Quais são as questões de poder por trás do que comemos? O segundo dia do Seminário Internacional Alimentação Hoje – Entre Carências e Excessos, realizado no Sesc Belenzinho, refletiu bastante sobre este aspecto
Foi impressionante acompanhar as exposições das mesas e entender que a indústria alimentícia entra muito mais na nossa vida do que apenas a mesa da nossa casa ou o carrinho da feira e supermercado. A globalização está nos alimentos, com os mercados para processados saturados no norte, movendo-se ao sul, e isso tem diversas implicações: das doenças modernas como a obesidade às formas de lidar com consumo e publicidade infantil – e tudo foi pauta de discussão no Belenzinho no dia 29/out.
Na primeira atividade, um painel sobre “Obesidade e desnutrição: o impacto das decisões políticas e econômicas nos hábitos alimentares”, Enrique Jacoby, representante da Organização Panamerica de Saúde em Washington, Fransciso Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e Patrícia Gentil, coordenadora do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, trouxeram importantes considerações sobre o tema.
A primeira, que pode nortear todo o relato é a seguinte: precisamos decidir se o alimento é um direito ou uma mercadoria. Tratado enquanto mercadoria, vê-se enormes áreas preparadas para o cultivo de uma cultura, encarando assim o alimento como commodity, com valor negociável na bolsa de valores – para se ter uma ideia, já especulam com a safra do milho de 2040 na bolsa de Chicago. 2040!
Do interesse de grandes conglomerados que tratam não só de alimentos, mas também de combustíveis, ração para animais e, principalmente, ingredientes para alimentos processados – estes desenhados para viciar e não para saciar a fome. Você sabe que é difícil parar de comer um pacote de salgadinhos antes de ver o fundo dele e sujar o seu rosto com todo aquele farelo transgênico.
Outro apontamento interessante vai nas verbas para a publicidade dos alimentos processados. Em 2013, foram 40 bilhões de dólares! “Vamos ganhar essa guerra só com comunicação e educação? Sem mexer na publicidade? Pouco provável… É preciso regular a publicidade e a rotulagem dos alimentos!”, ponderou um cético Jacoby.
Pegando o gancho da publicidade, à tarde, Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Instituto de Defesa do Consumidor – IDEC; Ekaterine Karageorgiadis, advogada nos projetos Criança e Consumo e Prioridade Absoluta do Instituto Alana; Helena Jacob, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, fizeram seus apontamentos sobre “Publicidade e Consumo na Alimentação”.
A polêmica maior, tratada durante a mesa, partiu da parca comunicação que os fabricantes de alimentos mantém com os consumidores. Os componentes dos alimentos descritos nas embalagens não fazem jus ao que chega às pessoas – Bortoletto mostrou um vídeo bem ilustrativo sobre a questão.
Ainda sobre o tema, Ana Paula citou uma iniciativa da Food Standards Agency Boar, do Reino Unido, em simplificar os conteúdos nutricionais dos rótulos dos alimentos através da implementação de um semáforo – em linhas gerais, verde bom para consumo, amarelo consumo moderado, vermelho riscos à saúde ao se consumir. A adesão a esse semáforo é voluntária, porém, por pressão popular, grande parte dos fabricantes estão aderindo – até, vejam só, a Coca Cola.
De olho nisso, o IDEC preparou uma carta à Coca Cola, questionando por que não assumir a mesma conduta no Brasil? Ao que a empresa respondeu que já atua em confluência com a legislação brasileira – que é deveras flexível com os fabricantes, como o vídeo do IDEC aponta – e já realiza outras ações de educação alimentar no país – bacana, não?
A fabricante de refrigerantes também serviu para Helena Jacob falar sobre a comunicação mercadológica envolvendo os alimentos. Ela aponta que o marketing mudou a abordagem de “persuasão” para “sedução”, numa tentativa muito mais orgânica de aproximação. “A Coca Cola tem uma força acima do bem e do mal, algo quase como um herói de quadrinho, a ponto de inventar o Papai Noel e ocupar um espaço de família feliz no imaginário das pessoas, destronando o que era a família de comercial de margarina nos anos 90”.
O problema maior é que essa mensagem é direcionada, por vezes e não só pela marca em questão, às crianças. Ekaterine Karageorgiadis pontua que é possível que as crianças desta geração e das vindouras se lembrem mais dos brindes que vinham junto de determinados alimentos do que da comida da vó, como estamos acostumados.
Ela aproveitou para lembrar que “toda publicidade para criança é abusiva. O direito da criança é prioridade absoluta, garantido por constituição. É abusiva a publicidade que se utiliza da deficiência de julgamento e experiência da criança – e isso está no código de defesa do consumidor. É preciso mudar o foco da mensagem da publicidade infantil para o adulto e que ele decida o que entra em casa ou não. E que as embalagens sejam claras no que está sendo vendido ali dentro!”
A mesa terminou com um ponto curioso, sinistro e, agora, óbvio, levantado por Jacob: paramos de cozinhar por conta de conveniência e tempo escasso. “Sabe quando aquela mãe, munida de informação sobre os malefícios dos alimentos processados vai desistir de comprar um bolo pronto para comprar os ingredientes e fazer um bolo para os filhos? Quando uma personagem da novela das 9 fizer o mesmo! Isto teria um impacto muito maior que N campanhas que possamos fazer no futuro. Todavia, isso não vai pra TV aberta pois fere o interesse dos anunciantes da novela”.
Depois da atualização sobre a publicidade e consumo na alimentação, a “Identidade à mesa – Aspectos Culturais do Alimento” entrou em pauta com a presença de Bela Gil, apresentadora de TV e chef de Cozinha Natural, Joana Pellerano, coordenadora e docente do curso de especialização Gastronomia: História e Cultura do Senac-SP e Mara Salles, chef e proprietária do restaurante Tordesilhas.
Para além da discussão sobre o que seria a culinária brasileira, Mara veio com um olhar sobre o modo como a gente come: misturado. Não se come em etapas como os franceses. Colocamos o arroz, o feijão, a farinha de mandioca e a carne, seja ela de panela, serenada, fresca, de fumeiro, de sol – enfim, a bendita carne faz parte do jeito de comer do brasileiro.
O curioso – e sabido – é que a única unanimidade nacional é a combinação do arroz e feijão. Quando se fala em culinária brasileira, é possível tomar dois caminhos: legibilidade e legitimidade. Comidas tipicamente brasileiras podem não ser legitimamente do país – vide o próprio arroz e feijão. Ao passo que, pratos criados aqui, com ingredientes provenientes daqui, como o tacacá, podem, perfeitamente, não ter uma leitura, uma identificação com a totalidade do Brasilzão.
Por fim, considerações de Pellerano sobre comida e cultura. “Uma coisa meio posta, é que comida é cultura. E isso é tão dado que a gente esquece por que comida é cultura. Roberto da Matta diz que alimento é o que eu posso comer e comida é o que efetivamente vou comer. A gente aprende com a nossa família, com a escola, com os meios de comunicação o que é comida – e isso é compartilhado com o grupo social. Este grupo faz escolhas e associa significados ao modo de fazer e preparar o alimento que deixa à mostra um código e reforça para os indivíduos do grupo uma identidade compartilhada. Conviver com outros povos, outros costumes, desafia esse código, arejando a tradição e tornando possível criar novas possibilidades e arranjos para a cultura, para a comida”.
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