Lugar de mulher é onde ela quiser! No dorso dessa onda e desse movimento, as mulheres seguem bailando, imaginando e ocupando lugares que as sociedades negaram e negam para elas das mais diversas formas. Nos encontros do projeto Mulheres Plurais, promovidos pelo Sesc Registro no mês de fevereiro de 2022, as barreiras cotidianas e estruturais, visíveis e invisíveis, experimentadas por mulheres e as forças de mudança dessas conformações marcadas por gênero foram trazidas por quatro mulheres que afirmam diariamente seus lugares por vezes inéditos em posições sociais tradicionalmente masculinas. São mulheres que, ao reivindicarem “aqui cheguei, aqui estou e aqui vou ficar”, reconfiguram esses mesmos espaços. É trânsito, é deslocamento, é vida feminina que pulsa e alimenta transformações profundas. E, nesses fluxos incessantes, os lugares, mulheres e quereres são muitos…
A cacica trans Boe Bororo Majur Harachell Traytowu nasceu e viveu quase a vida toda na aldeia Apido Paru da terra indígena Tadarimana em Rondonópolis, estado do Mato Grosso. Ela narrou sua trajetória enquanto mulher trans indígena e apontou afetos e lutas que marcaram suas experiências. Desde pequena Majur acompanhou seu pai, chefe de cultura da aldeia, em suas atividades de liderança. Essas movimentações paternas, somadas à força de sua mãe e de outros e outras familiares, vistas de perto por Majur e responsáveis por conquistas como a construção de poços e a chegada de energia elétrica para seu povo, foram inspiradoras para a cacica que cresceu cercada de referências. Já adulta e fortemente engajada, Majur trabalhou como Agente de Saúde Indígena em seu território, fato que lhe conferiu maior visibilidade, dado seu bom desempenho nos relacionamentos pessoais e capacidade de diálogo. Como consequência, foi indicada pelo seu povo para ser cacica. Em sua fala, Majur ressaltou a importância da família como apoio fundamental e fortalecimento para que ela se sentisse confortável para ocupar os espaços que quisesse, com liberdade para ser quem é e deseja ser.
Em contexto completamente diferente, na gigantesca cidade de São Paulo, a mecânica e influenciadora digital paulistana Thais Roland vive suas experiências enquanto mulher apaixonada por automóveis, espaço socialmente percebido como masculino. Thais começou a manusear ferramentas ainda na infância, junto ao avô que fazia pequenos consertos em carros. Contudo, não identificava ali uma possibilidade real de trabalho e fez carreira na área de tecnologia. Já graduada e estabilizada, Thais decidiu fazer por paixão um curso de mecânica no SENAI. Ali, em meio aos motores, graxa e ruídos, ela encontrou seu lugar e se reinventou. Hoje ela mobiliza outras mulheres em suas redes sociais com o “Coisa de meninos nada” falando cotidianamente para seu público que oficina também é espaço feminino, que carro também é assunto de mulher – como qualquer espaço, como qualquer assunto.
Em outra cidade grande, mas dessa vez o Rio de Janeiro, Jaciana Melquiades é empresária e – dentre outros tantos projetos mais – participante do projeto Pretas Cervejeiras que acontece online. A narrativa de Jaciana, no encontro do Mulheres Plurais, foi atravessada pela questão da raça que se intersecciona ao gênero e sexo e marca as experiências das mulheres negras no Brasil (e no mundo, de formas contextuais). Para Jaciana, o recorte racial implica outras barreiras que a fazem cotidianamente pensar nesse lugar que ocupa. Sair para beber cerveja enquanto mulher preta significa, de acordo com Jaciana, pensar em muitas variáveis e em como adequá-las: onde vai, com quem, com que roupa, que horário… Nesse sentido, o projeto Pretas Cervejeiras busca pluralizar o universo do consumo e apreciação de cervejas. Saindo do eixo branco-hetero-masculino-europeu, Jaciana e as demais mulheres engajadas no Pretas Cervejeiras propõem uma revisão histórica do consumo de cerveja, uma descolonização desse espaço em prol da ocupação plural, negra, feminina, dessa prática de descontração e relaxamento que é beber cervejas.
Edinanci Silva nasceu na Paraíba, mas ganhou o mundo como judoca. Primeira mulher a ir para as olimpíadas representar o Brasil no judô em 1996, Edinanci relatou os desafios que enfrentou no esporte. De acordo com ela, as primeiras judocas brasileiras precisavam usar nomes masculinos para conseguirem patrocínio e projeção. Atualmente o Brasil é referência no judô feminino olímpico com nomes como Mayra Aguiar e Rafaela Silva. Edinanci não se encaixa nas expectativas estéticas de gênero projetadas para mulheres, fato que trouxe questionamentos diversos a respeito de sua identidade enquanto mulher. E a judoca afirma e reafirma essa identificação com o feminino que, para ela, vai muito além da vaidade feminina midiaticamente reconhecida: ser mulher é, antes de tudo, ser forte e ir à luta. Como diz o mote: lute como uma mulher. Lute como Edinanci.
Essas mulheres plurais, de lugares sociais e geográficos tão distintos, trouxeram à luz suas diferenças, devidas a tantos outros marcadores que se interseccionam em suas experiências, e também suas semelhanças desdobradas de compartilharem o fato de serem mulheres em contextos que hierarquizam homens e mulheres, femininos e masculinos.
Chamou atenção nas narrativas das mulheres plurais a circulação recente de possibilidades, experiências, categorias e desafios proporcionada pelo acesso à internet, com destaque para as redes sociais. Graças às redes, essas mulheres – e tantas outras – inspiram e se inspiram a partir de informações novas que encontram online. Se há alguns anos esses temas ficavam restritos a poucos círculos como os acadêmicos ou grupos de mulheres engajadas em movimentos sociais, atualmente as redes sociais e demais plataformas online possibilitam a ampla e massiva circulação de ideias. Trata-se de uma verdadeira onda que reposiciona radicalmente mulheres de diversas origens, camadas sociais, níveis de escolaridade, que se veem representadas online, se identificam e encontram respostas para questões que estavam postas ou não, por surgirem exatamente nesse movimento informacional. Seja no tatame, na oficina, no bar, na aldeia, as vozes se multiplicam e daí se multiplicam as ideias, as potências.
Ao longo do evento, no chat (quer interação mais online que essa?) surgiram elogios de seguidoras das mulheres plurais que mencionaram a importância do reconhecimento próprio nessas mulheres para a busca de novas possibilidades para si. Nesses cliques e curtidas, os espaços se reconfiguram e a ideia de “lugar de mulher”, que há décadas, era fixa se dissolve junto das fronteiras e dos espaços nas redes: tudo é possível divulgar, falar, questionar, propor. Vai ter mulher em todo lugar, as redes anunciam e multiplicam. Caberia aqui colocar que há alguns limites importantes nessas interações, mas só por hoje: celebremos as redes/ondas de mulheres que se movimentam online!
Para encerrar, outra questão desfiada pelas mulheres plurais participantes e que se conecta diretamente às dinâmicas online foi a noção de referência. Foram marcantes nas trajetórias dessas mulheres a existência de outras mulheres que, ao afirmarem seus espaços em tempos e locais diferentes, tornaram-se referências de resistência. Além de plurais, estamos falando de mulheres espelhos que inspiraram Majur, Thais, Jaciana e Edinanci com sua força e sua capacidade de (re)existir. E a metáfora do espelho não é mero acaso: tal qual um espelho, essas imagens femininas se projetam e projetam outras meninas e mulheres que se reinventam e buscam seus espaços onde bem querem. Não o espelho que padroniza, que é tortura, que delimita destinos femininos. Mas o espelho multiplicador que reconhece referências e insiste: eu vou existir assim. E a dança segue, a vida baila, nesse espelho/rede de mulheres que se veem, se acolhem, se reinventam. Sendo mulheres singulares em suas existências e plurais em suas resistências.
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