Por Pedro Hartung*
O brincar foi interditado entre nós. “Pare de brincar!”; “Aqui não é lugar de brincadeira!”; “Essas brincadeiras não te levarão a lugar nenhum…”. Desde o cotidiano das nossas falas, até o pragmatismo dos dias de trabalho ou estudo, a brincadeira não é bem vista.
Como pode algo tão natural e essencial entre nós animais – chamados por alguns, como Huizinga, de Homo ludens – ter sido relegada aos atos fúteis, às ações reprováveis ou às práticas não essenciais? Como é possível nos atuais isolamentos pandêmicos o brincar não ter ainda galgado o posto de cura para o torpor dos dias?
Talvez tenha sido o predomínio de uma pretensa e sisuda racionalidade, que desconhece que a criatividade vem justamente da matriz brincante; ou seja reflexo de uma sociedade orientada pelas jornadas extenuantes de trabalhos repetitivos e pelo desprestígio dos momentos de ócio criativos e regeneradores.
Tenho, ainda, uma complementar hipótese: a recusa da infância e todos os seus predicados. Estamos, ainda, organizados e estruturados em uma lógica adultocêntrica que olha para as crianças como algo menor, passageiro; aquilo que não é, mas que virá somente no futuro a ser. Desqualificamos o ser infantil e todas suas originais e necessárias contribuições para a condição humana, como o próprio brincar. Apesar disto, o brincar e as diversas infâncias nos territórios resistem, pois expressões naturais e essenciais; da ontologia de quem somos.
O brincar é tão importante para nós que é por meio dele que conhecemos, apreendemos e transformamos o mundo, as pessoas e a nós mesmos. Não falo apenas sobre este brincar com brinquedos plastificados no enfermo imaginário da sociedade de hiperconsumo. Refiro-me, primordialmente, ao brincar das palavras e sons que forjaram os poetas; do tatear fino dos dedos e das pernas ágeis que deram luz aos atletas e bailarinos; do ziguezaguear das ideias que possibilitaram a filosofia; do apontar, contar, agrupar na gênese dos números matemáticos; do tentar, errar e refazer que impulsionou o método científico; e do fazer de conta, de onde se retira a matéria prima dos artistas, fonte de tenacidade e resiliência humana.
É por isso que brincar é um direito. Um direito de todas as crianças para que, mais do que suprir a lógica funcionalista de desenvolvimento, possam ser e existir de forma integral. Algo previsto e garantido no artigo 227 da Constituição Federal brasileira, no artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, como também no artigo 16, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que esse ano completa 30 anos de indispensável vigência. Em verdade, este deveria ser um direito fundamental de todos nós humanos, comprovando que as crianças e a infância têm muito ainda a nos ensinar e a salvar-nos de nós mesmos.
Nesta pandemia do COVID-19, de espaços e encontros limitados, é indispensável aprender com as crianças. Aprender a como olhar uma formiga caminhando lentamente no chão e imaginar suas aventuras e destinos; como ver o mesmo filme o ler a mesma história, encantando-se todas às vezes de formas diferentes; como resignificar uma folha de papel em branco para devaneios em desenhos ou aviões em dobraduras das mais tecnológicas; como cantar músicas despretensiosamente, compartilhando afeto em forma de sons e danças; como falar animisticamente com as coisas e objetos de nossas casas, com pequenos animais de madeira ou de pelúcia; como, enfim, reencantar o mundo mais comezinho a nossa volta, abrindo espaço para a revelação de um grande e leve alumbramento.
Italo Calvino, na sua inacabada obra ‘Seis propostas para o próximo milênio’, ilumina que leveza é mudança de perspectiva; é olhar de novo, com outros olhos e com outros meios a vida e suas possibilidades. É Perseu vencendo a ctônica Medusa, olhando indiretamente pelo reflexo do escudo. É enfrentar a vida em uma multiplicidade de jeitos, sentidos e atravessamentos. E é isso que conquistamos ao brincar: olhar novamente para que não fiquemos petrificados, preservando, assim, a nossa humanidade.
Brincar não é alienar-se; é elaborar, com leveza e profundidade, as dores, alegrias e amores dessa vida, colocando-nos altivos, presentes e inteiros não entre o céu e a terra, mas com a dupla cidadania destes dois mundos. Somente o brincar é capaz de fazer habitar em nós essas duas forças antagônicas, ao mesmo tempo. Realismo e esperança. Terra e Céu.
* Pedro Hartung é advogado do Alana e especialista em direitos da criança
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