*Por Rachel Sciré
A batucada na beira do campo, durante as peladas de fim de semana. A roda de pagode formada em meio ao churrasco, no fundo de quintal. Os bailinhos na sala ou na garagem, a partir de coleções particulares de discos e DJs locais. As caixas de som nas ruas e vielas, em festas que mobilizam a comunidade. Esses são alguns cenários comuns nos bairros espalhados pela cidade de São Paulo, especialmente nas periferias. De maneira informal ou profissional, os ritmos e as musicalidades negras sempre estiveram presentes e compuseram a trilha sonora dos momentos de lazer, em um processo que reflete tanto a nossa cultura quanto o desenvolvimento urbano. Em maio, algumas programações do Sesc Vila Mariana trazem essa discussão à tona, por meio do samba e do samba-rock.
Sabemos que a geografia da cidade é marcada não só por suas sonoridades características, mas também por desigualdades. No início do século XX, a população negra foi desalojada das regiões mais próximas ao centro da cidade de São Paulo, diante de políticas que visavam o “desenvolvimento urbano” e privilegiavam a especulação imobiliária. A expansão urbana de São Paulo, dos anos 1940 a 1970, se deu a partir do “padrão periférico de crescimento”. Como parte desse processo, que o sociólogo Tadeu Kaçula chamou de “higienização étnica”, um dos principais destinos da população negra foi a Zona Norte, com destaque para a região da Casa Verde, estudada por ele no livro Casa Verde – Uma Pequena África Paulistana (2020).
A ideia de “Pequena África”, aproveitada por Kaçula, remete à uma expressão utilizada pelo compositor, cantor e pintor Heitor dos Prazeres (1898-1966), para se referir à região antiga da zona portuária no Rio de Janeiro, que compreendia bairros como Gamboa, Saúde, Santo Cristo, os Morros da Providência, do Pinto e da Conceição e a Praça Mauá. Ocupada por uma população majoritariamente negra (de africanos e seus descendentes brasileiros), o local presenciou a existência de nomes como os músicos Pixinguinha, Sinhô, Donga e João da Baiana, matriarcas negras, como Tia Ciata, e lideranças religiosas, como o babalorixá João Alabá. O termo “Pequena África” se popularizou a partir do livro de Roberto Moura, Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro (1983), que discute a formação do samba urbano carioca.
Assim, a pesquisa de Kaçula, nascido e criado na Casa Verde, chama a atenção para a presença negra na Zona Norte de São Paulo, com histórias, personagens e tradições que extrapolam os limites locais. Habitaram ali, por exemplo, pessoas como o campeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva, o artilheiro Serginho Chulapa, os sambistas Seu Carlão do Peruche e Hélio Bagunça, os compositores Ideval e Zelão, maiores campeões de samba de enredo do carnaval paulistano. Aliás, vale ressaltar que a Zona Norte é a região que concentra o maior número de escolas de samba da capital.
Se historicamente houve um projeto de apagamento dos territórios negros na cidade e de todas as contribuições dessa população, na cidade e em nossa cultura, por outro lado, as comunidades sempre desempenharam um papel de resistência, por meio da manutenção de tradições étnico-culturais. Um exemplo contemporâneo é o Samba do Cruz, que surgiu em 2011, no clube Esportivo Cruz da Esperança, na Casa Verde. É neste local que Fábio Henrique Januario e seus amigos se encontravam para jogar futebol, fazer churrasco e confraternizar. “Durante as nossas resenhas, surgiu a ideia de criar uma roda de samba. O intuito era trazer entretenimento para a comunidade”, conta Fábio, que foi um dos fundadores do Samba do Cruz.
Essas iniciativas são importantes não só para a manutenção da memória dos bairros e de seus espaços tradicionais, mas para a continuidade de práticas comunitárias, da preservação dos rituais de uma roda de samba e das relações com a religiosidade afro-brasileira. “Fomos reunindo cada sambista do bairro para integrar o grupo”, lembra Fábio, “como somos devotos de São Jorge, colocamos uma imagem sobre a mesa, no centro da roda”.
Hoje, a roda do Samba do Cruz é formada por Rodrigo (cavaco), Emerson (pandeiro), Rodnei (percussão geral), Éder (tantan), Márcio (violão), Luiz (banjo) e Donga (banjo e tantan). O repertório reúne composições de nomes como Arlindo Cruz, Ivone Lara, Monarco, Almir Guineto, Claudinho de Oliveira, Carica, Prateado, além de algumas criações autorais. O samba é realizado aos sábados, com entrada gratuita, mas quem quiser curtir o clima da roda também vai ter uma oportunidade no Sesc Vila Mariana, no sábado (20/5), às 16h. Será a primeira vez do grupo no Sesc: “É muito gratificante ser reconhecido fora da nossa comunidade, não tínhamos ideia da proporção que a nossa roda de samba alcançaria”, comenta Fábio.
A apresentação do Samba da Cruz acontecerá na Praça de Eventos do Sesc Vila Mariana, também é gratuita, e dará sequência ao bate-papo “Samba Território Negro — Relações raciais no samba contemporâneo”. A conversa será com o radialista Moisés da Rocha, a pedagoga Maria Helena Embaixatriz, Embaixadora do Samba de São Paulo, Cidadã Samba 2004, Primeira Dama e fundadora da Velha Guarda do Rosas de Ouro, e também do sambista e sociólogo Tadeu Kaçula. A mediação será feita pela jornalista e pesquisadora Claudia Alexandre. O objetivo é debater o tema das relações raciais no samba contemporâneo, explorando as formas como o samba e suas comunidades construíram territórios negros, seja nos meandros da urbanidade em disputa, seja no campo simbólico.
No último fim de semana do mês, a cena será dedicada ao samba-rock, na segunda edição do projeto SP Território Black, que procura traçar um breve panorama da música negra na cidade de São Paulo, desde os bailes black da década de 70 até o hip hop nos dias atuais, passando pelas apresentações de break na São Bento até as batalhas de scratches entre DJs. O Sesc Vila Mariana receberá shows, bate-papos temáticos e oficinas, com artistas da velha guarda e representantes atuais, para que o público possa vivenciar e valorizar a cultura black. Veja as programações a seguir e participe!
“SP Território Black”
Bate papo: Samba Território Negro
Relações raciais no samba contemporâneo
Com Moisés da Rocha, Maria Helena Embaixatriz e Tadeu Kaçula. Mediação de Claudia Alexandre
Sábado (20/5), das 15h às 16h30
Grátis, na Praça de Eventos
Show: Samba do Cruz
Sábado (20/5), às 16h30
Grátis, na Praça de Eventos
Curso: Todas Podem Mixar com DJ Miria Alves
De 23/5 a 26/5, terça a sexta, das 19h às 21h
R$ 10 (credencial plena), R$ 15 (meia) e R$ 30. Inscrições aqui.
Show: Dexter
26/5 (sexta), às 21h
Ingressos de R$12 a R$40, disponíveis em sescsp.org.br/vilamariana ou nas bilheterias da Rede Sesc.
DJ set com DJ K-Mina
De 26/5 a 28/5, sexta e sábado, das 20h às 21h; domingo, das 17h às 18h.
Grátis, no foyer do Teatro Antunes Filho
Aula aberta de Danças Urbanas: Hip Hop, Popping, Housing e Afro Beat, com Mark Van Loo e Cia de dança Bombelêla
26/5 (sábado), das 19h às 20h30
Grátis, na Praça de Eventos
DJ set com DJ Tony Hits
27/5, sábado, das 18h às 19h
Grátis, na Praça de Eventos
Bate-papo: “Black Talk: Produção Cultural e Musical Negra em Pauta“, com Sandra Campos, Nathalia Grilo e Denis Oliveira. Mediação de Ciça Pereira.
27/5, sábado, das 19h às 20h
Grátis, na Praça de Eventos
Show: Uli, Tereza Gama, João Parahyba, Grazzi Brasil e DJ Erick Jay, com participação de Walmir Borges (27/5) e Geovana (28/5).
Sábado (27/5), às 21h, domingo (28/5), às 18h
Grátis, no Teatro Antunes Filho. Retirada online de ingressos a partir de 27/5, às 12h, e retirada presencial nas bilheterias da rede Sesc a partir das 17h
Baile de samba rock, com prof. Moskito e DJ Tony Hits
Domingo (28/5), das 15h às 17h
Grátis, na Praça de Eventos
*Rachel Sciré é editora web do Sesc Vila Mariana, jornalista e mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com dissertação de mestrado pesquisou as figuras dos malandros nos sambas de Germano Mathias e dos bandidos nos raps do Racionais MC’s.
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