O suingue no sangue da cantora e compositora Fernanda Abreu

28/08/2024

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Pioneira do pop dançante, Fernanda Abreu finca sua identidade na música brasileira em uma carreira de mais de quatro décadas 

Por Roberta Della Noce 

Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra

No ano em que a banda carioca Blitz se desfez (1986), Fernanda Abreu, até então conhecida como Fernandinha da Blitz, recusou o convite da gravadora para lançar um disco solo. O motivo? Precisava de um tempo para apresentar um repertório com a sua identidade e que marcasse a nova fase musical. Contrariando o que se esperava dela, uma jovem artista que iniciou a carreira como backing vocal de um grupo de rock, Fernanda voltou à gravadora quatro anos depois com um álbum pop fundamentado na disco music e turbinado de samples. Isso numa época em que o rock seguia em alta, e as gravadoras flertavam com a lambada e duplas sertanejas.  

Pouco antes de ser lançado, o disco de estreia causou um impasse jurídico na gravadora: vinha recheado de trechos de fonogramas de outros artistas. Madonna, Michael Jackson (1958-2009), Prince (1958-2016), Parliament Funkadelic, Caetano Veloso. “Fui salpicando minhas referências nas faixas. Naquele momento, samplear era uma novidade, sem legislação ainda, tinha um precedente gigante”, conta Fernanda, que convenceu o chefe do departamento jurídico, vascaíno fanático como ela, a lançar SLA Radical Dance Disco Club, uma abreviação de seu sobrenome (Sampaio de Lacerda Abreu), marcando a transição da Fernandinha da Blitz para a Fernanda Abreu.  

Além da questão jurídica contornada, havia outro impasse. Os executivos da gravadora não entendiam aquela sonoridade, a “música de pista”. Nem eles, nem o mercado brasileiro. Porém, a jovem de 20 e poucos anos, cheia de argumentos, contrapôs: “Não tem mercado (para o pop), mas vamos inaugurar!”. Lançado no inverno de 1990, o disco definiu sua carreira para sempre e a projetou no mercado musical. Três décadas depois, as letras e arranjos seguem atuais. Hits como “A Noite” e “Speed Racer” tocam nas pistas de dança mais diversas. Depois de SLA 1, vieram mais seis álbuns, muito diferentes entre si, mas todos carregados da assinatura inconfundível da “garota carioca, suingue sangue bom”.  

Fernanda coleciona no currículo de 42 anos de carreira, parceiros de longa data, como Herbert Vianna e Fausto Fawcett e o pai da cultura hip-hop, Afrika Bambaataa. Com êxito, ela performa em vários papeis: intérprete, compositora, bailarina, produtora, diretora, empresária e pesquisadora musical. Concilia a vida de artista com a de mãe de Sofia e Alice, e o casamento com o baterista, produtor e arranjador paulista Tuto Ferraz. Neste mês, quando celebra 63 anos, Fernanda Abreu conta à Revista E episódios marcantes de uma trajetória de mais de quatro décadas dedicadas à música, e fala sobre parcerias e novos projetos. 

bailarina 

A música entrou em mim pela veia da dança. Comecei aos nove anos: ficava imitando Michael Jackson, pequenininho, no The Jackson 5. Também me lembro do Toni Tornado nos festivais de música. O balé clássico me ajudou muito na vida. Aprendi não só os passos, a movimentação e o controle corporal, mas muito sobre valores como determinação, foco, disciplina e uma certa humildade diante da arte porque, no balé, você nunca está pronta. Este ensinamento foi muito importante para minha carreira solo, para não perder o foco nunca.  

raízes 

Para criar o primeiro álbum, me dediquei a entender que tipo de música eu queria fazer, que repertório queria compor. Como eu fui criada em roda de samba – meus pais faziam parte de um grupo chamado A Patota –, tive a sorte de ter em casa um repertório extenso de música brasileira. Eu e meu irmão, Felipe Abreu, ouvimos muito MPB, bossa nova, jazz, os baianos, os mineiros. Quando fui para a carreira solo, eu queria uma assinatura autoral. Fui buscar na disco music, que eu adorava, no rap, no samba, no funk americano, no funk carioca que eu tinha acabado de conhecer com o DJ Malboro. Fui buscar minhas raízes e referências para criar minha identidade.  

funk 

Eu tenho uma conexão com o rock, samba, hip-hop e com o funk porque, realmente, essa é a minha formação. Existe a Fernanda, musicalmente, antes e depois do meu primeiro baile funk, em 1989. Por meio do Herbert Vianna, eu conheci seu irmão, o antropólogo Hermano Vianna. Ele tinha acabado de escrever um livro chamado O mundo funk carioca (1988). Ele me levou ao Baile do Mourisco, que era no asfalto, em Botafogo, e quem estava tocando era o DJ Malboro. Eu fiquei muito impressionada, nunca tinha visto um sound system daquele tamanho, com aquele grave, e três mil pessoas dançando. Pensei: “Você é uma carioca com 20 e poucos anos e não sabia disso?”. Conheci o Malboro depois do baile. No dia seguinte, ele estava no estúdio comigo. Colocou uma batida e fomos criando uma letra em conjunto, que é o “Melô do Radical”. Naquela época, era tudo “melô”, depois que vieram os raps. Aquela estética musical entrou para sempre nas minhas músicas. Eu acompanhei essa trajetória de 40 anos de funk, começando pelo funk raiz, passando pelo sensual, entrando no funk das meninas, o funk melody, até o momento político em que os bailes no asfalto foram proibidos no Rio. O funk sempre foi marginalizado e criminalizado por conta do racismo estrutural. Não é pela letra, nem pela música, é porque ele é feito por gente pobre, preta e favelada. 

parcerias 

Carlinhos Brown, Lenine, Herbert Vianna, Marcelo D2, Ivo Meirelles, Abujamra, Black Alien, Nação Zumbi. Tenho facilidade de trabalhar com outros produtores, músicos, compositores, arranjadores e, ainda assim, o disco ficar com a minha cara. No final das contas, quem está dirigindo musicalmente sou eu. O meu disco Raio-X, de 1997, é isso: cheio de parceiros. A minha parceria com Afrika Bambaataa foi algo inusitado e sensacional. Me ligaram dizendo que ele estava no meu estúdio. Quando cheguei, pude contar que a música “Planet Rock” foi a pedra fundamental do funk carioca, ela foi a base, durante três ou quatro anos, de todas as músicas de funk produzidas no Rio de Janeiro. Na gravação de “Tambor”, ele aprendeu umas palavras em português, soltamos a base e ele começou a fazer aquelas coisas maravilhosas que faz. Bambaataa gostou tanto do resultado a ponto de vir para São Paulo fazer um show comigo. Depois, fomos ao Rio, e ali ele entendeu como era uma figura importante para o funk carioca. 

Adriana Vichi

ESTOU COMPLETANDO 63 ANOS E TENHO CERTEZA DE QUE, ATÉ O DIA DA MINHA MORTE, VOU APRENDER TODOS OS DIAS

A artista no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, onde apresentou, em maio, um repertório de sucessos, celebrando 42 anos de carreira. Foto: Adriana Vichi

singularidade 

Nunca estou exatamente na onda, na tendência. Quando o Da Lata (1995) ficou pronto, tivemos uma reunião com o presidente da gravadora que gostou do disco, mas disse que estava fora do que estava acontecendo no Brasil. O Lulu Santos tinha lançado Assim caminha a humanidade (1994), uma referência à disco music, algo que eu tinha feito uns anos antes. Aí, eu cheguei com um disco que vai mais fundo no sambafunk. Só que a indústria fonográfica acha que é bom estar onde é seguro, e não um passo a frente. Enquanto eu acho que, se você segue a fórmula, você está um passo atrás. Hoje, se eu tivesse de fazer uma música pop, eu não faria. No meu futuro disco, eu uso alguns elementos de gêneros musicais como o trap e o funk, mas de uma forma diferente.  

posicionamento 

Na época da Blitz, a maior parte das bandas era composta por homens. Tinha eu, Paula Toller, Marina Lima, Virginie, da banda Metrô, e mais três ou quatro. O meu posicionamento como mulher dentro da indústria fonográfica sempre foi muito firme. Por intuição, e até por experimentação, comecei a perceber que se eu não fosse firme nas minhas propostas, talvez não conseguisse fazer o trabalho que queria. Eram muitos homens me cercando no sentido de criação, mas também de pressão da indústria fonográfica, das TVs, das rádios, da imprensa. Nunca tive um episódio de assédio em que me senti machucada. Quando uma situação beirava o assédio, eu simplesmente a atropelava. Eu arcava com minhas decisões, e muitas vezes repensava se estava fazendo a coisa certa, mas acredito que, na carreira e na vida, nos guiamos um pouco pela intuição. Hoje escuto meus discos e tenho muito orgulho de todos. 

aprendizados 

Estou completando 63 anos e tenho certeza de que, até o dia da minha morte, vou aprender todos os dias. Na época da minha avó, diziam que os jovens tinham de aprender com os idosos e que eles eram grandes sábios. Existem, sim, pessoas que, por terem vivido mais, têm uma bagagem de conhecimento e de sensibilidade muito forte, mas que continuarão aprendendo. Como eu, que aprendo diariamente com minhas duas filhas. Essa abertura para o aprendizado é fundamental.  

futuro 

Quero fazer um álbum inédito, no qual já comecei a trabalhar e lançar um disco de samba porque esse gênero faz parte da minha infância. Gostaria de trazer isso para o meu legado. Quero também fazer um álbum de participações com outras mulheres, chamado Garotas sangue bom. E tenho pensado em fazer um show do meu primeiro disco. Ele é mais trabalhoso porque precisa resamplear e reprogramar tudo, mas tenho fãs que me pedem. Tenho todos esses projetos e, ao mesmo tempo, o meu dia a dia é muito produtivo. Shows, projetos paralelos, participações em shows de outros artistas, turnês fora do Brasil. Hoje sou a minha empresária. Tenho uma equipe grande, que cuida da minha gravadora, da minha editora e, da área de comunicação, mas ainda assim é muito trabalho. Eu adoro essa vida, não a trocaria por nada.   

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com Fernanda Abreu, gravada em julho de 2024, no Sesc Pinheiros.

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