Este conteúdo faz parte do projeto Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro, ação do Sesc São Paulo que faz alusão aos marcos 13 de maio e 20 de novembro e busca o fortalecimento e o reconhecimento das lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro. Conheça a programação aqui.
Por Elisa Lucinda*
A abolição da escravidão no dia 13 de maio se deu graças à força dos quilombos e à (re) existência negra, caso contrário, não teríamos nos desacorrentado, e é flagrante a falta que os fundamentos dos povos originários, negros e indígenas fazem na gestão do mundo.
A civilização regada ao egoísmo e a um capitalismo predador caminha pra muito longe das etnias indígenas, da ancestralidade negra, do ubuntu. Chega! Sou remanescente de Palmares, o mundo que não respeita a natureza está fadado ao fracasso. Toda a filosofia ocidental que estudamos, mesmo quando se disse universal, não o era. Faltou África e pajelança! O Brasil é analfabeto de si, não estudou seus orixás, saber tão necessário, pois, filho de Oxóssi não desmata, filha de Yemanjá não polui o mar, filha de Oxum não inviabiliza rios, nem apodrece lagoas. O saber ancestral negro africano faz falta nas escolas. Assim como o fundamento indígena sabe ler montanhas e chuvas, nós brasileiros deveríamos ter vivido até aqui com tais desenvolvimentos.
Por isso, nos conclamo: coloquemos nossos saberes na roda cotidiana sem escondê-los. Ousando. Vencendo a ignorância e celebrando a existência.
Afinal, ignorância com os conteúdos culturais que nos compõem na prática é assim, por exemplo:
Fui na feira e no fim de compras feitas apressadamente, pedi a conta: cento e trinta reais, ele me disse sorridente. Mas eu estava fazendo a conta de cabeça, não podia ter dado aquele preço. Pedi que ele discriminasse os itens. Senti seu leve surpreender. Afinal, minha pressa não anunciava tempo para tal. E começou a pré desculpar-se: “Olha, do jeito que minha mulher encheu minha cabeça de manhã, é capaz de eu até ter errado essa conta, e fazia nervosamente a operação no papel sobre a prancheta: É, é cento e vinte, e eu ia te cobrando dez reais a mais. É boa em matemática, hein?
Quanto que deu mesmo? Perguntei outra vez. Cento e vinte, ele repetiu. Estava ali queimando a segunda chance de ser honesto comigo. Eu sei porque eu estava dando a chance. Olhei profundamente em seus olhos, e oferecendo o cartão, eu disse:
– O senhor pode cobrar centro e trinta.
– Mas é cento e vinte, já reconheci o meu erro.
– Eu vou pagar cento e trinta. Eu sei quanto que deu, você também sabe, mas eu vou pagar o primeiro preço que você me cobrou, e a diferença você resolve com Xangô.
O homem tremeu.
Que isso? Não vamos brigar por causa disso.
– Mas eu não estou brigando com o você, eu vou pagar o que o você me cobrou e o resto você resolve com Xangô.
– Não, não precisa ser assim, quanto você acha que foi?
– Na minha conta de cabeça deu setenta e seis.
– Então tá bom, eu vou cobrar setenta e seis para a gente não brigar pronto, nem eu, nem você, certo?
Quer dizer, eu né? Fiquei olhando para ele. Na verdade, a verdade prevaleceu. O simples evocar do nome de Xangô mudou a qualidade da cena, mudou o destino do desfecho. Aquele homem branco, feirante, de alguma maneira sabia que gente errada não quer conversa com Xangô, o cara da justiça.
A feira, as pessoas, o dia seguindo o seu curso, e o que aconteceu ali, foi o que chamo de terrorismo simbólico! Uma continuação contemporânea do novo quilombo de Zumbi gerando a nova abolição brotada de minha consciência negra.
* Elisa Lucinda é poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz brasileira.
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