluralidade de tramas que trazem as pessoas idosas ao centro da narrativa tem sido notável. Nos últimos anos, o protagonismo da população acima dos 60 anos ainda pautou o mercado publicitário, o cinema e as telenovelas. A professora Maria do Rosário Alves Pereira destaca: “não podemos perder de vista, no entanto, o fato de que a publicidade vem reconhecendo no público idoso um nicho de mercado – haja vista o envelhecimento da população brasileira. A literatura, por outro lado, acompanha, em alguma medida, as questões que são discutidas socialmente”, arremata.
(foto: Chico Cerchiaro)
para ver no sesc
Ler em todas as fases da vida
Sesc São Paulo mantém programa permanente com ações voltadas para pessoas idosas e promove acesso à leitura para todas as idades
Criado em 1963 pelo Sesc São Paulo, o programa Trabalho Social com Pessoas Idosas estimula a reflexão sobre o envelhecimento e a longevidade, com atividades que promovem integração social, acesso à cultura e ao lazer, além de estimular a qualidade de vida. Entre as iniciativas estão: oficinas, encontros e palestras que abordam temas como saúde, educação e convivência intergeracional. Além disso, unidades como Belenzinho e Pinheiros, na capital, e Bertioga, no litoral, organizam clubes de leitura para pessoas idosas, promovendo reflexão sobre as obras escolhidas.
A instituição também é referência em projetos de incentivo à leitura. As 19 bibliotecas presentes nas unidades oferecem um acervo com mais de 150 mil títulos de literatura de ficção e não ficção, acessível para consulta online. O serviço é gratuito, com empréstimos mediante apresentação da Credencial Plena ou de documento oficial com foto.
As bibliotecas e os Espaços de Leitura também promovem atividades como mediação de leitura, oficinas de escrita, contação de histórias, bate-papos e intervenções artísticas. A programação conta com a colaboração de bibliotecários e profissionais convidados.
Além das bibliotecas das unidades, o programa BiblioSesc amplia o acesso à leitura e ações culturais por meio de caminhões que funcionam como bibliotecas móveis. Os veículos percorrem bairros de São Paulo e região metropolitana levando serviços de empréstimos e consultas de livros, jornais e revistas. As visitas ocorrem quinzenalmente, em cada um dos pontos atendidos, incentivando o hábito da leitura.
Saiba mais: sescsp.org.br/tspi e sescsp.org.br/bibliotecas
Sesc Pinheiros
Clube 60+
Leitura coletiva de um livro previamente selecionado e disponível na biblioteca, acompanhada da mediação por um especialista. Inscrição no local, 30 minutos antes.
Dia 21/3, sexta, às 15h: Descolonizando Afetos (2023), com mediação da autora Geni Núñez. Dias 3, 10, 17 e 24/4, quintas, às 15h: Planta Oração (2022), com mediação da autora Calila das Mercês e Blenda Souto. Grátis.
Sesc Belenzinho
Ponto em Verso: Um Clube de Leitura com Bordado
Encontros mensais de bordado e leitura para dialogar de modo coletivo sobre livros de escritoras negras. Com curadoria de Blenda Souto Maior.
Dia 22/3, sábado, às 15h: Cassandra em Mogadicío (2024), Igiaba Scego (Somália/Itália). Dia 26/4, sábado, às 15h: Os Pretos de Pousaflores (2023), Aida Gomes (Angola/Portugal). Grátis.
Sesc Bertioga
Clube de leitura
Bate-papo no dia 28/3, sexta, às 15h30: Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva.
Inscrições dia 3/4 (para retirada do livro).
Bate-papo no dia 25/4, sexta, às 15h30: A borra do café, de Mario Benedetti.
Inscrições dia 3/4 (para retirada do livro).
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