Som na CAIXA… na RUA!

27/07/2018

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são paulo, são paulo

Seletores (DJs), toasters (MCs), discos de vinil, caixas de som próprias e customizadas, toca-discos, potências, pré-amplificador, microfone, efeitos e periféricos. Esta é a definição básica, tipo ao pé da letra, de um sound system. Em outras palavras, se o termo constasse num dicionário qualquer, a definição muito provavelmente seria algo como: série de equipamentos e de profissionais com funções específicas responsáveis por tocar música jamaicana para o público tal como num baile ou festa. Só que, na realidade, em uma análise menos superficial e mais profunda, um sound system (sistema de som, em português) é muito mais do que isso. Culturalmente, o “sound”, esteja ele, por exemplo, num galpão fechado ou numa praça pública ao ar livre, simboliza uma estação de rádio que toca reggae e a evolução em fluxo dessa cena musical; uma estação de rádio ambulante que abarca temas como política, revolução, resistência à opressão da sociedade capitalista, orgulho negro, rastafarianismo, pan-africanismo, igualdade, amor, espiritualidade, liberdade, o cotidiano do gueto, hedonismo e a cultura do próprio baile.

O sound system é uma ferramenta totalmente DIWO (“do it with others” ou “faça com os outros”) pois estende o ethos do faça você mesmo do início da arte, do punk e do situacionismo para uma abordagem mais colaborativa.

O sound system é uma ferramenta totalmente DIWO (“do it with others” ou “faça com os outros”) pois estende o ethos do faça você mesmo do início da arte, do punk e do situacionismo para uma abordagem mais colaborativa.

Ilustração por Heloisa Etelvina

Pensando em questões sociais, o sound system significa paixão, fator de transformação social e emocional, estilo de vida e trabalho — formal ou informal — de um sem número de pessoas. É um movimento de pouco mais de 15 anos no Brasil que só faz crescer. E que cuja meca é São Paulo.

Resumindo a história da música da Jamaica em poucas palavras, todos os avanços musicais desta pequena ilha caribenha foram feitos graças à concorrência entre os donos de sound system (os “sound men”) em busca de sucessos que atraíssem mais público — e, consequentemente, mais dinheiro, fama e poder. Explicando de outra forma, a cultura da música jamaicana se confunde com a cultura do sound system e, portanto, em uma compreensão mais internacional, com a cultura do DJ. Se você pensar no DJ como um rock star, associação que se tornou corriqueira nos anos 90, isto já acontecia na Jamaica desde os anos 40 do século 20. Naquela época, os sounds surgiram como uma opção para quem queria ouvir um som e não tinha grana suficiente para frequentar os eventos de música ao vivo, geralmente realizados em hotéis de luxo na costa. Sound system é a voz do gueto, um local para ouvir música, se socializar com seus pares e se antenar sobre os assuntos do cotidiano.

Anos depois, outras culturas das Américas acabaram adotando o sistema de som como algo próprio, adicionando seu tempero, sua cultura, sua música local. Zeitgeist puro. Destaco os picós, na Colômbia, os sonidos, no México e, no Brasil, as aparelhagens em Belém do Pará, os paredões no Rio e, claro, as radiolas em São Luís — o parente mais próximo dos sistemas de som de Kingston e Londres. A verdade é que se o mundo é uma festa, o sistema de som é a cereja do bolo. Desta forma, os sounds acabaram transgredindo o universo do reggae e se tornando um ícone pop global, um objeto monolítico massivo, um totem cultuado como símbolo de toda uma coletividade.

Paredão do Dubversão no Parque D. Pedro II
Paredão do Dubversão no Parque D. Pedro II | Foto: Miguel de Castro

Um dos segredos do sucesso de Larry Levan, talvez o mais famoso DJ de disco music na Nova Iorque dos 70/80, era o sistema de som desenhado por Richard Long especialmente para o seu clube Paradise Garage. Se o mítico Berghain, de Berlim, é o clube de techno mais famoso do mundo, boa parte da culpa está no Funktion-One, sistema desenhado por Tony Andrews, técnico de som que nos anos 70 alugava PAs para o Pink Floyd. No festival catalão Sónar, um dos mais incensados no quesito “música exploratória”, um dos destaques da última edição, realizada entre os dias 16 e 18 de junho de 2018, foi o ‘Despacio’, um sound system idealizado pelo líder do LCD Soundsystem James Murphy e os belgas do 2manydjs: numa pista em formato oval, 8 caixas de som com 3 metros de altura cada, assinadas de forma exclusiva pela empresa de áudio de alta fidelidade McIntosh.

No campo da arte contemporânea, diversos artistas incorporaram o sound system como objeto e como mídia para os seus trabalhos, muitas vezes ressignificando seu propósito original. O britânico Mark Leckey, por exemplo, se tornou conhecido por suas esculturas em formato de sistema de som, peças imersivas que oferecem estímulos sonoros e visuais ao público. No Brasil, a artista Vivian Caccuri possui vários trabalhos que investigam as caixas de som. Na 32ª Bienal de São Paulo, após uma viagem de pesquisa à Gana, instalou um paredão de som para reverenciar os sons graves — as músicas tocavam uma vez por hora, tal como um sino de igreja.

Quando eu comecei a frequentar e participar ativamente da cena no Brasil, circa 2001/2002, só havia em São Paulo o Dubversão Sistema de Som e no Rio de Janeiro o Digitaldubs. Corta para 2018 e deve haver algo em torno de 50 e 70 sound systems em todo o Estado de São Paulo — um entrevistado chegou a mencionar (!) 180 deles. Existem bairros da Grande SP com 3 sistemas de som, algo inimaginável 10 anos atrás. Há sound systems de todos os tipos, não só em São Paulo, mas como em todo o país: os mais focados no “roots” (o “reggae de raiz”), termo menos associado à época em que a canção foi gravada e mais conectado com o tema das letras, outros especializados na fase inicial da música popular jamaicana, como o “ska” e o “rocksteady”. Há sistemas de som dedicados ao “dancehall” dos anos 80 (o chamado “rub a dub”), outros em “ragga”, que é um dancehall mais agressivo e por vezes mais eletrônico. Muitos tocam “steppers”, gênero também conhecido como “UK dub”, um reggae mais pesado com batida de bumbo em 4/4, que é uma pegada bastante associada à cena britânica. Naturalmente, vários sistemas de som acabam passeando por todos os estilos, sendo que um número cada vez maior de produções autorais feitas no Brasil começa a ser aceita por DJs locais em suas seleções.

Mas e aí? Como começou esta explosão da cena sound system em São Paulo? E por que? Quem são? Como vivem? Do que se alimentam?

É preciso dizer logo de cara. Este não é um texto sobre a cena de SP no sentido de analisar um a um todos os seus sistemas de som. Isto seria impossível num espaço tão pequeno. Na verdade, esta pesquisa até mesmo já existe. Dani “I-Pisces” Pimenta (35), seletora da equipe Feminine Hi-Fi, produtora cultural e pesquisadora da cultura de sistemas de som no Brasil, realizou um mapeamento dos sounds em todo o país. A pesquisa parou em 2017 por falta de tempo, mas, segundo a própria, irá voltar dentro de muito em breve. Meu recorte nestas próximas linhas reside então no fato de tentar entender este que é um fenômeno social e cultural de São Paulo. Já se vão aí quase 17 anos desde o surgimento do Dubversão e passado um modismo inicial reforçado por uma presença massiva na mídia, é 100% seguro afirmar: não há sinais de esgotamento na cena. Pelo contrário.

original style

Os sound systems de São Paulo estão completamente espalhados pela cidade, seus arredores e o interior do Estado. O marco zero do movimento é bem fácil de apontar, entretanto. Foi no final de 2001, mais precisamente no dia 02 de dezembro, que o Dubversão Sistema de Som fez seu primeiro baile. Essa noite histórica no Green Express, antigo pico da Avenida Rio Branco que recebia frequentemente diversas radiolas do Maranhão, contou com Yellow-P e Corpo Santo como seletores e como MCs, Funk Buia, Black Alien e Peter Muhammad. Importante mencionar que nesta época o reggae já era disseminado em São Paulo: já existiam DJs na cidade que incluíam em seus repertórios um espectro mais amplo do que se conhece como música jamaicana (isto é, para além de Bob Marley e afins). Mas não havia, contudo, uma noite inteira dedicada ao estilo.

Depois do Green Express, já no ano seguinte, o Dubversão começou a realizar dois movimentos paralelos que ajudaram a tornar a cultura sound system mais popular em São Paulo. E o resto é história. A primeira destas ações se deu numa residência semanal toda sexta-feira no Susi in Transe, clube hoje na São João, mas que antigamente funcionava no Largo do Arouche. A constância das festas e a novidade do “dub”, uma espécie de remix do reggae onde se destacam baixo, bateria, equalização incomum e efeitos sonoros como tape echo, analog phasing e spring reverb, trouxeram primeiro os moderninhos e logo em seguida a mídia. Fabio Murakami (37), mais conhecido como Yellow-P e co-fundador do Dubversão, contextualiza: “De 2002 até 2005, começando ali pelo Festival Dub Mamute no Sesc Pompeia, rolou um mini hype da parada, tá ligado? Rolou matéria na Época, na Veja, brochura do Hermano Vianna falando sobre dub na Folha. Tocamos no FILE por dois anos neste período… Todo esse auê de mídia não resultou em novas equipes ou sound systems. A gente brinca que quando os caras descobriram que dub no final das contas era reggae, só sobrou mesmo a galera da perifa. A galera moderninha deixou de ir no bagulho. Nunca deixou de ir, né, mas diminuiu muito… O curioso é que o bagulho só expandiu quando saiu da mídia; quando deixou de ser novidade na mídia.”

O outro co-fundador do Dubversão atende pelo nome de Miguel Don Salvatore (Miguel de Castro, 38). Ele relembra o início do coletivo: “Estava no ônibus, voltando da USP, lendo o TAZ do Hakim Bey (N.A, livro publicado originalmente em 1985 que saiu no Brasil pela Conrad, em 2001) e ele começa a descrever as festas como ‘zonas autônomas temporárias’. Daí eu tinha um brother, o Amadeus, e ele gostava muito de rádio, sempre falava de rádio. ‘Vamos fazer uma rádio na rua!’, ele dizia. Sound system pra mim é ter os meios de produção na mão: se eu tenho as caixas eu faço o som no lugar onde eu quiser, com mobilidade total. E foi justamente isso que me interessou na ocupação do espaço público. Eram os meios que a gente tinha pra ocupar e amplificar o que a gente gostava. Divulgar o que a gente quisesse.”

A questão da ocupação dos espaços públicos toca na segunda questão fundamental adotada pelo Dubversão no início de suas atividades — que nos primórdios se deu de forma bem amadora, “gambiarrística”. Continua Fabio: “Foi uma coisa natural. Fui morar com uns brothers em Perdizes e no final da minha rua tinha uma praça, a Airosa. Um deles era meio hippie, tinha uma garagem que era uma espécie de biblioteca comunitária para o pessoal que morava na rua. Foi essa cara, o Fevito, que botou pilha pra gente começar a fazer algo na praça. O Miguel era amigo desse cara também. A gente se juntava aos domingos, pegava eletricidade do vizinho, era um negócio bem caseiro mesmo. Quando passamos a fazer os eventos na rua em frente ao bar do Seu Chico, na Pompeia, foi mais ou menos no mesmo esquema. O Miguel trouxe caixas maiores, caixas de duas vias, o Magrão comprou um crossover… Nós tínhamos 3 graves e caixas mais comerciais. Só a partir de 2003/2004 é que montamos nossas caixas, a partir de um projeto antigo da JBL para cinema”.

Logo após a feitura destas primeiras caixas customizadas — as já lendárias “caixas pretas” -, o Dubversão, na época formado por Yellow P, Don Salvatore, Magrão, Massarock, Bigodón, Christopher Lover e Jimmy The Dancer, circulou por praticamente toda São Paulo: Monte Azul, Parque Trianon, Praça do Aprendiz, São Caetano, Santo André, MASP, Galeria Olido, diversas unidades do Sesc, Osasco, Santo Amaro, Casa das Caldeiras, Voith-Jaraguá e muitos outros.

para além do Dubversão: a cena começa a crescer

Até mais ou menos 2010, a chance de todo mundo envolvido com a cena citar o Dubversão como o primeiro contato ou influência beira a totalidade. As coisas começam a ficar interessantes mesmo, no sentido de uma atividade cultural mais sólida, espalhada pela cidade, quando outros sistemas de som começaram a pipocar.

Os primeiros a surgirem foram o Jurassic, o África Mãe do Leão, o Garage e o Quilombo Hi-Fi. De frequentadores assíduos, colando semana sim, semana sim, na residência do Dubversão no Hole Club (fase pós-Susi in Transe), à equipes de som, foi um pulo. Conversei com Marcelo Gregório (34), o Jah kNomoh, sobre o início do Quilombo: “Sou da época do Susi, ajudava o Fábio a carregar as caixas. Mas sentia uma falta disso na periferia, era algo que acontecia ‘da ponte pra lá’, queria algo que não fosse só em Perdizes e na Pompeia. Sentia falta de representatividade, inclusive a racial. Nós fomos os primeiros a colocar um sound composto por afrodescendentes na rua. Colocar som na rua, fazer festa com toda a complexidade de um sound system, inclusive com produções próprias, nós fomos os primeiros depois do Dubversão. Mas os meninos do Jurassic já colecionavam discos, assim como a gente. Porque o nome ‘Quilombo’ existe desde 2004, quando começamos a projetar o sound system. Contamos que nossa estreia data de 16 de outubro de 2007, nós contamos a partir daí, mas o Quilombo é um projeto que nasceu 3 anos antes.”

Com cerca de 1 ano de baile, o Quilombo, cujo QG é na Praça Zumbi dos Palmares, na Vila Nova Cachoeirinha, começou a circular por outros pontos da cidade, procurando parceiros, equipes em formação e pessoas em geral abertas a receber o reggae em suas comunidades. Realizaram edições no Capão, Voith, Osasco, Favela do Sapo e inúmeros outros lugares. “Fomos plantando sementes no caminho. Todos os lugares que fizemos festa agora tem equipe própria, sacou? A VP, Favela da Vila Prudente, é um exemplo, porque lá tem agora a ‘VP Posse’. Tipo, o filho da dona do bar que alugou pra gente fazer o sound gostou tanto que resolveu virar seletor. Foi um movimento longo, um trabalho de formiguinha, e pra gente, na verdade, isso ainda está só começando”, completa Marcelo.

Uma figura interessante da cena é Raoni Fuloni (32), também conhecido como Raunas. Seletor, produtor cultural e musical, um dos responsáveis pelo (atualmente parado) High Public Sound, e co-fundador do Boteco Prato do Dia, Raoni já realizou um sem número de eventos. O destaque absoluto é o Reunion of Dub, um festival gratuito de sound systems que reuniu, em 2013 e 2014, alguns dos principais representantes do Brasil, além de diversos convidados internacionais, e que chegou a contar, em sua segunda edição no Vale do Anhangabaú com um público de aproximadamente 20 mil pessoas. Sem financiamento institucional ou privado, contando apenas com a venda de adesivos e camisetas, o Reunion, peça importante na ampliação da cena paulista e nacional, chegou a ter três pistas com várias vertentes, inclusive desdobramentos mais eletrônicos do reggae, como o jungle e o dubstep. O Reunion of Dub sucedeu o BlackStar Inity, uma espécie de coletivos de sound systems, ativo de 2009 a 2012, formado por Quilombo Hi Fi, Garage Sound System, Africa Mãe do Leão, Zion Gate Sound System e Leggo Violence Posse que inclusive participou da programação oficial da Virada Cultural.

Jimmy The Dancer no evento Dubsessions do Sesc Pompeia | Foto: Miguel de Castro

Bati um papo com o Raoni, que me contou, segundo sua ótica, sobre os primeiros passos para a explosão da cena sound system em São Paulo “Acho que o boom mesmo começou em 2007/2008, quando começaram a surgir outras equipes que eram frequentadoras assíduas do Java, a festa semanal do Dubversão. A Lei Antifumo nas baladas e casas noturnas inaugurada mais ou menos nessa época quebrou forte o público das festas. No exato momento em que o Dubversão acabou dando um tempo de balada que outros sounds começaram a surgir com festas na rua. Bangarang, Só Pedrada Musical, todos esses blogs movimentavam a cena e quando faziam festa, o negócio bombava. O Jurassic veio com a festa You & Me on a Jamboree, associada ao blog de mesmo nome, e veio muito forte. Essa galera do oldies, de sons mais antigos (N.A ska, rocksteady, early reggae), como o Jurassic e o pessoal de Santos com o Reggae 420, era uma galera que não se preocupava muito com a infraestrutura. Eles iam lá e simplesmente faziam. Era uma estrutura mais vintage, mais precária. Porque no final das contas, o Java assustava um pouco as pessoas… O lance do porão, tudo muito grande, com muita estrutura e com muitas pessoas trabalhando, parecia emanar a pergunta ‘como é que vou conseguir fazer isso’? Daí veio também uma festa semanal, a Pressure Drop, com a crew do Stranjah, que rolava toda terça-feira, das 19 às 23, no CCPC, na Consolação. Era um happy hour semanal com umas 500, 600 pessoas ouvindo rub a dub e dancehall. Tinha um bar pra você fazer esquenta e a entrada custava 3 reais. Eles incentivaram todos os seletores, o pessoal que estava começando a tocar, inclusive, a participar. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Era um lugar de fácil acesso, barato, com um pouco mais de iluminação e a galera começou a interagir mais, porque no Java você não conversava, não dava pra ver nem ouvir ninguém.”

Com o aumento no número de sounds e sua consequente popularização em São Paulo, sua lógica e dinâmica completamente singular começou a ser aceita por um público que já consumia o reggae só que em um formato mais tradicional, o de banda/música ao vivo. No início houve um ligeiro estranhamento — primeiro pela questão da música mecânica em si, pelo fato de não haver muita coisa para ficar olhando. Segundo, pela característica de haver tantas interferências na manipulação sonora dos discos. Pra quem não está habituado, realmente chama a atenção o jeito em que uma equipe de som “performa” uma música. Não é uma discotecagem tradicional como se vê em toda balada; é absolutamente diferente. Em função da recepção entusiasmada do público, pode haver não só uma, como várias voltas ao início de uma música depois dela já ter iniciado. A mesma base musical (o chamado “riddim”) pode tocar por inúmeras vezes consecutivas em uma seleção, chamando a atenção justamente para suas linhas de baixo e melodias semelhantes. Pode não haver mixagem no sentido da sobreposição de duas faixas distintas, como, por exemplo, em um DJ set corriqueiro de techno ou house — as músicas tocam até o seu final, sendo que primeiramente é tocado o lado A, o reggae, e posteriormente o lado B, sua versão instrumental ou dub. Sendo que no caso deste último, a música ainda pode vir acompanhada de um MC cantando ao vivo. Sobre o estranhamento do conceito de sound system, Miguel conclui: “Falavam que o grave era muito forte e que achavam o som eletrônico demais. Diziam ‘Ah, isso não é reggae! É muito pesado!’ Mas, querendo ou não, com a popularização da internet e com os eventos regulares de sound system na cidade, começou a haver um entendimento de que o reggae é na verdade um som de estúdio; que faz sentido existir algo como um sistema de som e que existe um leque gigantesco de opções de gêneros dentro do guarda-chuva da música jamaicana.”

A chegada das mulheres na cena trouxe muitas mudanças fundamentais de paradigma. O primeiro sound system composto exclusivamente por mulheres no Brasil nasceu em São Carlos, no interior de São Paulo. Luciana Azouri (26), a Tuti e Indiopê Omin Oliveira (27), a Pê, já colecionavam discos de reggae e quando se conheceram em 2010, num churrasco de um amigo em comum, surgiu o desejo de tocarem juntas. Nascia aí as Sound Sisters.

Rapidamente, “as Irmãs” já estavam tocando todo final de semana, seja fazendo os warm ups para o Ganja Groove, primeiro SS de São Carlos, seja tocando em outras cidades do interior, como Franca e Ribeirão Preto, ou mesmo na Capital e em outros Estados. Em 2013, depois de uma bagagem acumulada, decidiram se transformar num sound system de facto e montar as caixas para se tornarem auto suficientes, não dependerem de convite dos outros e realizarem seus próprios eventos.

Em dois anos a ficha caiu: Tuii e Pê não tinham apenas um sound system. Contextualiza, Pê: “Depois de um tempo a, gente se ligou que era só a gente fazendo. ‘Pô, nunca vi uma mulher tocar, diziam nos bailes’. Daí que percebemos a noção da realidade”. Tuti interrompe: “Até então, estávamos fazendo algo pessoal, pra gente, algo que gostávamos muito, mas o real significado disso ainda não tínhamos percebido. Não sei como é na Capital, mas aqui no interior temos um papel de transformação muito forte. O sound system é um ‘murão de instrumento de voz’, você consegue transmitir sua energia, seus pensamentos, sua luta. A pessoa pode estar dançando só por causa do ritmo, e não em função da letra, mas eu sinto que é uma missão levar conhecimento porque a música reggae tem toda uma bagagem cultural. Eu sou branca e minha sister é negra e as histórias que estão sendo tocadas nos discos são sobre o povo dela. Eu estou no meio dessa história toda e eu sinto que o povo branco tem uma dívida histórica gigante. A minha forma de contribuir é de alguma maneira divulgar isso, estar envolvida com isso, respeitando e entendendo o meu lugar. Porque eu aprendo com a música. E levo isso para as pessoas, negras e brancas, para que elas se posicionem, entendam o seu lugar e se redimam.

Essas histórias não foram contadas na escola. Quem é Marcus Garvey, quem é Jah Rastafari? Não é só acender um baseado, é toda uma cultura. Muitas coisas que foram apagadas, o reggae traz de volta. O reggae é um instrumento de luta para você abrir a mente das pessoas, é uma reeducação. Percebemos que as pessoas quando começam a ouvir reggae, é toda uma brisa, elas se tornam pessoas melhores.”

Daí veio o Feminine Hi-Fi, que, tecnicamente não é um sound system por não contar com caixas próprias, geralmente amplificadas nas festas pela Ruído Rosa Aparelhagem (sound system formado por Raphaela Ah, Bianca Volpi, Andrea Lovesteady e Isabela Rabello). O que nasceu para ser uma festa comemorando o dia internacional da mulher em março de 2016, segundo sua co-fundadora Dani “I-Pisces” Pimenta, “saiu de controle, virou um projeto por si só. Tinha uma demanda reprimida. Porque a cena de sound system é 900 mil por cento masculina. O papel da mulher até então era o de ser a namorada do seletor, a mulher de não sei quem… Haviam muito poucas seletoras ativas, mais cantoras que seletoras, mas ainda assim muito pouca gente. E daí quando veio a Feminine o negócio explodiu, veio um turbilhão atrás e tivemos que lidar com tudo isso. Foi um negoção. Com a Feminine, percebemos uma mudança no mercado: mais minas se encorajaram a serem seletoras, mais minas se encorajaram a pegar no mic. E essas minas dão feedback pra gente, o lance realmente impulsionou as mulheres a começarem — e até mesmo a voltarem à cena, pois tinham desistido em algum momento por falta de confiança. Com o passar do tempo, o projeto foi mudando de atuação. Nesses dois anos percebemos que o nosso ramo de atuação é outro. Não é só festa: a gente faz oficina, exibe documentário, faz debate. Somos um projeto. A ideia é armar as minas, fazer com que elas se sintam confortáveis e confiantes e armadas de conhecimento.”

Formado por Dani I-Pisces, Lovesteady, Laylah e Lys Ventura, o Feminine Hi-Fi em 2 anos, recebeu, entre cantoras e seletoras, aproximadamente 100 mulheres. Uma das estratégias adotadas pela equipe foi a de contar com um plano de atuação bem aberto, aceitando convites para tocar em festivais mesmo que o line-up que não seja composto só por reggae. “A SIM — Semana Internacional de Música de São Paulo não é um lugar onde você encontra reggae, onde você encontra sound system, mas a gente procura estar nesses lugares justamente para criar essa expansão. Além da questão do empoderamento feminino, também queremos mostrar que o reggae é uma linguagem que não é só de festa de rua. Vemos hoje o Feminine com um corpo político e social da cena”, completa Dani.


boom!

Não existe um motivo único que explica o porquê do fenômeno da cultura sound system em São Paulo. De todas as possíveis interpretações, mesmo sabendo que são uma confluência de fatores, a que eu mais gosto é a mais óbvia de todas. E justamente por isso, talvez a mais verdadeira. Por que tem tanto sound system em São Paulo? Progressão geométrica.

Antes de começar a pesquisa para esse texto, tinha como certo que a Virada Cultural, aberta à cultura SS desde 2006, tinha fator decisivo. Nenhum dos meus entrevistados a citou de forma espontânea como ponto de virada — talvez porque o formato do evento já seja naturalmente algo indissociável da cultura sound system, que é algo que pensa na rua e que dialoga com a cidade. Sem contar que a ideia de espaço público em São Paulo é muito limitada. Então existe uma demanda forte por coisas que acontecem na rua.

Se antigamente os sounds eram a rádio do povo, com o avanço da internet rápida e barata, o acesso à músicas completamente desconhecidas se abriu para o infinito. Mas aí o sound system respondeu (e responde) com a questão da experiência coletiva e, por que não, auditiva. Se por um lado não há uma necessidade técnica de precisar sair de casa para ouvir uma vasta discoteca com raridades e novidades recém lançadas, por outro, é impossível reproduzir com headphones ou mesmo potentes falantes caseiros a experiência que é ouvir a mesma música num paredão de som de 40, 50 mil watts. Isso sem contar com a interação do público, a manipulação sonora do seletor e as intervenções vocais e poéticas dos MCs. A catarse de uma aglomeração pública, a dimensão ritualística é outra. “Você pode ver uma coisa, mano… Todo filme futurista, apocalíptico, distópico, você pode ter certeza que vai aparecer uma festa. Nestes filmes, os únicos lugares ritualísticos compartilhados, digamos assim, são numa festa. E em São Paulo isso fica bem evidente mesmo, essa ideia de estar num lugar junto, um pico que te faça sentir seguro”, filosofa Miguel Don Salvatore.

Quilombo Hi Fi na Cachoeirinha, Zona Norte | Foto: Miguel de Castro

Um fator aparentemente curioso e mais uma peça para entender o “x da questão”, está na vinda de seletores de grandes sound systems internacionais, verdadeiras referências para quem acompanha a cena de perto. Curioso pelo seguinte fato: nomes importantes como Mad Professor, Zion Train, Abashanti-I, King Shiloh, Mungos Hi-Fi e Vibronics, só para citar alguns, ao invés de virem tocar em São Paulo com suas preciosidades em vinil, trouxeram suas produções autorais em outros formatos, como DAT, laptop, CD, Serato ou até mesmo Ipad. No começo, segundo Raoni Fulone, isso gerou polêmica: “Eu explicava que eles podiam tocar do jeito que quisessem, pois só estavam tocando produções próprias, mas a galera ficava criticando, não entendiam mesmo…”

Quem não tinha vinil, não se sentia encaixado. Foi justamente a presença destas sumidades no assunto tocando sem a mídia, digamos, oficial do rolê, que fez com que outros formatos fossem aceitos. Isto explodiu principalmente nos bailes periféricos. “Com a proliferação dos sound systems de gueto, não tem mais esse lance de vinil. É computador, cabo P2 e é isso”, conclui Raoni. Hoje em dia, computador ou CDJ é bem visto no baile, porque demonstra que o seletor vai dedicar parte do seu repertório para a produção nacional. Marcelo Jah kNomoh é um dos que dedica boa parte da sua seleção para músicas Made in Brazil. “20% do meu som hoje é composto por minhas próprias produções, 20% da produção de outros produtores brasileiros, e o resto são de coisas da Jamaica.”

Num âmbito mais institucional e ligado à esfera governamental, a política pública da prefeitura Haddad, o CCJ (Centro Cultural da Juventude), o SP na Rua (evento ligado ao Mês da Cultura Independente), a Virada Cultural (desculpa, entrevistados), a Secretaria Municipal de Cultura e uma maior abertura das unidades Sesc, que chegaram a atuar bastante no início do movimento e que voltaram com força total recentemente (aliás, o título deste texto é uma brincadeira com a exposição Jamaica, Jamaica!, atualmente em exibição no Sesc 24 de Maio), tiveram papel fundamental no boom da cena. De acordo com Miguel: “não podemos também esquecer da importância da era Lula ou da era PT. Independente da sua posição política, é inegável o fato de que o governo PT aumentou o nível de consumo, o poder aquisitivo aumentou. Isso reflete diretamente na cultura. O pessoal começa a ter dinheiro pra comprar caixa, potência, toca-discos…”

Em relação à SMC de São Paulo, vários sistemas de som e iniciativas ligadas à música jamaicana foram contemplados em um edital de música específico para o reggae. Só no ano passado, 500 mil reais foram distribuídos para projetos que pretendiam “fortalecer e difundir a produção artística de reggae; “garantir melhor acesso da população à cultura do reggae”; e “fortalecer ações que tenham o compromisso de promover a diversidade dos bens culturais.” Como resultado, artistas como Jeff Botto foram para a Jamaica gravar com artistas locais e sound systems conseguiram rodar pela cidade.

Toda esta movimentação em torno das equipes e dos sistemas trouxe profissionais novos para a cena. Todo um ecossistema, ainda em constante construção e mutação, é preciso salientar, foi formado. “Interessante que outras cadeias foram surgindo. Tem o caso do HF Sistema de Som. São eles que carregam e montam as caixas do Dubversão. Ao mesmo tempo, eles tem uma festa, uma residência semanal há 4 anos no Morfeus, e tem as próprias caixas, o próprio sistema de som. Aí tem o pessoal do Canela Preta Posse, que é ligado ao JZ Sound System Roots Phavella, um sound de Mauá, no ABC Paulista. O Canela Preta carrega as caixas, faz a ‘setagem’ do som, eles cuidam na verdade de toda a produção que envolve o JZ. É legal, por exemplo, ver a Rafinha do Ruído Rosa, que é formada em elétrica e que faz toda a parada funcionar. Tem agora o Premier King, um cara que é cineasta e que faz videoclipes pras equipes. Outra coisa que é interessante é ver mais gente envolvida que não necessariamente seletores. Tipo marceneiros aceitando projetos para a construção de caixas, gente de elétrica, pessoal emprestando potência para outros, gente que constrói pré amp e efeitos como sirene.”

angústias, problemas e o futuro da cena

Mesmo que haja um consenso que a cena paulista é das maiores do mundo, alguns articuladores não se impressionam tanto. Segundo Fabio “Yellow P” Murakami: “Na Europa, os caras acham que São Paulo é maior do que realmente é, tá ligado? Tipo a mesma coisa que a gente acha deles, que são gigantes… Por exemplo, você vai a Londres e acha que vai encontrar flyer de todos os eventos de sound em qualquer canto. E que todo mundo conhece sound system. Você diz que tá indo para um sound system em Londres e muita gente não tem a menor ideia do que isso significa.” Miguel completa: “Não confunda o que está acontecendo com uma cena grande, que tá bombando. Porque é muito, muito difícil ganhar dinheiro trabalhando com sistema de som. Tem gente que trabalha em banco, em publicidade, eu mesmo faço outras coisas, o Fabinho começou a fazer pão. A cena é grande no sentido do entendimento de que é uma cultura que fala com muita gente. Mas já faz parte da história do reggae que ele nunca vira o mainstream. Isso tem a ver com a estética, talvez com a sonoridade, com o tipo de público que frequenta os bailes.”

Mesmo que o apoio institucional não seja condição sine qua non para a proliferação dos sound systems em São Paulo, sua atuação se tornou estratégica para muitas equipes. É outro dado curioso: se a rua num primeiro momento acabou sendo primordial para a expansão da cena, ao mesmo tempo se tornou um problema sério. Marcelo explica melhor: “A única forma da gente conseguir subsidiar e bancar o sistema de som é o fato da gente fazer evento com dinheiro público. A gente ganha dinheiro da Prefeitura e a gente vai atrás de tocar em Sesc, a gente vai atrás de movimentos tipo ‘Estéticas da Periferia’ pra gente poder ganhar uma moeda. Em cada evento desses a gente ganha 5, 6 pau. Se a gente não fizer isso a gente fica parado.”

A falta de profissionalismo na cena foi um tema batido por diversos entrevistados. Marcelo concorda que ainda é difícil viver de reggae. “O reggae ainda não tem um mercado sólido, não tem público consumidor. As pessoas participam, mas não são consumidoras. Aqui em São Paulo, promover eventos gratuitos se tornou parte da cultura. A galera acha que sound system é associado a gratuidade. Porque você tá ligado no discurso, né? O carinha vai lá e diz que vai ‘fazer por amor’, que não liga pro dinheiro. No final das contas, são esses os caras que tão botando a gente na forca. O reggae podia estar dando um sustento melhor pra gente que é mais velho, que tem filho pra criar, mas não, tem esses pessoas que tem o lance como hobbie. O ‘cara do hobbie’, manja? Isso foi uma responsabilidade dos processos. A gente criou isso na cabeça das pessoas, plantamos essa sementinha do mal e estamos colhendo isso. A galera hoje não tem a compreensão de que ao pagar para um evento acontecer ele tá fortalecendo muito mais a cultura do que ir num evento de graça na rua, tá ligado?”

Dani Pimenta assina embaixo: “Falta profissionalismo na cena, é um ponto que a gente bate. Sim, a gente faz por amor, faz porque gosta, e é justamente por fazer por amor, por gostar tanto disso, que a gente precisa fazer bem feito para tornar a coisa forte e consistente. E daí o pessoal reclama ‘ah, vai tocar no festival que não é de reggae, vai ganhar dinheiro, sua mercenária’. O pessoa precisa entender o que é um contrato de Sesc, um contrato de prefeitura, se profissionalizar mesmo, fazer as coisas da melhor maneira possível, mexer no equipamento direito. Cara, você precisa colocar um preço no seu trabalho. É pra mim a coisa que falta na cena. Chega da galera achar que você tem que fazer favor porque é brother.”

Em relação ao futuro da cena, talvez, se houvesse uma maior união entre as bandas e os sistemas de som o mercado fosse mais favorável a este último. Não há também muita preocupação em sair dos formatos tradicionais e criar algo novo. Sobre este assunto, Raoni pondera: “A galera geralmente não tem expectativa que a música seja exportada e que o artista ou a artista viajem para fora. Falta ambição. Ao mesmo tempo, parece que ainda existe uma barreira em torno da cidade de SP que as pessoas ainda não tentam ultrapassar. Os crews ainda estão muito fechados, como se a cidade de SP fosse um país. Aqui são muitas cenas dentro da mesma cena. Tem gente que tá super de boa tocando no seu gueto pra 500 pessoas. Se fosse um campeonato a gente teria ‘Série A, B, C, D’… Provavelmente essa semana tá surgindo um novo soundsystem em São Paulo que a gente não sabe e outro morrendo. Querendo ou não estamos muito fechados na gente. Estamos fechados como o rap estava um tempo atrás e que hoje conseguiu se expandir. Aqui ainda estamos batendo cabeça porque como a gente produz pouco, porque a gente consome muito de fora e a gente não tem uma cara própria ainda no nosso reggae.”

Termino este breve texto — que bem poderia ser um livro, tamanho é o riquíssimo material existente -, com um depoimento do Miguel, que além de “salvador”, se provou um verdadeiro “filósofo” da cena. “Começar a melhorar, é o que? Caixas maiores, mais quantidade de flyer, um lugar que pague a gente melhor? Mas acho que não é isso. Pouco mais de 15 anos depois dá pra perceber que é uma cultura possível, um estilo de vida possível. Repetição é algo importante também. A inovação vem porque as coisas se repetem. Você pega a ciência e o que ela faz? Cita. Se você não citar, você nem consegue defender sua tese de doutorado. O que é a construção de consciência? É citar. É repetir aquilo milhões de vezes até que… ‘Eureka’! Pra mim não tem que melhorar nada, tem que ter mais gente fazendo e bem. Só isso.”

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