Por Creuza dos Santos
Psicóloga, mestre em psicologia social, especialista em gestão de saúde pública.
Os anos 1980 representaram um marco para a saúde mental no Brasil. É a década da implementação das primeiras políticas públicas voltadas a práticas antimanicomiais e da instalação de serviços substitutivos à internação psiquiátrica, como os ASM – Ambulatórios de Saúde Mental e CAPS – Centro de Atenção Psicossocial. Também se iniciou o processo contínuo de avaliação das condições de funcionamento dos muitos manicômios que operavam no país. Estas mudanças foram resultantes da pressão de movimentos sociais da década de 1970, período de redemocratização do país. Na saúde mental, este movimento congregou familiares, portadores do transtorno, trabalhadores de saúde e a comunidade acadêmica dos Centros Formadores Universitários. A crítica sobre a ineficiência e desumanidade dos tratamentos psiquiátricos praticados em instituições de confinamento era quase que uma unanimidade, principalmente entre aqueles que viviam de perto esta situação. A experiência da Itália, com Franco Basaglia, que reformulou totalmente o hospital psiquiátrico em Trieste, nos anos 1970, culminando na promulgação de uma lei que extinguia os hospitais psiquiátricos na Itália em 1978, fundamentou as discussões sobre quais caminhos o movimento antimanicomial se direcionaria em nosso país. Este movimento importante ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica.
Iniciei minha trajetória na saúde mental em 1988, como psicóloga no Ambulatório de Saúde Mental de Mauá, no estado de São Paulo. Os Ambulatórios de Saúde Mental foram os primeiros serviços implantados de forma sistemática em vários municípios do estado de São Paulo, com o objetivo de ofertar uma assistência em saúde mental pautada no cuidado fora das instituições hospitalares. Nestes serviços de saúde mental, além do atendimento, as equipes se debruçavam em desenvolver possibilidades de intervenções que de fato minimizassem a necessidade de internação psiquiátrica. Neste mesmo período, equipes de supervisores da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo visitavam, avaliavam e definiam critérios de possibilidade de funcionamento dos hospitais psiquiátricos do estado.
Eu era uma jovem recém-formada que, ainda durante a formação, havia me encantado com autores como E. Goffman, em Manicômios, Prisões e Conventos; M. Foucault em História da Loucura e T. Szasz em A fabricação da Loucura. Ao iniciar no Ambulatório de Saúde Mental, fui completamente tocada pela possibilidade de participar de um movimento de mudança absolutamente revolucionário da saúde mental do Brasil. Neste primeiro serviço em que atuei, pude perceber de muito perto o sofrimento, o abandono, a desumanização a que eram submetidas as pessoas que tinham um transtorno grave de saúde mental, e o quanto este tipo de “tratamento” não trazia melhora alguma, muito pelo contrário, havia uma imensidão de pessoas cronificadas após longos períodos de internação, que perdiam o brilho no olhar, que viviam num ciclo de internação e alta sem nenhuma perspectiva de melhora.
Em 1989 passei a compor a equipe de saúde mental do Ambulatório de Saúde Mental de Mogi das Cruzes, cidade onde morava. Era o único Ambulatório da região do Alto Tietê. Por outro lado, em Itaquaquecetuba havia um enorme hospital psiquiátrico com 600 leitos conveniados ao SUS, chamado IMIL – Instituto Modelo de Itaquaquecetuba. Os egressos das internações e seus familiares constantemente relatavam os horrores que aconteciam naquele manicômio.
Na sequência da instalação de serviços substitutivos, no início dos anos 1990, foram criados Ambulatórios de Saúde Mental nos municípios mais populosos do Alto Tiete: Suzano, Ferraz de Vasconcelos, Poá e Itaquaquecetuba. A estratégia foi descentralizar o atendimento e ampliar equipes e serviços, rumo a uma rede de atendimento de base comunitária. Os municípios, representados pelas suas equipes assistenciais, realizavam encontros regionais voltados ao desenvolvimento de práticas antimanicomiais e a ampliação de serviços. A cada 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, ocorriam manifestações em praça pública, com diversas atividades para sensibilizar a população de que “trancar não é tratar” e que era urgente realizar mudanças na atenção à saúde mental.
As equipes de supervisão hospitalar da Secretaria Estadual de Saúde já haviam levantado várias inadequações no IMIL e impetrado várias autuações, estabelecendo prazos para adequação. Em 1995, após um destas supervisões in loco, ficou caracterizado que o hospital não havia realizado as adequações necessárias para continuar credenciado ao SUS, pois não atendia as condições mínimas para estar funcionando de acordo com as normas sanitárias vigentes. Diante deste fato, foi montada uma comissão técnica para conduzir os trabalhos de descredenciamento do hospital e remoção dos pacientes internados.
Pelo meu envolvimento regional com a luta antimanicomial, e anos de prática em serviços extra hospitalares, fui convidada a assumir a coordenação dos trabalhos de descredenciamento do IMIL. Foi montada uma equipe de profissionais que atuavam na saúde mental da região para operar este descredenciamento e encaminhamento, mediante avaliação médica, de altas ou transferências.
Fiquei por 30 dias presente dentro do IMIL, reconhecendo toda sorte de horrores naquilo que se denominava “hospital”. Camas quebradas, chuveiros frios, pessoas sujas e maltrapilhas perambulando pelo pátio, sedentos por um pouco de atenção. Durante este período, uma equipe de profissionais de saúde fez a avaliação de cada interno, buscou contato com as famílias e definiu alta ou transferência de acordo com a condição clínica de cada um. Grande parte das pessoas internadas não tinham necessidade de estar ali. Muitos tinham perdido contato com a família há anos. Dos internos, 60% tiveram alta e puderam voltar para suas famílias, os outros 40% foram transferidos para outros hospitais, principalmente pelo fato de não ter sido possível encontrar as famílias, e pelas sequelas que anos de isolamento e tratamento inadequados trouxeram para cada um.
Com o descredenciamento e a remoção de todos os internos, considerando que todos os leitos eram pagos pelo SUS, o IMIL foi desativado em 1995. Foi um momento importantíssimo na região. Os trabalhadores de saúde mental ansiavam por esta desativação, e houve envolvimento e comoção geral por esta conquista.
Em 2006, 10 anos depois, foi inaugurado o primeiro CAPS da região. Atualmente, praticamente todos os municípios da região possuem um CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, nas modalidades Adulto, Infantil e Álcool e Drogas. Também foi incorporada a atenção à saúde mental na rede de atenção primária de saúde. O fechamento deste manicômio foi fundamental para estes avanços.
Ainda há muito por fazer, mas é um alivio saber que na região do Alto Tiete não existe mais um manicômio. Há emergência psiquiátrica e leitos de internação de curta permanência em hospital geral, com uma taxa de internação bastante reduzida. A maior parte da assistência é realizada por serviços extra hospitalares. O cuidado é interdisciplinar, em rede, envolvendo a família e ofertando muito mais qualidade de vida. Vai se devolvendo aos poucos o direito à vida em liberdade e o respeito às subjetividades das pessoas que sofrem com transtorno mental.
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