Saberes do cuidado 

31/03/2025

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Cacique e pajé, Mapulu da etnia Kamayurá, no Alto Xingu (MT) acredita ser possível médico e pajé trabalharem juntos (foto: Renato Stockler).

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de ABRIL/25 da Revista E na íntegra

Sabe-se que a existência do Homo sapiens na Terra data de, mais ou menos, 200 mil anos e que, para a sobrevivência da espécie, foram desenvolvidas diferentes práticas de cuidado ao longo de séculos. Foi há apenas 500 anos que a ciência se encarregou dos cuidados com a própria preservação, ao adotar uma lógica própria de produção de conhecimento, adequada a um determinado modelo de sociedade. O processo de colonização desconsiderou medicinas tradicionais milenares, praticadas por diferentes povos, e foi somente a partir dos anos 1960, com o movimento da contracultura, que alternativas à medicina convencional foram reconhecidas para a promoção de bem-estar e da saúde. Hoje, o resultado desse percurso que busca aliar a medicina convencional às medicinas tradicionais, complementares e integrativas (MTCI) – como foram denominadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – tornaram-se políticas públicas.  

No Brasil, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC), aprovada em 2006, busca implementar as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Ao todo, são oferecidos 29 “recursos terapêuticos” (como são denominados pelo SUS), entre os quais estão quiropraxia, homeopatia e fitoterapia, por exemplo. “As práticas que hoje são chamadas integrativas têm a contribuição de apontar para outros horizontes, além dos horizontes da medicina ocidental contemporânea. Nesse sentido, se eu consigo produzir bem-estar   sem medicação, se consigo diminuir a hipertensão com uma prática regular de relaxamento, por exemplo, posso, com isso, produzir saúde nessa população”, observa Nelson Filice, professor de sociologia da saúde da faculdade de ciências médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).  

Apesar desse reconhecimento das medicinais tradicionais pela saúde pública, diversas práticas de povos originários, quilombolas e de comunidades tradicionais do país ainda permanecem fora da lista das PICS. Segundo João Paulo Souza, diretor do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME/OPAS/OMS), há um esforço internacional para que evidências científicas possam auxiliar nessa incorporação. A exemplo da atuação da Biblioteca Virtual de Saúde de Medicina Tradicional Complementar e Integrativa, criada ao redor de 2018 como uma plataforma digital com o objetivo de promover acesso à informação na área e à tomada de decisões a partir de evidências levantadas por pesquisadores, profissionais e gestores da saúde.  

“Além disso, a BIREME embarcou, desde 2024, com o apoio do Centro Global de Medicina Tradicional da OMS da Índia, na criação de uma Biblioteca Global de Medicina Tradicional, que está em fase de desenvolvimento e cuja intenção é reunir evidências científicas e evidências de outros paradigmas que possam orientar a tomada de decisão para incorporação, ou não, de práticas ou tecnologias tradicionais de saúde. O lançamento está previsto para a primeira semana de dezembro deste ano, dentro da segunda Cúpula Global de Medicina Tradicional que vai ocorrer na Índia”, adianta Souza.  

MEDICINA ANCESTRAL  
O Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo e se destaca por sua rica diversidade cultural e étnica. Dessa soma, um inestimável acervo de conhecimentos sobre manejo e uso de plantas medicinais, resultado de saberes e tecnologias ancestrais, são passados de geração a geração. Entre povos indígenas e comunidades quilombolas, esse saber perpetua-se no cuidado e bem-estar de populações de Norte a Sul, cada qual com seus ritos e procedimentos.  

Na aldeia Kamayurá, localizada no Alto Xingu (MT), a cacique Mapulu é a primeira mulher a se tornar pajé. Guardiã das práticas espirituais, é ela que, ao conversar com o espírito-guia, faz a ponte entre o mundo sagrado e terrenal para identificar as enfermidades de homens, mulheres e crianças na aldeia. “Quando espiritual ataca a pessoa, primeiro, busca pajé, pajé avalia e depois pajé consegue ver o que ele tem e passa para o raizeiro. Aí, pajé e raizeiro trabalham juntos. Raizeiro sai no mato para pegar o remédio para matar a ferida no corpo”, explica Mapulu Kamayurá. 

Aos 15 anos, ela aprendeu com o pai, o cacique e pajé Takumã Kamayurá, ferramentas para a cura de doenças. Mapulu reconhece que para algumas enfermidades, a medicina dos não indígenas é um caminho. “Se raizeiro não conseguir tratar, pajé encaminha para a cidade”, conta. O inverso também acontece, conta a pajé: “meu marido é raizeiro e quando o pessoal da cidade pede, eu passo remédio para pressão alta”. Hoje Mapulu passa seus conhecimentos para a filha Mapualu, de 37 anos, que “já ficou pajé” e ajuda a mãe a atender os pacientes.  

Para Mapulu Kamayurá, o adoecimento da sociedade branca é resultado de um afastamento da natureza, de uma dieta carente de alimentos frescos, do desconhecimento de raízes e plantas que curam. A raizeira Lucely Pio, da comunidade quilombola do Cedro, município de Mineiros (GO), também compartilha o diagnóstico. Especialista em plantas medicinais do Cerrado, aprendeu com a avó materna a ouvir as plantas e reconhecer em suas formas as partes do corpo que curam, como fígado, rins e coração. Uma das fundadoras do Centro Comunitário de Plantas Medicinais do Cedro e coordenadora da equipe de fitoterapia de remédios caseiros do município de Mineiros, Lucely explica que não basta saber qual é a planta e fazer a colheita para receitar.  

Para a raizeira Lucely Pio, da comunidade quilombola do Cedro (GO), é preciso integrar-se à natureza para manutenção de saúde 
(foto: José Jorge Carvalho).

“Meu trabalho vai além. Quem trabalha com a planta vai coletar no horário certo, sabe que tem um modo de preparo, de fazer o remédio e de ministrar o remédio para as pessoas. Por exemplo: você não pode colher uma planta na beira da estrada porque ela está contaminada; e cada dor de cabeça vem de uma causa que está no seu corpo. Então, você precisa saber a causa para tratar a pessoa. A raizeira, para dar um chá, tem que conhecer a história da pessoa. Ela tem que ter uma conversa, um entendimento”, explica Lucely, que também é uma das autoras da publicação gratuita e online Farmacopeia Popular do Cerrado (2010), resultado de uma pesquisa de plantas medicinais feita por 262 autores, entre raizeiros, raizeiras e representantes de farmácias caseiras e/ou comunitárias.  

Na comunidade quilombola do Cedro, Lucely trabalha e atende visitantes no laboratório, criado em 1998, que possui 450 plantas medicinais catalogadas e mais de 90 fórmulas medicinais – fitoterápicos que são vendidos na comunidade e, em parceria com a Pastoral da Criança e o município de Mineiros, também são distribuídos para as famílias da cidade. “Meus filhos todos conhecem sobre plantas. Trabalho muito com meus netos também, quando eu recebo crianças – e tem dia que recebo até 500 crianças –, eles vão lá me ajudar e coloco cada um para falar de cada planta”, compartilha.  

EXPANDIR CONHECIMENTOS  
No Brasil, vem se ampliando o diálogo entre saberes populares e tradicionais com saberes científicos comprovados. São inúmeras as pesquisas acadêmicas endossadas por organismos internacionais que apontam para a efetividade quando a medicina convencional e a tradicional caminham lado a lado. No tratamento de doenças crônicas, as PICS vêm demonstrando eficiência no cuidado e autocuidado de pacientes com diferentes necessidades. Segundo Filice, “dentro da episteme da medicina ocidental contemporânea, existe lugar para a complementaridade”, ou seja, é possível a confluência entre dois sistemas médicos ou de duas racionalidades médicas. “No entanto, em relação a determinadas práticas, ainda existe muito preconceito. As pessoas que não incorporam outras práticas de cuidado se baseiam muito mais em preconceito do que em evidências”, atesta o professor e pesquisador da Unicamp.  

A inclusão de mestres e mestras nas universidades, na divulgação e produção de conhecimento no campo da saúde se tornou crucial para que houvesse uma mudança. Para José Jorge de Carvalho, professor do departamento de antropologia da Universidade de Brasília (UnB), a criação do Encontro de Saberes “é uma forma de autenticar para as PICS e para o SUS, esses conhecimentos”. Idealizado em 2010 e coordenado pelo professor, esse projeto desenvolvido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa/UnB/CNPq (INCTI) busca a promoção dos mestres e mestras das culturas populares e dos saberes tradicionais – de povos indígenas, populações afro-brasileiras, comunidades quilombolas e demais culturas tradicionais – para que atuem nas universidades em atividades de pesquisa, ensino e extensão.  

“Eu acho que esse preconceito começa a ser enfrentado com o Encontro de Saberes, já nas universidades. Nós começamos com a Universidade de Brasília (UnB), e depois de 2014, eram cinco ou seis, e já estamos indo para 25 universidades. Acho que todas, sem exceção, têm mestres e mestras da área que a gente está chamando de cuidado, saúde, cura do corpo e da alma. Se esses mestres e mestras estão chegando às universidades, por que não podem chegar ao centro de saúde?”, questiona Carvalho.  

Mestra e professora, Makota Kidoialê destaca a importância de práticas de cuidado do terreiro como aliadas do bem-estar coletivo (foto: Luiza Poeiras). 

Fundadora do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, comunidade tradicional de matriz africana de nação bantu, no bairro Santa Efigênia, Belo Horizonte (MG), Makota Kidoialê participou do Encontro de Saberes na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra e professora no programa de formação transversal em saberes tradicionais da UFMG, ela leva à academia e a outros espaços o conhecimento ancestral das práticas de cuidado do terreiro. “Costumo dizer que antes mesmo de o SUS existir, o terreiro já fazia um tratamento de saúde integrado. Porque essa integração se dá com o indivíduo e com o território onde ele habita. O processo de cura integrada passa pelo reconhecimento de todas as diversidades”, resume Makota. 

para ver no sesc / saúde 
Saúde integral 
Neste ano, projeto Inspira destaca a importância de saberes ancestrais e das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) para o bem-estar coletivo 

Sedentarismo e hábitos alimentares equivocados são alguns dos fatores de risco que provocam o aumento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como hipertensão e diabetes. As DCNTs tornaram-se um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo, atingindo, principalmente, as populações mais vulneráveis. No entanto, podem ser controladas pela adoção de práticas cotidianas que favorecem a qualidade de vida – alimentação equilibrada, prática regular de atividades físicas e gestão do estresse, por exemplo. Por isso, em 2025, o projeto Inspira destaca as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) como uma abordagem essencial voltada à saúde e ao cuidado integral do ser humano.   

As PICS abrangem desde o uso de plantas medicinais na fitoterapia, até medicinas de países como China e Índia, com práticas como a acupuntura e a yoga. Além desses, outros saberes ancestrais de matriz africana e de povos originários compõem a programação do Inspira, que abrange cursos, oficinas, palestras e outras atividades. Ao valorizar tanto as práticas convencionais quanto as integrativas e complementares, a ação busca ampliar a percepção da população sobre a autonomia e o autocuidado, além de promover uma reflexão sobre como novos hábitos e atitudes são fundamentais para a construção de uma sociedade mais consciente e engajada na promoção da saúde coletiva.   

“Para o Sesc, enquanto instituição promotora de saúde, apresentar possibilidades mais amplas de cuidado, para além das quais estamos acostumadas(os), é uma forma de valorizar a diversidade de saberes e práticas que trarão mais cuidado de si. A potência do projeto Inspira de 2025 reside neste lugar,” explica Deborah Dias Matos, que integra a Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.  

Confira alguns destaques da programação:  

Vila Mariana
Seminário Saberes: Práticas Integrativas e Complementares em Saúde  
Na abertura da programação do projeto Inspira, o seminário visa promover reflexões e aprofundamentos sobre as Práticas Integrativas e Complementares da Saúde (PICS). O evento contará com a participação de renomados especialistas, como José Jorge de Carvalho e as mestras Makota Kidoialê, Mapulu Kamayurá e Lucely Pio.  
Dia 8/4. Terça-feira, das 10h às 19h. Dia 9/4. Quarta-feira, das 10h às 18h.  

Avenida Paulista
Nsaba: Plantas medicinais nas tradições afro-brasileiras
De que forma as plantas ocupam um papel central nas comunidades de matriz africana? Neste curso, serão apresentadas formas como as comunidades se relacionam com as plantas medicinais. Com Tata Jaga Anzulo, Pedro Carlessi e Ricardo Souza.  
Dias 15 e 16/4. Terça e quarta, das 19h30 às 21h30.  

Campo Limpo 
A beleza das coisas está no nome  
Nesta palestra, Dona Jacira (mãe do rapper Emicida) e Maria Vilani (mãe do rapper Criolo) conversam sobre temas que atravessam suas histórias de vida, suas raízes ancestrais, saberes orais e escritos, compartilhando com o público hábitos de cuidado e autocuidado.  
Dia 19/4. Sábado, das 16h30 às 18h30.  

Santos  
Musicoterapia para infâncias neurodiversas  
Vivência de musicoterapia, prática que utiliza a música e/ou seus elementos num processo facilitador da comunicação, da relação, da aprendizagem, entre outros objetivos terapêuticos. Voltada para crianças neurodiversas, acompanhadas por um adulto responsável. Com Bruna Pereira.  
Dia 20/4. Domingo, das 11h às 12h. 

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