O sorriso negro de Ivone Lara no Sesc Vila Mariana

12/04/2024

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Uma das desbravadoras do mundo do samba para as artistas mulheres, Dona Ivone Lara começou a compor muito cedo, com apenas 12 anos. O machismo, no entanto, fez com que décadas se passassem até que a artista fosse reconhecida por suas criações. Integrante da escola de samba Prazer da Serrinha, ela sabia que suas composições não seriam aceitas se os outros soubessem que haviam sido escritas por uma mulher. Por isso, seu primo Mestre Fuleiro as apresentava como se fossem dele. Com a ótima recepção às músicas, Ivone secretamente tinha a confirmação de que era boa no que fazia. 

Corta para 1999, quando ela apresentou dois shows no Sesc Vila Mariana, nos dias 3 e 4 de setembro de 1999. Aos 77 anos, agora respeitada como a Grande Dama do Samba, Lara entoou um punhado de clássicos de sua lavra (a maioria com letra de Délcio Carvalho, seu parceiro mais frequente), encantando o público com suas interpretações (a voz afinada de quem integrou um coro regido por Villa-Lobos) e suas inspiradas melodias. Uma dessas noites foi eternizada na gravação que agora chega ao público no álbum Relicário: Dona Ivone Lara (ao vivo no Sesc 1999), quinto trabalho do projeto do Selo Sesc, que sai exclusivamente pelo Sesc Digital.  

Estar no palco era uma de suas maiores alegrias: não à toa, a sambista só parou de se apresentar com idade já bastante avançada, depois dos 90 anos. Seu último registro musical foi uma participação no DVD e CD Sambabook Dona Ivone Lara, que homenageou sua obra e foi gravado ao vivo em novembro de 2014, no Rio de Janeiro, quando a artista estava com 92. “O que eu mais gosto de fazer é show. O que eu mais adoro. Eu me realizo quando estou num teatro, num palco. Não preciso ganhar muito, não, mas se tô cantando e vendo povo junto comigo, cantando também, ah, eu tô realizada”, disse a artista, em entrevista ao programa especial da TVE Eu sou o show, de 1985. 

O repertório do espetáculo apresentado no Sesc foi baseado no álbum Bodas de Ouro, de 1997, que celebrou os 50 anos de carreira desse que foi um dos maiores nomes do samba, trazendo 13 regravações de sucessos de sua trajetória. Doze delas contavam com participações especiais, de nomes consagrados, como Gilberto Gil, Martinho da Vila, Djavan, Danilo Caymmi, Beth Carvalho e Almir Guineto, a artistas que estava em destaque na época, como Netinho (do Negritude Jr), Ara Ketu e Adryana Ribeiro (do grupo Adryana e a Rapaziada).  

“Não era o disco que ela queria fazer, diga-se de passagem. A gravadora impôs o repertório e os convidados — há muitos anos sem gravar (como outros sambistas, Dona Ivone perdeu lugar para o pagode de butique), ela disse sim. O resultado é bom, mas poderia ser melhor se apresentasse novidades dessa que é uma das mais brilhantes melodistas da música brasileira”, disse o jornalista Mauro Dias em reportagem no Estado de S. Paulo que anunciava os shows no Sesc. 

O marco para o álbum comemorativo era a entrada de Dona Ivone Lara na então recém-fundada escola de samba carioca Império Serrano, em 1947, que a artista integrou durante décadas. No mesmo ano, ela assinou o samba Não Me Perguntes, considerado um hino da agremiação. Mas só em 1965 ela entraria para a ala de compositores da Verde e Branca, assinando o samba-enredo Os cinco bailes tradicionais da história do Rio, composto em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau — o primeiro criado por uma mulher a ser desfilado por uma grande escola. Com ele, o Império foi vice-campeão do carnaval. Embora haja notícia de compositoras anteriores a Dona Ivone no universo do samba, nenhuma havia alcançado tamanho prestígio. Até hoje, nenhuma conquistou tanto, e ela se destaca não só entre as mulheres do gênero, mas entre os artistas dele em geral. 

Apesar de seu talento inequívoco e de sua formação musical embasada e diversificada, um combo de machismo e racismo foi determinante para que tudo em sua trajetória acontecesse lentamente — pisando “devagarinho”, como diz uma famosa composição sua. O tempo que levou para dar cada passo em sua vida artística — compôs a primeira música aos 12 anos e lançou o primeiro álbum solo somente aos 56 — é um exemplo dos muitos obstáculos enfrentados por artistas negros, sobretudo mulheres, no Brasil. Não por acaso muitos sambistas chegaram ao fim da vida na pobreza. Ivone só passou a se dedicar integralmente à música em 1977, após se aposentar do trabalho como enfermeira e assistente social, carreira que lhe garantiu estabilidade financeira e na qual também se destacou, tendo atuado com a renomada psiquiatra Nise da Silveira. 

“Eu, desde criança, tinha loucura pra ser artista. Uma tia minha era cheia de preconceito, achava que artista não prestava. Ela me criava e nunca deixou eu me enfiar com artista. Mas tudo o que quis fazer na vida eu fiz. Então esperei 37 anos pela aposentadoria e me entreguei ao que queria: ser artista, gravar, cantar no rádio e na televisão”, contou Dona Ivone Lara em entrevista a Antônio Chrysostomo, na reportagem “Um novo LP. Uma turnê a Paris: Dona Ivone Lara, compondo e cantando à beira do fogão”, publicada no jornal O Globo, em outubro de 1979. 

Embora tenha demorado a lançar seu álbum de estreia (foi apenas em 1978 que saiu Samba minha verdade, samba minha raiz), desde 1970 a futura Rainha do Samba vinha gravando músicas lançadas em coletâneas que apresentavam novos artistas — a primeira delas foi Sargentelli e o Sambão (1970), produzido por Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves. Foram eles que a batizaram de Dona Ivone Lara, nome artístico que ela adotou a contragosto, devido à insistência da dupla: afinal, não tinha nem sequer 50 anos ainda. 

Seu talento como compositora logo chamou atenção, e muitas de suas canções foram registradas primeiro por outros cantores. Foi o caso de Liberdade (parceria com Délcio Carvalho), que abriu a apresentação do Sesc Vila Mariana, lançada por Roberto Ribeiro no álbum Poeira pura, de 1977. A letra fala da nostalgia de um amor perdido, assim como a canção seguinte, Tendência (dela com Jorge Aragão), clássico das rodas de samba e uma das joias da obra da artista. A música foi lançada por ela em Sorriso Negro (1981).  

Embora o gênero do personagem não seja citado, quando a canção está na voz de Aragão, parece manter uma tradição desse estilo musical, evocando a figura da mulher má, que “destruiu o que era seu”. Já sob o canto de Ivone Lara a impressão é de que os papéis se invertem, com o homem como algoz, posição que ele pouco ocupava na música brasileira, já que a maioria dos compositores do país era (e ainda é) do gênero masculino. Com os atuais questionamentos à heteronormatividade, é possível ainda brincar de imaginar outras possibilidades para a figura da letra. 

A sequência traz Sorriso de Criança (com Délcio Carvalho), faixa que dá nome ao segundo álbum da cantora, de 1979. Embora com menos frequência, Ivone Lara também escreveu letras, e uma delas foi a de Samba de Roda Pra Salvador, que ela assina sozinha. A música foi gravada em Alegria minha gente (Serra dos Meus Sonhos Dourados), de 1982, e é mais uma amostra da versatilidade da compositora, que aqui aposta no gênero musical baiano.  

Ela emenda com duas pérolas de seu repertório: Enredo do meu samba (parceria com Jorge Aragão) que traça um inspirado paralelo com o universo das escolas de samba para falar de um amor que chegou ao fim, lançada em 1984 por Sandra Sá, na trilha da novela Partido Alto, da Globo, e pelo Fundo de Quintal, no disco Partido Alto com Partido em 6 e Grupo Fundo de Quintal, e Mas quem disse que eu te esqueço (com Hermínio Bello de Carvalho), que teve seus primeiros registros feitos por Nana Caymmi, no disco …E a gente nem deu nome (1981), e Paulinho da Viola, em Prisma luminoso (1983).  

Vestindo blusa e saia brancas de renda Dona Ivone Lara estava acompanhada por Armando Martinez (teclado), Edson Bastos (contrabaixo), Gilberto Torgano (bateria), Álvaro Barcelos (percussão), Maurício Verde (cavaquinho) e Hélcio Brenha (sax e clarinete). Antes do número seguinte, o sétimo da noite, se dirige ao público do Sesc Vila Mariana de forma econômica: “Bom, este samba que eu vou apresentar agora está no LP de Zeca Pagodinho, ‘Pra afastar a solidão’”, diz, sobre a romântica composição assinada por ela e Délcio Carvalho, lançada em 1998 no disco que leva o nome do sambista.  

A oitava faixa é um pot-pourri com O caminho é meu (Paulinho Mocidade e Jurandir Bringela, uma das únicas no repertório show não compostas pela artista, registrada por ela no álbum Ivone Lara, de 1985), Nos Combates Desta Vida (outra parceria com Délcio Carvalho, uma espécie de hino sobre a própria Ivone Lara) e Sereia Guiomar (também com Délcio Carvalho), gravada pela autora com a participação de Bethânia no álbum Sorriso Negro (1980). 

Em seguida, é a vez de Resignação (Dona Ivone Lara com o primo Hélio dos Santos, o Tio Hélio). Durante quase toda a letra, imagina-se que a intérprete está se referindo a um homem: “Sinto que eu estou me atormentando / E aos poucos me acabando / Por te amar em vão”, começa ela. Quase no fim, no entanto, ela canta do ponto de vista masculino, revelando que, mais uma vez, o eu-lírico é um homem que acusa uma mulher de fazê-lo sofrer. “Alimentei uma ilusão / Dentro do meu coração / E hoje vivo tristonho / com resignação”.  

Ela volta a se enveredar pelo samba de roda em Candeeiro da vovó (com Délcio Carvalho), enquanto a letra evoca a religiosidade católica negra. Após os aplausos na música, Dona Ivone diz: “A vovó agradece” e emenda em outro pot-pourri, que reúne os clássicos Acreditar (com Délcio Carvalho), Sonho Meu (com Délcio Carvalho), Alguém Me Avisou (com letra e melodia de Ivone Lara) e Tiê (com os primos Tio Hélio e Mestre Fuleiro). 

As duas primeiras também foram registradas por outros artistas antes da própria compositora: Acreditar foi gravada por Roberto Ribeiro (em Arrasta Povo, de 1976) e Sonho meu foi interpretada por Maria Bethânia, em dueto com Gal Costa, no disco Álibi (1978). Foi o primeiro grande sucesso de Dona Ivone Lara: o álbum em questão foi o primeiro de uma mulher a atingir um milhão de cópias vendidas. No mesmo ano, a sambista lançou seu elogiado disco de estreia, Samba minha verdade, samba minha raiz, e a popularidade da música — que, além de tudo, se tornou uma espécie de hino da Anistia, graças aos versos “Sonho meu, sonho meu / vai buscar quem mora longe” — deu um belo impulso em sua carreira.  

Alguém me avisou é outra canção inspirada da Grande Dama do Samba. Os versos “alguém me avisou / para pisar nesse chão devagarinho” parecem descrever a própria trajetória da artista. A música também foi gravada por Maria Bethânia, ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no disco Talismã (1980), pouco mais de um ano depois de Sonho meu ter estourado. A própria autora só registraria a música no ano seguinte, em Sorriso negro (1981). Já Tiê foi uma das primeiras composições da pequena Yvonne Lara da Costa. A menina, que tinha 12 anos, ganhou um pássaro tiê-sangue de seus primos Fuleiro e Hélio, que assinam a música com ela.  

“Todos versos que eu fazia eram para o pássaro. Ele que era minha boneca, ele que era minha distração, ele era tudo pra mim. Então, com esse passarinho eu conversava, eu acarinhava, e fiz todos meus versinhos dedicados a ele”, disse a artista à TVE, em 1985. A canção foi lançada por ela em 1974, no disco coletivo Quem Samba fica? Fica, idealizado por Adelzon Alves, com arranjos de João Donato e Maestro Gaya. 

Ela emenda no partido-alto Pagode de Pai Joaquim (com Délcio Carvalho), lançado em 1987 por Dominguinhos do Estácio no álbum Além de Mim, que só seria registrado pela própria Ivone em um disco da série A música deste século por seus intérpretes, do Sesc SP, em 2003 — a gravação foi extraída da participação da artista no programa Ensaio, dirigido por Fernando Faro na TV Cultura de São Paulo, em 11 de fevereiro de 2002. Ao fim da música, ao ser aplaudida, ela volta a se dirigir à plateia do Sesc Vila Mariana: “Muito obrigada. Mas não esqueça que eu já tô vovó, hein? É, tem que me poupar, viu? É, não pode ser assim não, senão já viu”, diz, arrancando risadas dos presentes.  

Axé de Ianga (Pai Maior), outra que ela assina sozinha, é um exemplo da presença da religiosidade sincrética na obra da autora: ao mesmo tempo que fala que o personagem da música “rezou a ladainha pra Jesus de Nazaré”, narra que o vovô “tirava irmão do tronco / escondido do senhor / pra curar seus ferimentos / com o banho de abô”, referindo-se à mistura de água, ervas maceradas e outros ingredientes usada no candomblé como banho ou para ser bebida, chamada de abô ou àgbo.  

Ao final do número, Dona Ivone Lara é muito aplaudida, ao que responde: “Desejando a todos vocês muitas felicidades, muito aqüé [palavra de provável origem na África Ocidental que significa “dinheiro” e foi muito popularizada pelo pajubá, dialeto da comunidade LGBTQIA+ baseado em uma diversidade de línguas africanas usadas inicialmente em terreiros de candomblé], que sem ele não se resolve nada. Tem muita gente aí que diz: ‘Ah, o dinheiro não é tudo.’ Dinheiro é, sim. Sem ele a gente não faz nada! Como é que vai dizer que dinheiro não é tudo? Então, eu quero a todos vocês muita felicidade, muito dinheiro no bolso, muita alegria, muita saúde e que vocês me desejem isso também, viu? Muito obrigada (risos)”, ela se diverte, sendo ovacionada.  

Antes do que parece ser a última música do repertório do “tempo regulamentar”, Dona Ivone volta a se dirigir à plateia: “Vou me retirar, dá licença?”. Em seguida, ela entoa a emblemática Aquarela Brasileira (de seu parceiro musical Silas de Oliveira), o samba-enredo desfilado pelo Império Serrano em 1965 — entre 20 músicas (afinal, duas das 15 faixas são pot-pourris), essa é apenas a segunda não composta pela Grande Dama do Samba a integrar o show. Na época, a escola ficou em quarto lugar, mas em 1975 a obra explodiu em uma gravação de Martinho da Vila, no disco Maravilha de cenário. A banda finaliza com um trecho de Aquarela do Brasil, o clássico e sucesso internacional de Ary Barroso que inspirou Silas de Oliveira a compor sua ode ao nosso país. 

No que provavelmente foi o bis da noite, um grito de “maravilhosa” ecoa quando Dona Ivone Lara entoa os primeiros versos da combativa Sorriso negro, de Jorge Portela, Adilson Barbado e Jair Carvalho, lançada por ela em 1981 no disco homônimo, em gravação com a participação de Jorge Ben Jor. É a terceira música de outros compositores cantada no show por essa artista que foi um dos maiores nomes do samba e se despediu em 2018, aos 97 anos, deixando um precioso legado de resistência e brilhantismo. 



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