Discoteca Básica Sentimental #4

01/11/2017

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Carlos Calado é jornalista, editor e crítico musical, autor dos livros “Tropicália: a História de Uma Revolução Musical”, “A Divina Comédia dos Mutantes”, “O Jazz como Espetáculo” e “Jazz ao Vivo”, entre outros.

Lembro bem de minha surpresa ao encontrar um vinil da cantora Jeanne Lee com o pianista Ran Blake, em uma pequena loja de discos no centro de Buenos Aires, no início dos anos 1990. Naquela época, ainda não contávamos com as facilidades proporcionadas pela internet para se achar um disco raro, um livro fora de catálogo ou um filme mais antigo. Só garimpar as prateleiras das lojas não era suficiente: muitas vezes você também precisava de sorte.

Até então eu quase não tinha informações sobre a norte-americana Jeanne Lee. Ela estava entre as poucas vocalistas associadas ao jazz de vanguarda, que o jornalista e produtor alemão Joachim-Ernst Berendt mencionara no livro “O Jazz: do Rag ao Rock”, cuja pioneira edição brasileira (da editora Perspectiva) despertara minha atenção para a diversidade dos estilos do jazz, ainda no final dos anos 1970.

Diagrama presente em “O Jazz: do rag ao rock”, Berendt, Ed. Perspectiva

Minha surpresa foi maior ainda ao ouvir o LP encontrado, uma caprichada reedição da RCA francesa, com capa dupla e um texto assinado por Laurent Goddet, crítico da revista “Jazz Hot”.

Era difícil acreditar que aqueles duos de voz e piano, tão contemporâneos, tivessem sido gravados no longínquo ano de 1961. O título do álbum, “The Newest Sound Around” (algo como “o som mais novo por aí”), certamente foi sugerido pela gravadora, mas não tinha nada de marqueteiro. Tratava-se realmente de música inovadora, inventiva.

Quando gravaram esse álbum, em novembro e dezembro de 1961, a cantora e o pianista tinham acabado de se formar na Bard College, uma seleta faculdade de artes liberais do estado de Nova York — Jeanne tinha 21 anos; Ran, 26. Os dois já se apresentavam juntos por dois anos. Pouco antes das gravações do álbum, chegaram a participar de um dos concursos de novos talentos do lendário Apollo Theater, no bairro nova-iorquino do Harlem, do qual saíram vitoriosos.

Lee e Blake na TV Francesa em 1963

A faixa inicial do álbum — uma sombria releitura de “Laura”, a canção que David Raksin compôs em 1944 para o filme homônimo de Otto Preminger, com letra posterior de Johnny Mercer — já deixa o ouvinte intrigado. Os sons estridentes do piano contrastam, inicialmente, com a voz grave e suave da cantora, mas logo a dupla começa a tecer uma aura sonora de encantamento, que perpassa todo o álbum.

Quatro clássicos do repertório jazzístico também aparecem em releituras cheias de personalidade. “Blue Monk”, o dissonante blues de Thelonious Monk, ganha um tom de sensualidade. A balada “Lover Man” é tratada sem a pungência da clássica versão de Charlie Parker. “Summertime”, a conhecida canção da ópera negra “Porgy and Bess” (dos irmãos Gershwin) é tratada com contrastes dinâmicos que acentuam sua dramaticidade. Finalmente, graças aos vocais de Jeanne, a versão da canção “When Sunny Gets Blue” (Segal & Fisher) é de uma beleza arrepiante.

Capa da reedição de The Newest Sound Around

Em suas anotações na capa do álbum, Laurent Goddet define muito bem a impressão provocada pelo doce e sensual timbre de voz da cantora.

“Não há nada rude ou áspero: suas notas criam um bálsamo calmante, uma suavidade feminina, materna e quente. É esse sentimento maternal que nos devolve à profundidade de nosso subconsciente e transmite uma atmosfera de sonho, miraculosamente iluminado, como pela lua, graças ao piano de Blake”.

“The Newest Sound Around” ainda é uma obra-prima pouco conhecida entre os apreciadores do jazz, mais de cinco décadas após o seu lançamento. Desde que o descobri, tive o prazer de acompanhar a surpresa e a excitação de vários amigos, ao ouvi-lo. Aliás, o produtor Toy Lima chegou até a convidar Jeanne Lee a se apresentar no Chivas Jazz Festival, em 1999, mas ela cancelou a vinda ao Brasil, semanas antes do evento, ao saber que estava com câncer.

Fiquei triste ao ler a notícia de sua morte, em outubro de 2000. E também frustrado ao saber que não teria mais a oportunidade de ouvi-la cantar ao vivo. Jeanne Lee tinha uma voz tão sublime que, no fundo, talvez eu quisesse comprovar pessoalmente que ela era mesmo deste mundo.

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