Por Rachel Sciré*
Em 11 de agosto de 1973, no número 1.520, da avenida Sedgewick, no bairro nova-iorquino do Bronx, o DJ Kool Herc comandou a festa que entraria para a História como a data simbólica de surgimento do Hip Hop. Com o nome de batismo Clive Campbell, Herc era um jovem de apenas 18 anos, nascido em Kingston, na Jamaica, que discotecava nos bailes do bairro e ganharia projeção ao manipular os vinis de uma forma diferenciada, que mantinha a pista de dança aquecida.
Entre as técnicas utilizadas por Herc e desenvolvidas por outros nomes, como Grandmaster Flash, o DJ selecionava o trecho instrumental da música de um LP (em geral, valorizando o ritmo, para manter os dançarinos em movimento), e deixava o som rolando em um toca-discos até que estivesse chegando ao fim, então soltava a mesma parte em outro toca-discos, emendando, sem perder o tempo da música. Enquanto isso, retornava ao início do trecho selecionado, no primeiro LP, fazendo o que depois se denominaria como back-to-back. Assim, seria possível alterar criativamente faixas musicais, selecionando os melhores “breakbeats” com as batidas enfileiradas que favoreciam a dança, e incorporar outras sobreposições sonoras, inclusive, recitar rimas para animar o público.
A ocasião da festa marca os 50 anos do Hip Hop, celebrados em 2023, ainda que as origens de quaisquer manifestações culturais nunca estejam centradas em uma única pessoa ou em um momento determinado da História. No caso, o Hip Hop revisa diversas formas, tradições e práticas afrodiaspóricas e incorpora aspectos culturais contemporâneos da década de 1970, como a expansão dos meios de comunicação, o desenvolvimento de tecnologias (com destaque aqui para os aparelhos sonoros) e as experiências urbanas de opressão racial, social e policial nos guetos norte-americanos, ocupados por negros, imigrantes jamaicanos, caribenhos e porto-riquenhos, onde cresciam o desemprego e as desigualdades, em um período marcado pela reestruturação econômica, com a desindustrialização, o aumento do poder financeiro e do controle corporativo multinacional do mercado.
“O hip-hop é uma forma cultural que tenta negociar as experiências de marginalização, oportunidades brutalmente interrompidas e opressão dentro dos imperativos culturais da história, identidade e comunidade afro-estadounidense e caribenha. É o resultado da tensão entre as fraturas culturais produzidas pela opressão pós-industrial e os laços que ligam a expressividade cultural negra”, explica a socióloga Tricia Rose, no livro Barulho de Preto: rap e cultura negra nos Estados Unidos contemporâneos. Em uma análise profunda, Tricia aponta continuidades estilísticas nas expressões do movimento Hip Hop (o rap, o grafite e o breaking) em torno de três conceitos: fluxo, camadas e rupturas.
Se pensarmos nas linhas musicais, das bases do rap, nas visuais, das artes criadas em forma de grafite, e nas físicas, da movimentação do corpo durante a dança, é possível perceber como os artistas de Hip Hop criam e sustentam um movimento, contínuo e circular, que de repente é atravessado por um corte, por exemplo, com o som dos scratchs (os ruídos produzidos com a agulha no vinil, ao arrastá-los para frente e para trás). As letras pontiagudas, inclinadas, angulares das palavras grafitadas nos muros também sugerem dinamismo. E dança dos B.boys e B.girls destacam um fluxo, em que os movimentos se encaixam, são paralisados e depois deslizam, desencadeando respostas de outros dançarinos. Na música, na arte, na dança, vão se sobrepondo camadas, com a incorporação de elementos, que se acumulam até chegar a um instante de quebra ou ruptura, que evoca transgressões, revela fraturas sociais e sugere transformações.
Junto aos DJs e aos MCs, aos B.boys e B.girls e aos grafiteiros e grafiteiras, reconhecemos então aquele que é considerado o quinto elemento da cultura Hip Hop: a consciência social coletiva. Imerso nas experiências locais, compartilhadas de maneira coletiva, o Hip Hop se constitui como um campo interpretativo e um sistema orientador, capaz de promover o autoconhecimento, a compreensão da realidade e a mobilização.
Não é a toa que o poder do raciocínio é sugerido no nome do principal grupo de rap no Brasil, o Racionais MC’s (ainda que a inspiração tenha vindo do “Tim Maia Racional”). Como um movimento sociocultural global que uniu jovens de distintos contextos marginalizados, o Hip Hop chegou ao Brasil no final dos anos 1970, tendo como porta de entrada os bailes black e a cultura de massa associada à black music. Assim como nos Estados Unidos, a dança foi o primeiro elemento a ganhar a atenção da juventude, nos bailes, nas festas de “fundo de quintal” nas periferias, e nas ruas do centro da cidade de São Paulo, com destaque para a estação do metrô São Bento.
Foi em uma festa de bairro na avenida Cabuçu, no Jardim São Luís, zona norte de São Paulo, que Adivaldo Pereira Alves (Edi Rock) encontraria Kleber Geraldo Lélis Simões (KL Jay). Naquele tempo, Kleber já comandava a música das festas, mas ainda por meio de fitas K7, em um aparelho de som 3 em 1, e era apelidado de Michael, uma referência ao Michael Jackson, porque segundo Edi “o bicho dançava… aí, dançava bem!”. Em meados de 1983, Edi e Kleber se aproximariam por causa da dança e também montariam uma equipe de som, na qual ambos discotecavam.
A composição de raps aconteceria só mais tarde, depois de assistirem a apresentações de MC’s norte-americanos nos bailes em que frequentavam. A dupla Edy Night e KL Night inspiraria Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown) e Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), quando eles também estavam começando a fazer músicas. Amigos de infância criados juntos na região do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, Pedro Paulo e Paulo Eduardo formavam a dupla B. B. Boys (Black Bad Boys) e, em 1988, venceriam um concurso de rap na casa de shows Asa Branca, em Pinheiros.
As duas duplas que frequentavam a São Bento se uniriam em 1989, para a participação na coletânea de rap Consciência Black, já com o nome Racionais MC’s e a música “Pânico na Zona Sul”. O resto é história, que deve ser escutada como parte fundamental da discografia brasileira, e que também pode ser estudada, como mostra a recente publicação Racionais MC’s: Entre o Gatilho e a Tempestade, com artigos de pesquisadores da obra do grupo. O livro analisa a produção do Racionais, por meio de discussões sociológicas, estéticas e políticas, que abarcam temas como a dinâmica social urbana brasileira, o racismo, a violência, a religião, as masculinidades, as formas de resistência, as desigualdades, entre outros aspectos. Foi organizado por Daniela Vieira, doutora em Sociologia, e por Jaqueline Lima Viera, doutora em Antropologia, e lançado pela editora Perspectiva, em junho de 2023.
De acordo com Deivison Faustino, doutor em Sociologia que assina a apresentação do livro, “os Racionais não são um fenômeno isolado, mas sim a expressão mais sofisticada e desenvolvida de um processo mais amplo que envolve uma enorme rede de organizações comunitárias, agremiações culturais, grupos de rap, break, grafite, skatistas, pichadores, radialistas comunitários e militantes negros e de esquerda de base que constituíram o movimento hip-hop que sustentou um Racionais”.
Assim, a publicação também demarca a consolidação do Hip Hop como um campo de estudos, bem como o reconhecimento da excelência estética, profundidade sociológica e do alcance da obra do Racionais, que fincou seu espaço no universo acadêmico. Vale lembrar que o álbum Sobrevivendo no Inferno (1997) foi incluído na lista de obras obrigatórias para o vestibular 2020 da Unicamp, no gênero poesia. Na mesma universidade, Jaqueline Santos passou a ministrar a disciplina “Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro”, que culminou em uma aula magna com a presença dos “quatro pretos perigosos”, em 2022. Na ocasião, estudantes e docentes reivindicaram a concessão do título “doutor honoris causa” aos músicos do Racionais MC’s.
Outro contexto determinante para isso se relaciona com a política de cotas, que aumentou o acesso de estudantes negros nas universidades, trazendo outros olhares e temas de pesquisa, que dialogam com suas experiências. É o que destaca KL Jay em entrevista, quando diz que a juventude que ouviu Racionais chegou a universidade e levou mais pessoas a conhecer o grupo. “Isso é bom, porque influencia a universidade, os alunos, e só assim as coisas vão mudando no Brasil.”
O DJ, que comemora o aniversário em 10 de agosto, um dia antes da aclamada data do movimento Hip Hop, vai participar de um bate-papo sobre o lançamento do livro, com a presença de Daniela Vieira, Jaqueline Santos e Deivison Faustino, no Sesc Vila Mariana e, depois da conversa, fará a a discotecagem no saguão do Teatro Antunes Filho (piso superior do Sesc Vila Mariana). Na mesma unidade do Sesc, haverá a intervenção Block Party Hip-Hop, que recria o ambiente das festas em espaços públicos que estão na origem do movimento. A programação integra o Estéticas das Periferias 2023, ação política, social, cultural e artística que coloca no centro a produção marginalizada da juventude negra, periférica, de mulheres e LGBTQIAP+ e, em sua 13ª edição, traz como tema os 50 anos do Nascimento Hip Hop e os 40 anos da chegada do Hip Hop no Brasil. O Estéticas das Periferias acontece de 22 e 27 de agosto, promovido pela Ação Educativa e por instituições culturais parceiras, como o Sesc São Paulo.
Veja a seguir a relação completa das programações que comemoram o Hip Hop no Sesc Vila Mariana, da mesma forma que sempre foi característica do movimento: com muita diversão e consciência!
Block Party Hip-Hop (Estéticas das Periferias 2023)
Sábado (19/8), das 15h às 17h | Praça de Eventos | Grátis | Livre
Com curadoria do DJ ErryG, propõe uma celebração ao início da cultura Hip Hop, quando floresceram as grandes “festas de quarteirão”, com atrações e a presença de integrantes da velha e da nova escola.
DJ set: Dj ErryG (Dos Tambores aos Toca Discos) e DJ Priscilla Groove
Beat Maker: Black Alquimista
Rap: MC e pocket show Gaspar (ZÁfrica Brasil)
Breaking: Station Gang Crew
Graffiti: Pixote e Nenesurreal
Griot-Apresentador: Oswaldo Faustino
Batalha de MCs
Mamuti – CPBMC – Circuito Paulista de Batalha de MCs
WinniT – Batalha Central Diadema e Batalha da Matrix (SBC)
Maria ZN – Batalha da Norte
Vick Vi – Batalha dos Estudantes (Guarulhos)
Cemporcento – Rimadores do Vagão
Kauan MC – Sexta Free/Batalha Racional
Lançamento do livro Racionais MC’s – Entre o gatilho e a tempestade
Quinta (24/8), às 19h | Praça de Eventos | Grátis | Livre
Bate-papo com DJ KL Jay (Racionais MC’s), Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos, organizadoras da publicação, e Deivison Faustino, autor da apresentação da obra.
Discotecagem com KL Jay
Quinta (24/8), às 20h30 | Foyer do Teatro | Grátis | Livre
O DJ apresenta repertório que celebra o lançamento do livro Racionais MC’s – Entre o gatilho e a tempestade.
Rachel Sciré é editora web do Sesc Vila Mariana, jornalista e mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. É uma das autoras da coletânea Racionais MC’s: entre o gatilho e a tempestade (editora Perspectiva).
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