Adriana Ferreira apresenta Goo, do Sonic Youth
Adriana Ferreira Silva é jornalista e atua como editora sênior, responsável pela editoria de cultura e pelo site da revista Marie Claire
Como um videoclipe transformou o Sonic Youth na banda que embalou meus sonhos musicais
Tudo começou graças a um videoclipe. Era início da década de 1990, a MTV tinha acabado de chegar ao Brasil e muitas de nossas tardes e noites eram dedicadas a ver, gravar e rever os clipes de bandas que amávamos. Naquela época, por meio período, eu era vendedora na Velvet, uma loja de discos super cool (pelo menos, eu acho ;-)) que existe até hoje, numa das galerias da Rua 24 de Maio, no centro de São Paulo. Por causa do trabalho, minhas bandas preferidas mudavam à medida que fazia descobertas — aos 15 anos, cercada de vinis, fitas cassete e CDs, havia muito a descobrir. A televisão, por sua vez, dava formas, cores e texturas a essas sonoridades.
Na Velvet, comecei a ouvir Sonic Youth por Daydream Nation, um disco experimental, difícil, que me apresentou às primeiras distorções de guitarra. Mas por mais instigante que ele parecesse (ou os outros singles do Sonic, que apareciam ali e sumiam, como relíquias), nada se igualou à primeira vez que escutei (ou melhor, assisti) Goo, LP que a banda lançou em 1990. O álbum saiu ao mesmo tempo que a recém-chegada MTV passou a exibir o videoclipe de uma das faixas, Dirty Boots. Foi um choque: de repente, estavam reunidos naquele vídeo todos os ingredientes que faziam de nossa adolescência grunge um mundo de sonhos, que tentávamos realizar no porão de inferninhos underground como o finado espaço Retrô, no centro paulistano.
Na tela, uma garota que poderia ser qualquer uma de nós, usando uma camiseta do Nirvana (sim, Nirvana!), chegava a um clube que gostaríamos que fosse o mesmo que frequentávamos. Seu flerte, um garoto de cabelos lisos até o ombro, usando camisa xadrez, era nosso sonho de consumo. Dançávamos como eles, tocando guitarras imaginárias e pulando uns sobre os outros, numa versão mais suave do “pogar” dos punks. Tudo o que se desenrolava naqueles cinco minutos nos dizia respeito: uma menina “ficando” com um carinha num canto (e jogando-o para o lado quando o espertinho tentava enfiar a mão sob sua saia), o tipo desajeitado, os gatinhos desgrenhados, as moças cheias de atitude. No auge de um solo de barulhentas guitarras, quando os dois protagonistas subiam ao palco, finalmente se beijavam e depois pulavam, dando um stage dive sobre a plateia (algo que poucas de nós arriscamos fazer, mas morríamos de vontade) — era como se estivéssemos num conto de fadas. Perdi as contas das vezes que assisti a esse videoclipe e como ele inspirou meus romances juvenis. Até hoje, ao revê-lo, posso sentir os perfumes e cores daquela época.
Essa mistura de sentimentos fez de Goo o primeiro álbum ao qual dediquei horas de audição e estudo e da Sonic Youth a banda mais emblemática de minha adolescência — e também da fase adulta: até hoje, vez em quando, sonho que estou num de seus shows (eles já tocaram até no meu quintal). Para os nova-iorquinos, o disco também foi definitivo, representando uma nova etapa de sucesso e reconhecimento. Com cinco trabalhos até então, nunca a Sonic Youth tinha vendido tantas cópias: 200 mil, o que os colocou no número 96 da lista de duzentos da Billboard.
Goo era a ponte entre o underground e o pop, construída entre efeitos de guitarra e múltiplas referências culturais, preparando o cenário para a emergência de uma leva de grupos do pós-punk que estourariam no ano seguinte, quando o Nirvana lançou Nevermind e carregou consigo tudo aquilo que ouvíamos (Mudhoney, Alice in Chains, Soundgarden, L7 etc.), víamos e vestíamos rumo ao mainstream. Da primeira à última faixa, passando pelo desenho de Raymond Pettibon que ilustra a capa em preto e branco, mostrando um casal de óculos escuros dentro de um carro, tudo em Goo se tornou um clássico.
Por inexperiência, só muito tempo depois de descobrir Goo é que percebi o quanto ele era também feminista, e isso se deve a ela. Quando a baixista divide os vocais com o MC Chuck D, do Public Enemy, em Kool Thing, não está apenas promovendo o célebre encontro do indie rock com o hip-hop, mas também desancando o machismo presente no rap, já que a letra é uma resposta a uma conversa entre LL Cool J e Kim Gordon (por isso o “Kool” do título”), no qual ele se mostrou machista e arrogante. Ao emprestar seu vocal contundente aos etéreos versos de Tunic (Song for Karen), Gordon está fazendo também uma crítica à indústria cultural, cuja pressão levou Karen Carpenter, dos Carpenters (a quem a música é dedicada), à morte por anorexia nervosa, aos 32 anos.
Quando finalmente o Sonic Youth veio ao Brasil, em 2000, ver Kim Gordon ao vivo foi uma experiência profunda e inesquecível. Seu visual, sua voz, sua pose eram hipnóticos e irresistíveis. Ao empunhar o baixo em direção às caixas de som, criando microfonias estridentes, quase inaudíveis, ou ao se arrastar pelo chão tocando Cinderella’s Big Score, ela estava realizando o sonho de milhares de meninas que adorariam ser “a garota da banda”. Depois disso a vi algumas vezes e a magia da primeira impressão nunca se desfez.
Tenho um segredo para sentir que o tempo não passou: colocar para tocar os primeiros acordes de Dirty Boots e fechar os olhos. É como se eu estivesse de novo no porão, pulando de um lado para o outro, tocando minha guitarra imaginária…
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