POR ELISA LUCINDA
ILUSTRAÇÕES ALINE BISPO
Leia a edição de AGOSTO/24 da Revista E na íntegra
Me mostrou muito cedo os caminhos nítidos e nebulosos do verbo,
suas florestas, atalhos, clarezas, edificações.
Me lançou às orgias gramaticais,
no sentido de conhecer as regras
para melhor burlá-las e recriá-las,
me inspirou aos quintais das liberdades experimentais
pelo entendimento da análise sintática,
essa ciência tão antipática aos olhos de tantos!
Tudo para que eu compreendesse logo
o extenso país da palavra,
seu interessantíssimo funcionamento
e seu saboroso encanto.
“Em todo o viver, quem nos acompanha é o conhecimento!”,
bradava.
Era sempre assim,
no trabalho, no clube, na rua, na família,
arauto de um aforismo,
fornecedor de um conceito.
Destemido pioneiro de sua estrada,
já na trilha da infância me atraiu para o poder do que se fala,
para o quanto, através desta trama, deste tecido de linhas,
se pode ser renovável.
Me apresentou à sensibilidade masculina com sua astúcia dançarina de salão,
o cavalheiro falante,
o respeitador galante
do planeta feminino e suas guerreiras divas!
Por causa dele amo os homens
muito de olho no valor ético e estético das narrativas.
Amoroso,
paterno,
conversador,
altruísta, inquieto e equilibrista,
entre sonhos, combates e utopias de resistência
o cavaleiro teve a sapiência de provocar com a lira das palavras os destinos da tribo.
Era ousado, observador, elegante e inteligente.
Soube sempre da força da paternidade na fundação das cidadanias,
na gênesis das gentes.
Um acumulador de adjetivos e, ao mesmo tempo, inocente.
Era também comum,
raro, sofisticado, popular e transparente.
Deu nó nas improbabilidades, surpreendeu escravocratas
e, apesar dos muros,
ergueu o mundo que queria inventar.
Mergulhou-se em competência jurídica
pra ver se encontrava um jeito legal de realizar o meu desejo,
o modernoso e inédito intento de não mudar meu sobrenome depois do casamento.
Bingo!
Encontrou um jeito,
e o feminismo daquela hora assistiu tal alvorecer.
Bancou, pioneiro e contemporâneo,
a nova ideologia,
e sem qualquer impedimento,
compreendia meu parecer.
Ficou tão claro tudo, que,
como se previsse o futuro,
deu-me de presente de casamento
uma bela máquina de escrever.
Olhe, alguém pode discordar, se quiser,
mas acho que, definitivamente,
não sou filha de um homem qualquer.
Dá pra ver.
Deu-me desde sempre sua fartura criativa,
seus saberes desfrutáveis dentro do sentido palatável.
Deu-me a palavra como instrumento e armadura de proteção.
Tudo que era abstrato tinha lugar material em nós.
Ficava substantiva toda gama de expressão:
A amizade da vizinhança do bairro, o amor orgulhado por nós, sua criação.
Tudo cintilava com peso de ação: os ralhares originais, cheios de exemplificações,
os constrangedores sermões.
Tudo pela palavra ganhava corporalidade e a realidade, com ele,
exuberava o mesmo brilho das ficções.
Tudo era muito divertido à sua volta.
Gostava de improvisar,
não temia o improvável,
amava o inédito,
por isso era capaz de ousar.
Conduziu-me, ainda menina, ao caminho da poesia,
essa alegoria, essa arte completa e delirante,
e levou minha subjetividade a ser construída sobre este mirante.
Cheiroso, encantador, preto, revolucionário, carismático, vencedor,
visionário e viajante,
esse baiano capixaba,
maravilhoso de tão impossível,
apontou-me saídas criativas numa nação estragada pelo racismo por todos os lados.
Trocadilhista,
sindicalista,
romântico,
espirituoso,
sedutor,
valente e desbravador,
fazia da graça o argumento,
com bom humor orquestrava o pedagógico constrangimento.
Hoje, nessa hora em que se comemora sua ausência nova,
vamos estreando sem sua presença.
Por sua causa, o reino do dito e do não dito saltitante eu habito
exibindo metáforas, me misturando às figuras de linguagem,
me lambuzando com os exageros das hipérboles,
subvertendo as opressões na parceria dos coletivos e, à noite,
me fartando de amores em companhia de alguns subjuntivos,
advérbios e presentes do indicativo.
Foi ele quem me apoiou em etimologias
e autorizou neologismos –
assim, como pão da tarde,
em plena luz do dia, sem que eu ainda soubesse que nessas praias
eu também me banharia.
Hoje comemora-se seu dia,
e minha memória vadia
passeia no tempo tentando bordar o advento deste vento que me inventaria.
Para minha alegria,
tendo à mão tal instrumento,
brotou-me um prazeroso compromisso:
não sei viver um vão momento
sem escrever sobre isso!
Seja um encontro, um aborrecimento,
um vermelho hibisco, um cisco, um beijo,
uma injustiça, um peixe no rio São Francisco…
Seja um queijo, um realejo, um feitiço,
tudo é razão de caderno,
tudo é diário e eterno,
tudo é imantado em palavras,
tudo é poesia, inventário dos dias.
Varinha mágica que toca a película dos fatos
e dá mais encantamentos ao luar.
Ai, como era lindo vê-lo falar.
Ouvi-lo driblar com o verbo,
a bola rolando e hipnotizando o outro jogador,
a teia das ideias se mimetiza e recomeça,
Garrincha das conversas,
suas escolhas, seu esmero,
príncipe do garboso bolero
que lhe saía da boca!
Rápido no gatilho do pensamento,
guardarei pra sempre o condimento gargalhante de sua coragem.
Quando a vontade de vir para o Rio de Janeiro,
viver de minha arte, virou em mim desespero,
se derramou junto com minha mãe
em amparo incondicional ao que podia até ser um erro,
mas confiou no cavalo da palavra no qual saí montada,
ainda escutando o tapa de incentivo dado por ele no lombo do bicho quando parti.
Passa o tempo.
Vive na inexistência do palpável,
no entanto está aqui.
Sangue e ancestralidade.
Escreve aqui.
Escreve isso.
É em mim.
Com os olhos pulsantes, garboso,
vibrante, ainda me iluminou, com seus pensamentos raios de sol
na insuspeitada despedida.
Depois de escutar aquela voz caymmica cantando:
“Rosa, morena, onde vais, morena Rosa…” pela sala, pedi:
Me diz uma coisa bonita, pai,
dessas que sempre pescaram minha atenção,
dessas que sempre germinaram em mim a raiz do que poderia me traduzir…
me diz pai, uma coisa bonita de se ouvir…
“Filha, a vida é que é a fortuna,
é esse o tesouro,
o ouro da variedade humana,
o ouro da pessoa é a pessoa.
Portanto, a vida é que é a fortuna,
outra não há.
E é fartura.
Devemos enfeitá-la.
Porém, se não pudermos adicionar nada a essa vida,
não vamos subtraí-la”.
Chorei.
Estava enfático, vigoroso.
Bramia.
Estava vivo.
Acentuava o néctar das intenções,
causava entendimento imediato,
navegava bem nos pequenos silêncios,
dominava pausas para garantir a região,
a página firme, o chão da fala, o urdimento.
Lindo.
Era nossa última vez.
A última vez em sua presença respirante.
Ninguém sabia que o seria.
Dias depois partiria, sem doença ou rasura,
para sua derradeira viagem no auge de seus 96 anos.
Um caderno humano muito bem escritinho, com quase cem anos,
um século inteiro de páginas.
Preservou no corpo, no rosto límpido,
a marca do olhar franco,
mesmo de olhos fechados.
Rondando tudo,
dona dignidade espargia o costumeiro perfume
que nos envolvia em sua presença.
Ó, meu griot,
orador das minhas orações principais,
Ó, homem de deliciosos parágrafos,
de caprichosos exemplos,
Mestre da filosofia de parábolas, de piadas,
de provérbios, de sacadas – tudo pra potencializar o bem viver,
agora, nessa hora nova sem você,
o que fazer?
agora, nessa hora nova sem você,
o que fazer?
Trago a nobreza de portar
como uma coroa que brilha sobre a cabeça do meu ser,
o nome da mãe dele, a quem vim suceder.
Veja bem o desenrolar,
acompanhe o acontecer:
Acabei de receber minha herança
e sobre ela minha alma
em paz se aquieta, se amansa.
Sim, herdeira de sua esperança,
desvendo o enigma ao escrever esta peça.
Compreendo a revelação,
o enigma óbvio do impecável homem das frases certas…
Está claro,
tá explicado,
simples assim.
Eis o recado do oráculo,
direto e reto feito uma seta:
Meu pai era poeta!
Elisa Lucinda é uma poeta, atriz e escritora, autora de 20 livros publicados, como Quem me leva para passear (Malê, 2021), entre outros. É também fundadora e presidente do Instituto Casa Poema, que desenvolve, por meio da poesia falada, projetos de cidadania para coletivos vulneráveis, como populações quilombolas, juventudes periféricas, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e população LGBTQIA+.
Aline Bispo é uma multiartista visual, ilustradora e colunista do portal de notícias Nós, Mulheres da Periferia. Em suas criações, ela investiga temáticas que cruzam a miscigenação brasileira, gênero, sincretismos religiosos e étnicos. Aline também é curadora do Instituto Ibirapitanga, no Rio de Janeiro (RJ), além de já ter exposto suas obras no Masp, Instituto Moreira Salles, Pinacoteca de São Paulo, Sesc São Paulo, Museu Afro Brasil e Itaú Cultural, entre outros espaços.
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