Músico e pesquisador, Tiganá Santana faz da experimentação sonora a marca de seus projetos e reverencia Milton Nascimento em releitura do álbum Milagre dos Peixes
Por Matheus Lopes Quirino
FOTOS ADRIANA VICHI
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A curiosidade pelo não convencional marca a trajetória do cantor, compositor e pesquisador Tiganá Santana. O interesse por investigar sonoridade, poesia e percussão, além de realizar experimentos com as linguagens do som, é um marco de toda sua carreira. Essa vocação fica evidente desde o lançamento de seu primeiro álbum, em 2010, Maçalê, palavra que quer dizer “você é um com a sua essência”, em iorubá. “Sou muito interessado no desconhecido”, afirma o músico, que ouve desde kangen, tradicional gênero instrumental japonês, a clássicos da MPB.
Tiganá Santana não esconde a admiração que tem por Milton Nascimento, com quem teve a oportunidade de se encontrar numa festa na própria casa do cantor do Clube da Esquina. “Como nós dois somos tímidos, nem houve muita conversa, mas foi inesquecível”, recorda. Na ocasião, Santana havia feito uma releitura do icônico álbum Milagre dos Peixes, de 1974, considerado o mais experimental de Nascimento, tendo oito faixas censuradas pela ditadura militar, na época. Intitulado Milagres, o trabalho de Tiganá, em parceria com Sebastian Notini, foi lançado em 2020, em plena pandemia de Covid-19. Um tributo ao mestre, aclamado pela crítica especializada.
Formado em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tiganá Santana foi iniciado no universo da música ainda menino, pelo avô. Experimentação é algo presente em seus processos criativos: adaptou um violão para combinar com seus tons vocais altos e foi o primeiro compositor brasileiro a compor um álbum com canções em línguas africanas.
Em mais de duas décadas de carreira, o artista baiano construiu um repertório eclético em que trabalha com kimbundu e kikongo, idiomas de Angola e do Congo, respectivamente. Seu trabalho é reconhecido no exterior, tendo participado de diversas residências e programas culturais em países dos continentes africano e europeu. Em 2019, foi eleito um dos dez músicos em destaque da cena artística brasileira atual, pela revista britânica Songlines. Neste Depoimento, Tiganá Santana compartilha suas impressões e memórias sobre música, carreira, letras e linguagens presentes em seu repertório.
Ainda criança, frequentei, com a minha mãe, o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), na Universidade Federal da Bahia. O lugar foi fundado no final dos anos 1950 pelo humanista português Agostinho Silva (1906-1994), exilado no Brasil pela ditadura de Salazar [regime que vigorou em Portugal entre os anos de 1933 e 1974]. O Ceao se transformou em um grande espaço de diálogo entre a universidade e a sociedade. Ali, minha mãe fazia um curso de kikongo, língua africana do tronco linguístico banto e iorubá, que influenciou muito o português brasileiro. Eu devia ter cinco anos de idade. Era a única criança que frequentava o curso. Quando chegávamos em casa, eu dizia à minha mãe exatamente o que tinha acontecido na aula. Um dia, o professor me ditou um texto para eu memorizar. Eu estava perto de aprender a ler. Não entendi muita coisa, mas me empenhei na tarefa. Para mim, aquelas línguas todas eram um saber entre outros tantos saberes. E me deixavam curioso.
Os terreiros de candomblé também me fizeram crer na presença de outras línguas. De algum modo, fui desenvolvendo uma relação particular com a língua portuguesa. De modo a perceber que falar português implicava ter porosidade para receber outros sons linguísticos. Ouvia sons que não se aprendiam na escola. Foi no Ilê Aiyê [primeiro bloco afro do Brasil, que em 2024 completa 50 anos] onde aprendi que havia possibilidade de falar coisas em português e em línguas africanas. E percebi isso pela própria relação do Ilê com o candomblé. É um bloco afro que surge em um terreiro [da líder religiosa Hilda Dias dos Santos]. Então, a inserção de alguns cânticos da liturgia está junto de canções, de ritmos de Carnaval. São temas relativos à nossa história, às histórias negras da diáspora no continente africano. De algum modo, isso tudo estava no meu ethos [em grego, conjunto de hábitos e comportamentos que definem a identidade de uma coletividade]. E quando a gente vai criar, a gente se utiliza do repertório que tem. Quando comecei a compor, havia uma necessidade estética de caminhar pelas línguas africanas nessas composições.
Eu tenho um avô que é músico. Ele toca clarinete e saxofone e hoje tem 99 anos de idade. Foi ele quem me ensinou a ouvir música instrumental. Com ele, estabeleci uma relação com o choro. Sou uma pessoa muito mais influenciada pela música instrumental. Escuto muita coisa de lugares diferentes. Ouço música instrumental do Japão, do Benin, da Etiópia, do Congo, da Escandinávia, dos Estados Unidos, só para citar alguns exemplos. Os sons me despertam coisas misteriosas. São territórios musicais que me emocionam.
Os sons me despertam coisas misteriosas. São territórios musicais que me emocionam
Foto: Adriana Vichi
Eu gosto muito mais de ouvir música do que de fazer. Eu faço por algum tipo de consequência. Não tenho rotina, nem método. Eventualmente, me vem uma ideia, sobretudo melódica. E é por aí que eu começo a criar. Sigo minha intuição. Eu começo e vou experimentando. Sou interessado em modos distintos de pensar, e em línguas. Eu me pergunto: que tipo de frequência certos instrumentos podem trazer? E como posso receber essas frequências culturais, essas linguagens musicais de outros lugares? Escuto muitos territórios musicais, mas fico com o que me emociona. Na escuta existe alguém que, antes de mais nada, está na música porque curte música.
Já criei música com e sem instrumentos. A criação não depende, necessariamente, do instrumento. Eventualmente me vem uma ideia, sobretudo, de melodia, e eu digo: “Ali tem um caminho”. Trabalho muito com o violão, que é meu instrumento original. O que eu chamo de violão tambor é também um violão, só que com uma corda a menos. Esse instrumento que adaptei me obriga a percutir um pouco mais. E em uma das cordas, que seria mais aguda, solto uma grave. A afinação da corda aguda faz com que o violão tambor se torne um instrumento médio/grave que, por sua vez, habita a mesma região da frequência da minha voz.
Uma voz importante para mim é a de Milton Nascimento. O álbum Milagres [de 2020] partiu de um convite da [gravadora alemã] Martin Rosemar para revisitar este álbum emblemático do Bituca [Milagre dos Peixes, 1974]. Me interessou ter esse espaço para poder fazer outras coisas, percorrer outros caminhos, experimentar. Ao longo do processo do disco [lançado no auge da pandemia de Covid-19], percebi que falar de 50 anos atrás é falar do agora. Porque o álbum do Milton Nascimento foi um marco e foi censurado. É chocante pensar que algo do gênero pode acontecer com o trabalho de um artista. E essa violência mostra como o fascismo está presente [na história] do Brasil. Quando falo de fascismo, falo de uma série de outras questões urgentes que estão na pauta de hoje, como o racismo.
O racismo forma o Brasil em todas as relações. É a grande questão do país, a grande ferida da nação. A primeira vez que sofri racismo, e que me marcou na pele, foi aos 13 anos. Naquela época, eu ainda não tinha letramento suficiente para compreender o quão complexo era aquilo e dar uma resposta certeira. Cheguei na sala de aula e meus colegas estavam lendo piadas racistas. Quando escutei aquilo, soube que era algo inegociável. Fui à diretoria da escola e denunciei. Avisei que, se não tomassem providências, eu iria à imprensa. Devo muito essa percepção aos meus pais. Eles foram fundadores do Movimento Negro Unificado em Salvador (de 1978). É sempre um baque. E reagir frontalmente foi aplicar o que aprendi em casa. A luta antirracista deveria ser de todo mundo. Ninguém deveria ter coragem de pronunciar a palavra democracia sem colocar a questão racial no centro dessa história.
Escuto muito e leio muito porque isso faz parte do meu próprio ofício. Hoje sou professor do Instituto de Humanidades da Universidade Federal da Bahia. Vou do texto literário ao acadêmico, passando pela não ficção. E me demoro na filosofia. Sou formado em filosofia. Eu demorei um pouco para me tornar professor porque acho que é a coisa mais elevada que um homem pode ser. Dou aula na graduação, então ainda estou aprendendo. Gosto muito de estar ali, no tête-à-tête com as pessoas. Ouvir os alunos, sobretudo. Nessa relação, não tem palco, não tem cenário, não tem luz que ofusca. Ali é a palo seco, é a vida.
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