Para a socióloga da alimentação, ATO DE COMER é manifestação cultural e revela comportamentos coletivos e individuais
Por Marcel Verrumo | FOTOS ADRIANA VICHI
Leia a edição de agosto/23 da Revista E na íntegra
Nos encontros presenciais, nos meios de comunicação ou nas redes sociais, a alimentação é tema recorrente. Conversamos sobre preparações saudáveis, assistimos a programas de receitas, lemos sobre dietas inovadoras. E mais: o mesmo feed ou jornal que apresenta um prato gourmet, também denuncia pessoas em situação de insegurança alimentar, trabalhadores expostos a situações degradantes no cultivo ou preparo de alimentos, monoculturas, agrotóxicos e indústrias que destroem o meio ambiente. São múltiplos – e, por vezes, paradoxais – os olhares sobre a alimentação na contemporaneidade.
A nutricionista, socióloga e pesquisadora Elaine de Azevedo é uma pensadora que, a partir de uma formação que ultrapassa os limites do campo científico da nutrição, investiga o comer de forma transdisciplinar. Graduada em nutrição pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em agrossistemas e doutora em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Azevedo atua como professora adjunta na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A especialista ainda apresenta o podcast Panela de Impressão, no qual analisa a cultura a partir do ato de comer, revelando comportamentos coletivos e individuais.
Nesta Entrevista, Elaine de Azevedo reflete sobre as diversas nuances da alimentação, contextualiza conceitos construídos historicamente e, com um olhar otimista, compartilha sua crença na possibilidade de mudar o mundo a partir das escolhas alimentares.
O que é uma alimentação saudável nos dias de hoje?
Sua questão é bem correta ao mencionar “nos dias de hoje”. O conceito de “alimentação saudável” é uma construção social, ou seja, ele se transforma ao longo da história, não é estático. Assim como a ideia de saúde, qualidade de vida, bem-estar e felicidade, o conceito de “comida saudável” depende da cultura, do país, da realidade de cada pessoa que o adota. Para um vegano, a alimentação saudável está vinculada à questão animal; para uma pessoa interessada nas discussões ambientais, aos [alimentos] orgânicos; para cada grupo, isso pode mudar. E nos dias de hoje, esse conceito se tornou um grande desafio. Posso dizer que a alimentação saudável precisa considerar o que é saudável para todos. Não é mais possível defender que um suco de uva seja saudável só porque ele tem uma quantidade de fitoquímicos, se ele implica em trabalho escravo para cultivo e colheita da fruta ou considerar a soja saudável, porque ela ameniza os sintomas da menopausa, se a sojicultura produz mudanças na paisagem das florestas, inclusive ligadas ao aquecimento global. Para ser saudável, além de ser fresco, local, integral e, de preferência, sem contaminantes biológicos e químicos, o alimento tem que ser saudável para quem produz, planta, cultiva, transporta e come, para o meio ambiente e para os animais.
É por isso que se passou a falar de alimentação adequada e saudável?
Diante das repercussões do sistema agroalimentar moderno sobre a saúde humana, sobre o meio ambiente, sobre as populações tradicionais que produzem comida, a própria análise do que é saudável foi mudando. No processo de pensar a segurança alimentar e nutricional, um movimento que começou na década de 1940 com Josué de Castro [(1908-1973), médico, nutrólogo, cientista social e autor de importantes obras como Geografia da fome – O dilema brasileiro: pão ou aço (1946)] e passou pelo Betinho [Herbert José de Souza (1935-1997), sociólogo que criou, em 1993, o projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida], culminando com a discussão do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), percebeu-se que somente o termo “saudável” já não era suficiente para expressar nossos anseios. O termo “adequada” é uma incorporação das dimensões sociais, ambientais e culturais ao conceito. Ou seja, uma alimentação adequada e saudável passa exatamente pela ideia de que é necessário ser saudável para todos e tudo, porque ela tem que ter o valor nutricional preservado, tem que ter a sua integralidade, não ter contaminantes químicos nem biológicos, mas também não pode ter repercussões socioambientais, ou seja, não pode afetar quem produz a comida: as comunidades tradicionais, os quilombolas, os indígenas, os agricultores, os assentados. E não pode impactar o meio ambiente.
Antes disso, como o conceito de comida saudável se construiu historicamente?
Ele foi concebido a partir do espírito de cada tempo. A gente tem, por exemplo, na tradição, uma sociedade que se pautava na cultura, na territorialidade, na geografia, nas religiões. O conceito de alimentação saudável reverberava dentro dessa realidade. Uma comida saudável era ajustada culturalmente ao que se plantava naquele território. Quando a gente saiu da tradição e começou a vivenciar a modernidade, o espírito do tempo moderno passou a ser influenciado pela ciência, pela urbanização e pela industrialização. Nesse contexto, o conceito de “alimentação saudável” foi pautado em preceitos científicos racionais, baseado em uma visão energético-quantitativa e na industrialização. Já que a modernidade tem como uma de suas premissas o rompimento com a tradição, a gente rompeu com os valores tradicionais de comida local, ajustada culturalmente, e assumiu um conceito de alimentação industrializada, padronizada e que servia aos interesses do processo de urbanização. Já hoje, fizemos as pazes com a tradição: começamos a valorizar alguns conceitos e qualidades que dizem respeito à época pré-moderna, como a cultura e o localismo. E isso se dá, também, porque a gente vivencia as graves repercussões do sistema agroalimentar convencional sobre a nossa saúde, sobre o meio ambiente e sobre a sociedade.
A alimentação saudável tem que considerar o que é saudável para todo mundo: para quem produz, planta, cultiva, transporta e come, para o meio ambiente e para os animais
Elaine de Azevedo
É comum ouvir que, no passado, as pessoas eram mais saudáveis mesmo comendo preparações hoje evitadas, como as gordurosas.
A questão das gorduras é um bom exemplo de como a relação com o alimento pode mudar culturalmente e, inclusive, mudar seu status de saudável. Se a gente pensar, por exemplo, nas comunidades tradicionais indígenas que viviam nos polos, elas comiam uma grande quantidade de gordura animal, e eram esses alimentos que as mantinham vivas e saudáveis. Se você migrar para a região do Mediterrâneo, o óleo de oliva era a gordura mais consumida. Nos trópicos, a gente tinha as gorduras de palmas, a gordura do açaí, a gordura da caça. E por que se dá essa demonização da gordura? Em todos os lugares do mundo, houve, lentamente, uma migração do ambiente rural para o urbano. As pessoas que viviam nas áreas rurais eram basicamente agricultoras com atividades não sedentárias e fumavam um cigarrinho de palha, tomavam uma cachacinha e tinham um nível de estresse muito menor. À medida que a migração do campo para a cidade acontece, por conta da industrialização e da urbanização, os seres humanos vão gradativamente mudando a sua qualidade de vida. Para suportar o estresse, passam a fumar muito e a cachacinha habitual passa, em alguns casos, ao alcoolismo. As pessoas se tornaram mais sedentárias na cidade, mas mantiveram o modo de se alimentar baseado no consumo de manteiga, gordura de porco e ovos. Mudou todo o contexto de qualidade de vida e quem foi demonizada foi a gordura. Eu costumo brincar que é como se a gente falasse que tomou “um porre” de Martini, mas o que fez mal foi a azeitona! E é bom lembrar que, nesse momento de demonização, o sistema agroalimentar hegemônico já tinha a “solução” para substituir a gordura animal, pois “coincidentemente” começou a produzir grande quantidade de grãos para fazer os óleos vegetais e a margarina. Os especialistas do sistema médico-hospitalar endossaram essa tese e grande parte das doenças cardiovasculares decorrentes dessa mudança no estilo de vida são sanadas por medicamentos também produzidos por esse sistema. Então, a gordura é a ponta de um iceberg, envolve muitos interesses e uma mudança extensa na qualidade de vida. Porque para ser saudável, a gente precisa olhar para o nosso modo de viver.
O que são paradoxos alimentares?
Esse conceito remete ao sociólogo François Ascher (1946-2009) e ao antropólogo Claude Ficshler. Os paradoxos, na verdade, mostram como a gente convive com perspectivas que podem parecer dicotômicas. Por exemplo, a gente tem alimentos em uma quantidade maior, mais pesquisa, mais discussões sobre a saudabilidade, mas tem muito mais dúvidas e controvérsias sobre o que é uma alimentação saudável. Porém, eu acredito que o maior paradoxo alimentar seja o gestado nos países do Hemisfério Sul, como o Brasil: é o paradoxo de termos uma grande vocação agrícola, produzirmos 312 milhões de toneladas de grãos e 10 milhões de toneladas de carne bovina por ano, e mesmo assim termos 15% da população com fome. É o paradoxo de ter 120 milhões de hectares de terras improdutivas, segundo o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], e ter pessoas que não têm acesso à terra.
Outro paradoxo seria o fenômeno da gourmetização promovido pelas redes sociais e programas de culinária, em um país onde 33 milhões de brasileiros passam fome?
Esse é outro paradoxo. A fome no Brasil é causada por uma imensa desigualdade social e por uma população com pouco senso de alteridade e coletividade. É o resultado de uma sociedade que vota em representantes que não têm vontade política para resolver essa questão, uma vez que não priorizam políticas de bem-estar para que as pessoas possam ter acesso a uma vida digna e escolher o seu melhor alimento. Já a gourmetização do comer acontece em todos os lugares do mundo. Segundo o economista Valter Palmieri, esse processo é uma ferramenta do capitalismo, sempre muito atento aos nossos desejos, oferecendo alimentos que nos fazem pensar que somos diferenciados: a pessoa come uma pipoca gourmet, toma um café que foi colhido à luz do luar e, então, tem a ilusão de que é diferente de quem compra a pipoca do pipoqueiro e toma um cafezinho no bar da esquina. Essa é uma habilidade do capitalismo que, além de aumentar a concentração de renda, nos ilude. Mas, eu também gosto de pensar a gourmetização como uma fome de sentidos. A gente está privado de muitos sentidos vivendo frente às telas, e na solidão. Assim, esta gourmetização pode ser uma estratégia inconsciente para amenizar a nossa falta de sociabilidade, a nossa individualidade excessiva, a nossa tecnose e solidão diante das telas.
O ato de comer como um ato político é muito assimétrico e não é por falta de consciência, às vezes é por falta de condições dignas para poder agir politicamente
Elaine de Azevedo
Que perguntas cada um de nós pode se fazer antes de escolher um alimento?
Nossa, muitas perguntas! Se a gente está comendo um alimento fresco, eu sugiro perguntar: onde ele foi produzido? Por quem ele foi produzido? Ele é saudável para mim, mas é saudável para as pessoas que o produziram? Para a natureza? No caso do alimento industrializado, é importante pensar: quanto tempo esse alimento dura? Por que ele dura tanto tempo? Qual a composição desse alimento? Eu conheço esses nutrientes que estão aqui? Por que ele é tão barato? E, também, é importante a gente aprender a ler os rótulos e se perguntar por que, dentro de um chocolate que deveria ser à base de cacau, o ingrediente em maior quantidade é o açúcar. Por que em um produto à base de leite, o primeiro ingrediente é soro de leite ou o amido de milho? O que significam aquelas letras pequenas, os aditivos químicos sintéticos? Também é bom citar o Michael Pollan, jornalista dos Estados Unidos que sugere que as pessoas se perguntem: a minha avó comeria esse alimento? Ela sabe o que é? Se sim, pode comer.
Hoje, fala-se bastante sobre a dimensão política do comer. A alimentação sempre foi considerada um ato político?
No Brasil, isso começou quando Josué de Castro atrelou a fome aos determinantes sociais da população brasileira [o geógrafo e nutrólogo pensou a fome não como uma problemática ligada a contingências ambientais – tese defendida por muitos de seus contemporâneos –, mas pela ausência de interesse político em combatê-la]. Ao fazer isso, ele politizou o ato de comer ou, no caso, o ato de não comer. Isso continuou com o Betinho, com o Consea, com o movimento de segurança alimentar e nutricional. Naquele momento, quem estava envolvido eram os especialistas: médicos, nutricionistas, políticos. Porém, a partir do século 21, houve um acirramento das repercussões do sistema agroalimentar hegemônico. E esse acirramento, junto das grandes crises alimentares por ele provocadas, como a crise aviária e a doença da vaca louca, trouxe outro olhar para a alimentação. Então, não só os especialistas, mas também os chefs de cozinha, os jornalistas, as pessoas de iniciativas como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os pequenos agricultores e os ativistas, começaram a discutir tais repercussões. E o acirramento das grandes narrativas opressoras – o patriarcalismo, o capitalismo, o neoliberalismo, o antropocentrismo, a urbanização – trouxe ainda mais força para o ato de comer como um ato político. Isso também se dá em outras instâncias do viver. Hoje, por exemplo, quando alguém escolhe não comprar um sapato novo e mandar arrumar um antigo, está questionando o consumismo e o capitalismo; quando escolhe se tratar com homeopatia, está questionando o sistema de saúde hegemônico. E, da mesma forma, acontece no comer. Quando se resolve comer e cozinhar em casa, quando escolhe alimentos frescos e in natura, em todas essas situações, pode estar implícito o questionamento do antropocentrismo e da indústria agroalimentar. Eu costumo dizer que viver é um ato político, não tem como a gente desconsiderar todas as nossas atitudes sem pensar politicamente, uma vez que essas grandes narrativas nos oprimem. E enquanto elas se fortalecem na opressão, a gente pode se fortalecer na politização. Mas é bom entender, também, que o ato de comer como ato político não é uma premissa de todas as pessoas, ele é assimétrico. Há pessoas que nem pensam nisso; há quem pensa e age, comprando orgânicos ou assumindo o veganismo, voltando a cozinhar em casa; e há quem deseje fazer isso e não tem condições nem o privilégio de poder comprar orgânico ou de ficar em casa e comer com seus filhos. Então, o ato de comer como um ato político é muito assimétrico e não é por falta de consciência, às vezes é por falta de condições dignas para poder agir politicamente.
É possível construir, por meio da alimentação, uma sociedade mais justa?
Como socióloga da alimentação, eu costumo dizer que, se a gente mudar a comida, a gente muda o mundo. Se todos tivessem acesso à comida saudável e adequada, fresca, culturalmente ajustada, local, integral, sem contaminantes, a gente mudaria o mundo do ponto de vista ambiental, porque o sistema para produzir essa comida é um sistema que tem baixo impacto sobre as florestas, as águas, o solo, o uso de petróleo. Teríamos pessoas mais saudáveis e com acuidade mental, com capacidade cognitiva de escolher os seus governantes, de fazer a revolução que precisa ser feita em prol dos próprios direitos. E, também, as pessoas que produzem alimento seriam dignificadas, haveria mais emprego no campo, revitalização do rural, amenização de problemas urbanos, de insegurança, desemprego e a superpopulação. E tem mais uma instância que eu chamo de espiritual: comer alimentos dos reinos mineral, vegetal e animal, sem venenos e aditivos artificiais é um jeito de se reconectar com a natureza. Não há dúvida de que uma das grandes questões da humanidade foi essa desconexão. Então, nesse sentido, eu acho que o comer realmente pode mudar o mundo. E me parece que esse sistema agroalimentar é um plano destrutivo muito bem bolado. Se a gente mudasse tudo isso, a gente teria uma humanidade muito mais consciente.
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