Discoteca Básica Sentimental #5

04/05/2018

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Pensar num disco para a seção Discoteca Básica Sentimental levou-me de volta a muitos lugares. Quando busco pelas raízes da minha paixão por música sempre me vêm à cabeça meu pai e suas fitas mixadas compradas das mãos de DJs das discotecas, nos anos 1970. Eu não sabia bem o que era aquilo que ele botava pra gente ouvir quando saía pra dar voltas de carro à noite, mas sabia que gostava. Então acredito que, se fosse pra escolher um gênero básico sentimental, ele seria disco music, sem dúvida.

Mas vamos agora ao disco. Pensei em algum que eu mesma tivesse comprado, com o dinheiro que deixava de gastar com o lanche da escola — felizmente eu não passava fome, apenas comia menos e ia guardando as moedas que sobravam até chegar ao valor certo pra sair da escola um pouco antes do final da aula, ir correndo até a seção de discos (vinis e cassetes, estamos falando dos anos 1980!) do Supermercado Eldorado, na alameda Pamplona, e fazer uma comprinha.

Até hoje tenho muitos álbuns dessa época, alguns ainda com o selo do supermercado. Não precisei tirar a poeira dos vinis pra encontrar aquele que eu usaria como ponto de partida para o meu texto aqui, pois ele nunca saiu da minha memória afetiva: The Head On The Door, de The Cure.

Antes de entrar no disco, um pouco de contexto: o álbum já era o sexto da carreira dos ingleses e havia sido lançado internacionalmente em agosto de 1985. O Brasil sempre recebia discos gringos (quando chegavam) com bastante atraso, mas talvez por conta da entrada da faixa In Between Days na trilha da novela Selva de Pedra, da Globo, em 1986, o disco ganhou lançamento nacional naquele ano.

Já tinha me ligado no The Cure assistindo a alguns de seus clipes no programa Realce, da TV Gazeta, que era apresentado pelo radialista Beto Rivera e um boneco tipo o Louro José da Ana Maria Braga, chamado Capivara — que na verdade parecia um bicho de goiaba. O programa trazia clipes bem novidadeiros, pelo menos aqui para a turma terceiro-mundista que não sabia muito bem o que era realmente novo e o que era novo só para nós.

Foi no Realce que eu vi pela primeira um clipe da banda Siouxsie & The Banshees, que foi amor gótico à primeira palhetada e acabou se tornando o primeiro show adulto que eu vi na vida, em dezembro de 1986. Eu tinha 12 anos e meu único show antes do da Siouxsie tinha sido, confesso, um do Menudo.

Mas esta coluna não serve pra contar podres e sim falar sobre nossos discos do coração, então de volta para The Cure, pois foi no Realce também que vi um clipe divertido, com um cara cantando com uma voz meio chorosa, com cabelo totalmente desgrenhado e rosto rebocado com pancake branco. Ele parecia ter saído de um filme mudo. Vestia um terno “maior que o defunto”, usava um batom vermelho borrado, um tênis branco de cano alto sem cadarço e fazia caras fofas quando chegava perto da câmera. A música era uma delícia, uma baladinha dançante com um violão meio espanhol na linha de frente e uma melodia de teclado que não saía da cabeça. A música era In Between Days, o moço meio desengonçado era Robert Smith (a quem meu pai passou a chamar de “Pastelão”, porque ele se parecia com Charles Chaplin) e a banda era The Cure. Nossa, como eu precisava conhecer mais sobre aquele som!

Robert Smith na época do lançamento de The Head on The Door

Felizmente o disco saiu no Brasil e meses depois de eu ter visto o clipe de In Between Days pela primeira vez pude botar as mãos numa versão nacional de The Head on the Door. Para minha felicidade, o vinil vinha com encarte e finalmente pude cantar as letras. Fiquei tão obcecada com o que diziam as músicas que, juro, meu inglês deu uma acelerada num grau que posso dizer que foi por causa de The Cure que comecei a falar bem a língua.

O disco é uma porta de entrada perfeita ao universo do Cure, que vai do fofo quase infantil ao dark de cortar os pulsos no saltar de uma faixa. O vinil abre com a vibe lá em cima, com o hit noveleiro In Between Days para, em seguida, desembocar na sombria e nipônica Kyoto Song.

Depois de ensaiar a sua cara mais lacônica ouvindo Kyoto Song, o disco te leva direto para a Espanha moura, com o som latino mezzo oriental de The Blood e sua letra católica: “I am paralized by the blood of Christ!” Eu, que estudava num colégio de freiras, me conectava totalmente com aquele grito de ajuda de Bob Smith.

Como numa gangorra pendendo do sério para o nonsense, Six Different Ways trazia novamente o astral para o playground. Nessas músicas mais “bobinhas”, Robert Smith caprichava no jeito meigo de cantar. Eu (e a torcida gótica do Corinthians) suspirava. Push, a última do lado A, vinha em seguida pra terminar a experiência do primeiro lado do álbum no mood de rock feliz e viajante, uma das marcas registradas do Cure. O vocal surge do meio para o final da música, “like strawberries and cream, it’s the only way to be”, uma das muitas mensagens subliminares que você ouvia na escrita poética do Cure.

O lado B abre com The Baby Screams, com seu clap eletrônico acentuando ainda mais a verve dançante que surge em várias faixas da banda. Em seguida, a sublime Close to Me, que a gente já conhecia de ver o clipe no Realce — programa que talvez a essa altura já tivesse mudado de nome para Clip Trip. A ideia era macabra, mas o vídeo, superdivertido. Os integrantes eram empurrados de um penhasco, dentro de um armário, e lá dentro iam rolando e tocando seus instrumentos. A música tornou-se um dos maiores hits do Cure até hoje.

Depois da alegria vem a tristeza. E A Night Like This era a balada arrastada, de letra triste, para ouvir sofrendo no quarto, de preferência abraçada com o travesseiro, chorando sem nem saber o motivo. “Ooo, I want to change it all”, cantava Smith. Depois de sofrer com essa música, o ouvinte era convidado a curtir o rock grooveado de Screw — o velho bate e assopra do Cure, funcionando como um reloginho.

O disco termina com a lenta Sinking com camas suntuosas de teclado e Robert Smith cantando uma letra bem dark, sobre estar perdido e sem rumo na vida (“estou descendo devagar enquanto os anos vão passando, estou afundando”). Nada podia soar tão perfeito para um final de disco de uma banda como The Cure. Mas bastava eu virar a bolacha e botar o lado A para tocar de novo para o clima deprê ir embora. The Head on the Door é tão bom porque é como a vida da gente. Até nos dias mais tristes dá para rir. E mesmo nos dias mais felizes pode vir aquela vontade de chorar.

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