Segue o Fluxo 

26/04/2023

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Foto: Rafael Botas

Você sabe o que uma “Ciranda de Maluco”, uma “Goma de Mascar” e uma “Ilha do Amar” tem em comum?

São canções que emocionam, instigam e inspiram, e que costumam ser executadas com precisão pelos dedos ágeis de Meno Del Picchia, um artista inquieto que flutua por diferentes ritmos e arranjos, e transita entre a vida acadêmica e a carreira artística com a sutileza de quem passa uma garrafa de café no “olhômetro”, sem se preocupar muito com medidas ou proporções. (Como na introdução do clipe da canção “Falta Muito“, parceira entre Romulo Fróes e Meno Del Picchia)

Músico e antropólogo, Meno roda o Brasil e o mundo como artista solo, como músico de apoio de grandes nomes da nossa mpb,e também para conhecer os fluxos de rua que agitam as regiões periféricas da maior cidade do país, Meno está em constante movimento. Tocando, escrevendo e compartilhando histórias e vivências.

Hoje seu trabalho atravessa o universo sonoro pela arte, pela pesquisa acadêmica e pela produção musical.

Um antropólogo branco tentando fazer funk?

Foto: Rafael Botas

Por ser um músico popular, e perceber que naquela época academia só abria espaço para a música erudita, Meno optou por estudar ciências sociais e acabou se envolvendo com a antropologia. E posteriormente, com a Etnomusicologia (antropologia musical).

Sua tese de doutorado apresenta uma etnografia musical do funk na cidade de São Paulo. A pesquisa aconteceu em três espaços onde a música funk é um elemento central: a Liga do Funk, estúdios de gravação e fluxos num bairro periférico da Zona Sul.

Seu primeiro passo durante o processo de criar relações com o universo do funk paulista foi tentar produzir música junto com artistas do meio, e que já estavam na ativa, a partir da sua experiência com a música, e da bagagem cultural adquirida durante seus anos de carreira.

Segundo suas próprias palavras, “a antropologia tem a ver com isso: você chegar em um lugar em que não conhece ninguém ninguém e tentar estabelecer relações“.

E criar relações/conexões é uma das suas maiores qualidades.

Em uma tarde cinza de um verão que insistia em não chegar, conversamos um pouco sobre sua formação artística e acadêmica.

E sobre os desafios de conciliar afazeres tão distintos mas que em algum momento do processo criativo acabam se cruzando.

Confiram:

Qual sua formação musical?

Então, minha formação musical vem da música popular com meu pai, meu avô e o professor Leyve Miranda...

Quando a música entrou na sua vida?

Posso dizer que a música entrou na minha vida ouvindo meu pai tocar piano em casa e ouvindo meu avô materno tocando modas de viola e dançando catira em Taubaté, interior de São Paulo. Fiz umas aulas de piano com entre 10 e 11 anos e aos 12 comecei a tocar violão e estudar com Leyve Miranda em São Paulo. Com Leyve Miranda conheci o jazz e a bossa nova e passei a tocar baixo elétrico e acústico. Isso era 1991-1992. A gente tinha práticas de conjunto entre os alunos, e sempre faltava baixista nas bandas. Foi assim que fui migrando do violão para o baixo. Nos anos seguintes, Leyve fundou uma escola de música em Pinheiros chamada Groove, onde estudei até meus 17 anos. Em seguida, fui estudar Ciências Sociais na USP e me apaixonei pela antropologia, mas sempre continuei tocando em bandas que já produziam um repertório autoral. Lembro que na USP tive duas bandas de cientistas sociais, o Banguela Banguela e o Insightcida.

Como foi conciliar a vida artística com a vida acadêmica?

Essa é uma pergunta bastante interessante. Não é uma tarefa simples, são dois mundos bastante diversos e com grau de exigência elevado. Acredito que no meu caso, foi importante no mestrado discutir processos artísticos nos quais eu estava intimamente envolvido e problematizar questões antropológicas a partir de fazeres concretos e relevantes – no meu caso, uma das questões era entender como as novas tecnologias impactavam da produção de discos nos anos 2010. Então, a etnografia alimentava minha música, e a minha música alimentava minha etnografia. Era o único modo de fazer dar certo naquele momento. Já no doutorado, foi mais difícil por dois motivos – o funk exigia um deslocamento maior da minha zona de conforto e a produção de uma tese exigia uma profundidade maior do que um mestrado. Foi mais difícil conciliar durante a pesquisa de campo. Fui morar uns meses num bairro periférico da zona sul, não consegui continuar fazendo os shows do meu disco “Barriga de 7 Janta” que eu havia acabado de lançar. Tive que em vários momentos escolher entre estar em campo fazendo etnografia do funk ou e dedicar aos meus shows e gravações. O período da escrita também exige bastante, entretanto com a pandemia os shows foram sendo cancelados me permitindo mergulhar na tese que foi defendida no auge da COVID 19 em Março de 2021. Mas de todo modo, minhas pesquisas acadêmicas tem que dialogar com meu fazer artístico e ambos de retroalimentam – um fortalece o outro e agrega dimensões e camadas nas zonas interfaciais. 

Como você chegou ao seu objeto de estudo? O que te influenciou na escolha do tema?

Meu objeto de estudo mais abrangente, mais geral, posso dizer que é a criatividade artística e os fazeres artísticos contemporâneos. Como meu campo é a música, direcionei meu olhar para músicos populares com os quais convivi, trazendo a etnografia como método de observação para analisar a produção musical. No mestrado, analisei os processos criativos de Kiko Dinucci, Tatá Aeroplano e Rodrigo Campos. Já no doutorado, passei a me interessar pelo mundo do funk, em especial o funk paulista que crescia nos anos 2011-2012 através dos clipes da Kondzilla e do estilo Ostentação. O funk era um gênero mais distante do meu fazer enquanto músico popular e mais distante geograficamente na cidade. Me intrigava entender como os jovens artistas do funk pensavam criação musical, internet, produção de clipes, modos de circulação e divulgação da música. Eles já não pensavam, por exemplo, através de discos. O clipe emergia como um produto mais relevante [ara alavancar uma carreira – um clipe divulgado via Youtube em canais como Kondzilla, Ritmo dos fluxos, GR6 Explode, etc.

Tens como indicar alguns artistas que você conheceu durante suas pesquisas?

Nas minhas pesquisas conheci mais artistas undergrounds do funk e do trap, que vivem de outras profissões, mas se mantém criando música. Nenhum deles ficou famoso. Os mais próximos são MC Tiiga, MC Diih Pura Calma, MC Lanzinho (Dono da Helipa Records) e Ciszo. Um DJ que conheci com MC Tiiga e com o qual produzi o funk “Calabouço da Ganância” junto foi o DJ FB. A artista mais famosa que conheci na pesquisa foi a MC Dricka na Liga do Funk, mas só de vé-la cantar nos encontros, nunca trocamos ideia de fato, só msgs pelo whatsapp antes dela ficar famosa.

O quanto suas pesquisas influenciaram/influenciam no seu faz artístico? Em que momento seus estudos se cruzam?

Vou responder essa pergunta falando de dois fonogramas que lancei no período do doutorado que podem ser considerados do gênero funk. O primeiro é “Calabouço da Ganância” do MC Tiiga, produzido por mim e pelo DJ FB. Esse fonograma surgiu do encontro etnográfico com dois interlocutores potentes, dois jovens do funk que eu só conheci através da pesquisa. Existe na antropologia da música uma noção chamada “bimusicalidade” onde o antropólogo se propõem a fazer música com seus interlocutores para compreender melhor seus modos de produção e criação. Nesse encontro, fiz duas coisas ao mesmo tempo – fiz funk e fiz antropologia da música. Outro exemplo que quero trazer é a faixa “Fluxo Neblina” produzida junto com o saxofonista Thiago França. Nessa tentativa de entender melhor a batida funk, me propus a produzir um beat meu mas ao invés de chamar um MC para cantar achei que seria legal convidar o Thiago para ocupar o espaço da voz e produzir um funk instrumental. Então, foi mais uma vez minha etnografia influenciando meu fazer artístico diretamente.

Em quais projetos você está envolvido atualmente?

Atualmente tenho dois projetos musicais autorais – Meno Del Picchia solo e Amarelo (banda com Allen Alencar). Como instrumentista toco na banda do Otto e da Badi Assad, além de atuar como produtor musical e instrumentistas em projetos diversos. Na academia faço parte do projeto temático “Musicar Local – Novas trilhas para etnomusicologia”, coordenado pelas professoras Suzel Reily (UNICAMP) e Rose Satiko (USP). Faço parte do PAM (Pesquisas em Antropologia da Música) da USP e do LEMS (Laboratório de Estudos da Música e do Som) da UNICAMP.Faço parte do quadro docente da FASM (Faculdade Santa Marcelina) na pós-graduação em Canção Popular.

Musicares na quebrada

Alguns dias depois da nossa conversa, Meno esteve no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc ministrando o curso “Funk e agência social da arte – musicares na quebrada”, que falou sobre arte e sobre música, sob o viés da antropologia. E que trouxe debates e análises sobre a agência social da música produzida nas periferias brasileiras.

Com especial foco ao universo do funk o curso percorreu os musicares das quebradas (discutindo, inclusive, o que significa ser da quebrada) tratando de seus múltiplos aspectos.

Confira o conteúdo na íntegra, acessando a plataforma do Sesc Digital.

Palcos, instituições de ensino e paredões

Acostumado a se apresentar nos palcos do Sesc São Paulo, Meno já colaborou com o Selo Sesc como músico, participando do álbum de Anaí RosaAtraca – Geraldo Pereira” , produzido por Cacá Machado e Gilberto Monte e com o artigo “No fluxo dos paredões”, disponível no Médium da Revista Zumbido.

Sua pesquisa, “A Neblina e o Fluxo: o funk nos corpos elétricos da quebrada” resultou numa playlist, viva, sem fim, chamada Diário Fragmento.

(Saiba mais sobre suas produções artísticas e acadêmicas, acessando seu site oficial)

Comprovando sua versatilidade, Meno ainda achou tempo para participar de uns projetos musicais mais aguardados no período pós-pandêmico, o registro audiovisual de um projeto que nasceu como uma simples live, passou pela série “Sesc ao Vivo”, cresceu e ganhou o mundo: Ana Cañas canta Belchior.

Mas ai já são outras paralelas.

Deixamos aqui um presente para você que chegou até aqui e que ainda não assistiu a essa live incrível.

Por Jean Paz – Editor Web do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

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