Todos os tons

07/04/2021

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TROPICALISTA PLURAL E  ATEMPORAL TEM VIDA E OBRA ORQUESTRADAS EM BIOGRAFIA

Nascido em Irará, no estado da Bahia, Antônio José Santana Martins, popularmente conhecido como Tom Zé, segue driblando os ponteiros do relógio, aos 84 anos. Radicado em São Paulo desde os anos 1960, esse compositor e cantor, referência na música mundial, tem mesmo a verve de um contador de histórias. Parte disso se deve a sua memória extraordinária. Outra parte à memória infalível de sua companheira, Neusa Martins, com quem está casado há mais de quatro décadas. Na recém-lançada biografia Tom Zé – O Último Tropicalista (Edições Sesc São Paulo, 2020), do crítico italiano Pietro Scaramuzzo, compreendem-se as raízes de Tom Zé – da descoberta do talento para canções sobre vida e personagens do cotidiano ao reconhecimento como tropicalista e à criação de álbuns que marcaram a carreira de músicos como Rita Lee e David Byrne. O livro também abarca memórias da infância, quando, atrás do balcão da loja do pai, lia Os Sertões, de Euclides da Cunha, além do episódio em que, por um triz, quase deixou a música para assumir a gerência de um posto de gasolina. “Eu não sabia fazer música de nenhum tipo, então eu inventava um jeito de fazer música em Salvador como eu fazia em Irará: a mulher que vendia acarajé na porta do Colégio da Bahia, que todo mundo conhecia, fazia fuxico, até namoro ela arranjava para os alunos, entre outros personagens”, conta neste Encontros.

O NORDESTINO

Esse livro foi todo feito nas coxas do WhatsApp. E era uma alegria porque Pietro [Scaramuzzo] era tão provocador de coisas… Ele sabia pontos e ia lá cutucar, e, quando eu lia, aquilo parecia mesmo um romance. Aquela história ligada ao interior… Eu pensava que ninguém do mundo sabia da nossa existência. Uma vez, eu perdi o ano em ginástica e fiquei as férias todas em Irará estudando. Eu era um péssimo estudante. Não queria saber dos livros, os gibis que trouxe de Salvador acabaram logo e em Irará não tinha gibi. Numa prateleirazinha tinha um livro assim: Euclides da Cunha, Os Sertões. Valha-me, Nossa Senhora. Acabei pegando. Meus tios falavam muito: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Então, comecei a ler a segunda parte, sobre o homem, falando do nordestino. Comecei a desconfiar que ele estava falando de mim e do freguês da loja de meu pai que eu atendia e conhecia e que ia à cidade um pouco para conversar, um pouco para ouvir e principalmente para falar. Quando ele chegava, meu pai pegava duas ou três cadeiras e ia no bar pegar um refresco gelado, que era só um copo embaçado, uma geladeira de um candeeiro que produzia o frio. Então, eles tomavam aquele negócio “gelado” e conversavam, e comecei a me interessar por aquelas conversas. Quando fui ler Euclides da Cunha, ele falava justamente dessa criatura, depois ele falava dos charutos de Cachoeira [município da Bahia], que era perto da gente. Até o dia em que não tinha mais dúvida: ele [Euclides da Cunha] estava falando da gente mesmo. Nesse dia, é claro, a gente chora. E chorar nesse tempo não vendia imagem nem dava audiência de televisão. Então, eu e o Pietro escrevemos tudo isso com alegria.

O OUVINTE

Eu ouvia a rádio Nacional do Rio de Janeiro nos anos 1950, era criança nessa época, e a rádio era uma verdadeira universidade. Produtores faziam com o casting de grandes artistas brasileiros, cantores daquele tempo, programas excepcionalmente interessantes. E, na minha casa, por acaso, tinha um rádio de galena [um dos receptores mais simples de modulação AM que se pode construir; utiliza as propriedades semicondutoras do mineral galena]. Tinha uma rádio vizinha à rádio Nacional, a rádio El Grano de Buenos Aires: eu ficava ouvindo aquela língua estranha que até futebol irradiava, jogadores que eu não sabia quem eram. É claro que lá em Irará a gente tinha time no Rio de Janeiro, porque Getúlio Vargas não deixava que as emissoras de rádio de São Paulo tivessem 50 quilowatts, porque São Paulo era um lugar criador de problemas para ele, e tinha feito a revolução. Depois, tive um tio meu, Vicente, que, quando chegou em Salvador, pegou um rádio para ouvir as emissoras do Rio de Janeiro e outras. Eu passei a conhecer Corinthians, Velo Clube, todos esses times grandes e pequenos de São Paulo. E passei a conhecer um pouco de São Paulo. Depois, com a televisão, era um assombro… Aliás, na chegada da bossa nova e da televisão, tinha um programa de calouros que se chamava Escada para o Sucesso, domingo às oito horas da noite. Meu primo Roberto Santana, que sempre foi mais hábil, mais civilizado, um dia mandou dizer: “Você vai cantar no Escada para o Sucesso”.

COMEÇOU A NASCER UMA COISA COMPLETAMENTE FORA DE LÓGICA NA MINHA CABEÇA,
QUE ERA NÃO FAZER MAIS MÚSICA, MAS JORNALISMO CANTANDO

O CANTOR

Pelo menos numa coisa eu acertei: em Irará, eu descobri que não sabia fazer música romântica, que minha namorada me chamou para cantar e eu não conseguia abrir a boca. Mas começou a nascer uma coisa completamente fora de lógica na minha cabeça, que era não fazer mais música, mas jornalismo cantando. Quer dizer, fatos engraçados na vida do iraraense eu transformava em música. Era interessante como era difícil colocar o indicativo do presente do verbo em música. Que tipo de dificuldade mais inesperada. Porque a música falava de um lugar passado, um lugar distante, um lugar remoto, que na verdade não existia. Eu passei sete anos na escola de música da Universidade da Bahia. Lá tinha o Koellreutter [Hans-Joachim Koellreuter, compositor, professor e musicólogo brasileiro de origem alemã, que chegou ao Brasil em 1937 e tornou-se um dos nomes mais influentes na vida musical no país, 1915-2005]. O reitor da Universidade da Bahia, Edgar Santos, chamou o Koellreutter para fundar a escola de música e disse que ele podia fundar a escola que ele quisesse. Aí o Koellreutter fundou uma escola em que os artistas tinham o contato com a música que estava acontecendo naquele momento no mundo: a música erudita, a música pós-tonal depois de Schoenberg [compositor austríaco de música erudita e criador do dodecafonismo, um dos mais revolucionários e influentes estilos de composição do século 20, 1874-1951]. E isso educou praticamente o Tropicalismo.

O TROPICALISTA

O Antonio Risério tem um livro, Avant-Garde na Bahia: Pontos sobre o Brasil (1995), que conta essa história com conhecimento e finura, porque ele é um grande escritor. Depois que li, compreendi que foi esse contexto [da escola de música com Koellreutter e outros professores da época] que fez o Tropicalismo. Então, em Salvador, você circulava numa cultura que ninguém pensava que uma cidade do interior, como era Salvador, podia ter, e nem a gente sabia que a gente estava sendo educado por um universo altamente sofisticado – e isso fez o Tropicalismo. Não há a menor dúvida. Eu não sabia fazer música de nenhum tipo, então eu inventava um jeito de fazer música em Salvador como eu fazia em Irará: a mulher que vendia acarajé na porta do Colégio da Bahia, que todo mundo conhecia, fazia fuxico, até namoro ela arranjava para os alunos, entre outros personagens. Como a história de uma guerra da lagosta, que foi uma briga entre França e Brasil por causa da pesca num mar que já era brasileiro. Todas essas coisas eu já transformava em música, e, quando eu cantava, me apresentaram ao pessoal do Tropicalismo, que já tinha ouvido falar de mim cantando na televisão, e aí Caetano e Gil me convidaram para fazer os shows. Depois [o dramaturgo e ensaísta Augusto] Boal chamou esse grupo para vir a São Paulo para fazer o Arena Canta Bahia. Então, os baianos também me trouxeram para fazer esse espetáculo em São Paulo [nos anos 1960, época em que se muda para a capital paulista].

O INCANSÁVEL

Eu sempre fui um trabalhador voraz. Eu acordava às três horas da manhã, porque meu pai teve uma padaria, e padaria acorda às três horas para abrir às quatro para vender para os bares que vão abrir perto da cidade. No primeiro dia em que eu acordei cedo o corpo doeu. Uma tortura. Mas, enfim, me acostumei e hoje eu acordo às quatro da manhã, tomo um desjejum, vou trabalhar. Então eu passo o dia todo trabalhando. Eu trabalho feito uma Inês de Castro [nobre europeia da região de Castela que protagonizou o mais famoso e trágico caso de amor da história portuguesa, recontada por escritores, entre eles, Camões]. Teve um momento em que eu vivia mais ou menos como um cantor popular. Tinha uma música ou outra na parada de sucessos, era chamado para tudo quanto é televisão, mas quando eu fiz o disco Todos os Olhos (1973), que é um dos melhores discos da minha vida, eu deixei de ser chamado para entrevistas, diminuiu a procura minha em rádio. Passaram-se 20 anos assim. A rádio Bandeirantes tinha um programa de pessoas desaparecidas, e um ouvinte ligou perguntando por Tom Zé. Aí o diretor da rádio ligou aqui para casa e eu disse que continuava trabalhando e eu trabalhava muito com a classe estudantil, a classe universitária me sustentou durante 20 anos. Todo dia eu dirigia uma Brasília, passando por universidades para os alunos me ouvirem. Na hora que veio o posto de gasolina, até a classe estudantil estava me botando de lado. Então, resolvi largar a música e ir para Irará. Liguei para meu sobrinho que tinha um posto de gasolina, me oferecendo para ser o gerente dele no posto, e já estava pensando em ir quando apareceu a notícia de que David Byrne [o líder da banda Talking Heads] vinha ao Brasil. O [jornalista] Matinas Suzuki, da Folha de S.Paulo, fez uma entrevista com David Byrne no escritório dele e viu sobre a mesa: “Procurar Tom Zé”. E ele botou isso [na entrevista publicada]. Aí Neusa deu um grito. Ela conhecia David Byrne, conhecia a música, o grupo dele, as parcerias dele, e eu tinha visto o filme dele havia uma semana, True Stories. Nesse livro [a biografia Tom Zé – O Último Tropicalista], Byrne se ofereceu para escrever o prefácio e disse coisas inacreditáveis.

TOM ZÉ esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 18 de fevereiro de 2021

Como nasce uma obra

Com a palavra, o crítico italiano Pietro Scaramuzzo, autor da biografia Tom Zé – O Último Tropicalista

Muitos anos atrás me apaixonei pela música brasileira e criei um site na Itália para falar da música brasileira para os italianos. Viajei para o Brasil, fiz entrevistas e numa dessas viagens, depois de muito insistir, Tom Zé me convidou para a casa dele, onde me falou sobre como nasceu o Tropicalismo, Sócrates, poesia provençal. Para mim, foi uma descoberta enorme. Eu tinha preparado uma lista e fiz poucas perguntas. Voltei para casa com tudo isso na cabeça e pensei: preciso saber mais sobre Tom Zé. Busquei uma biografia dele e a Neusa [Neusa Martins, esposa, produtora e companheira de vida do artista] falou que não existia. Enquanto isso, ia acumulando muito material sobre ele, e fiz a proposta – cara de pau – de fazer sua biografia. Posso falar que foi uma experiência incrível, não por ser meu primeiro livro, mas pela possibilidade de mergulhar na vida deste que é um dos maiores artistas que não só o Brasil tem, mas o mundo afora tem. Eu nunca fui a Irará, mas através de Tom Zé eu a conheço. Fui guiado por Tom Zé pelas ruas de Irará e isso para mim foi um privilégio. Quando comecei a pensar na biografia, pensava em falar dos discos, da importância do [álbum] Estudando o Samba, mas também queria que uma parte da história de Tom Zé não se perdesse. Coisas da infância dele que só ele podia contar. Coisas do período do ostracismo dele que só ele poderia contar. Tom Zé é o resultado de toda essa história. Trabalhamos por um ano inteiro, graças ao WhatsApp. Marcamos o horário, eu sugeria os temas e a gente ficava conversando assim. No final, acabei escrevendo essa biografia que saiu na Itália. Tivemos a sorte de ter o David Byrne como autor do prefácio. Todos os outros tropicalistas participaram também da biografia, todos deram depoimento. Então foi um trabalho incrível, para mim foi um quebra-cabeça, até porque não tinha outros livros sobre ele. Foi reconstruir uma história maravilhosa, que é a vida do Tom Zé.

Bahia, meu Brasil

Em texto especial para a Revista E, Caetano Veloso fala de seu companheiro de viagem e da biografia escrita pelo jornalista Pietro Scaramuzzo

Ler a biografia de Tom Zé, escrita por Pietro Scaramuzzo, foi uma experiência importante para mim. Acompanhar o Tom Zé que eu ainda não conhecia. Quando ouvi falar dele, em Salvador, já o espetáculo do CPC que ele musicara tinha se tornado famoso. Minha vida se dava num ambiente em que a bossa nova de João Gilberto (e, claro, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes) era tudo o que interessava. O bumba meu boi do CPC era algo que contava, mas não se impunha sobre os acordes dissonantes do novo estilo. Apenas significava um aspecto que, mesmo não parecendo necessário a João Gilberto, era impossível de ser ignorado por nossa atenção: a questão político-social do Brasil. Tom Zé surgiu em minha vida ligado a esse tema. Orlando Sena, então crítico de cinema (função que eu também desejava exercer), promoveu nosso primeiro contato.

O texto de Scaramuzzo é límpido e elegante, sua recriação da formação de Tom Zé encanta e ensina. Mas, possivelmente tendo conhecido Orlando pessoalmente em época recente, julgou que o grande codiretor de Iracema, Uma Transa Amazônica tivesse sido sempre magro. Na verdade, Orlando era gordo durante todo o tempo em que convivemos em Salvador. Quase não há erros assim no livro. Erros que eu note logo ou, diferentemente desse, me desagradem. Bethânia e eu nunca fizemos shows em bares de Salvador. De toda a nossa turma, apenas Gil o fez. E num bar só. Corrigindo esses dois lapsos de Scaramuzzo, o livro é revelador da verdade brasileira. Ele descobre que Tom Zé é peça-chave para acessar essa dimensão.

As canções com letras em tom de crônica e melodias atadas a tradições rurais não eram parecidas com o que Gil, Gal e eu queríamos fazer – nem mesmo com o que Bethânia já estava fazendo nas apresentações da semana inaugural do Teatro Vila Velha. Esta, embora viesse a cantar canções nordestinas a partir de seu lançamento nacional no show Opinião, não era bossa-novista como nós três, mas tendia mais para o samba-canção dramático dos anos que precederam a bossa. Tom Zé – que participou dos espetáculos do Vila – era em tudo diferente disso e daquilo. Sua verve satírica, retratista e musicalmente insinuando, a partir de padrão nordestino, experimentalismo, só poderia me parecer viável num contexto que veio a se desenvolver pelo que Gil e eu imaginamos causar à criação de canção no Brasil: a virada que ganhou o apelido de “tropicalismo”. Como já se sabe, tive de insistir um tanto com Tom Zé para que ele viesse para o Sudeste. O voo no Caravelle – que é narrado em Verdade Tropical e reaparece confirmado no livro de Scaramuzzo – terminou sendo um momento crucial na nossa história: Tom Zé vinha para tornar-se não apenas O Último Tropicalista, como talvez o tropicalista mais radical de todo o movimento. Ele, estudando o samba, sintetizou tudo o que sugeríamos em nossas espalhafatosas letras paródicas e colagísticas.

Além de ser do sertão (todos nós outros éramos do recôncavo, nascemos colados ao litoral), ele estudara nos seminários livres de música. Assim, sua dicção, sua perspectiva crítica e sua ambição experimentadora teriam de mostrar-se mais concentradas e consequentes. Já em 1968, quando as explosões tropicalistas tinham se dado (com Alegria, Alegria, Domingo no Parque e meu primeiro LP, que continha Tropicália), achei que o panorama da canção popular já seria acolhedor da originalidade do estilo criativo de Tom Zé. Tenho muito orgulho de não ter errado.

TOM ZÉ VINHA PARA TORNAR-SE NÃO APENAS “O ÚLTIMO TROPICALISTA”
COMO TALVEZ O TROPICALISTA MAIS RADICAL DE TODO O MOVIMENTO

Quando Estudando o Samba foi lançado, eu tinha voltado do exílio em Londres e vivia na Bahia, sem querer ligar-me à vida do Sudeste. Fiz o disco Araçá Azul com pegada experimental e fiquei em Salvador concentrando-me na felicidade de estar no Brasil, no meu Brasil que é a Bahia, e, mais ainda, no começo da vida de Moreno, meu primeiro filho. Assim, não acompanhei os desdobramentos do trabalho de Tom Zé com a atenção que ele merecia. Lembro-me do disco que contém “A Brigitte Bardot está ficando velha”. Mas Estudando o Samba passou abaixo do meu radar. Quando David Byrne mostrou interesse pela música brasileira – um vivo, surpreendente interesse – ele, que tinha se tornado meu amigo por termos lançado nossos (até aqui) únicos longas-metragens no Festival Internacional de Cinema do Rio, me mostrou as escolhas que fez do que queria apresentar da nossa música ao público norte-americano (e, portanto, mundial). Disse a ele que não opinaria sobre suas escolhas, que deveriam mostrar um ponto de vista de alguém que não vivesse no Brasil. Só não pude reprimir minha pergunta sobre por que Paulinho da Viola não estava incluído. David me respondeu, num restaurante em Nova York, que Paulinho estava guardado para um segundo disco, este exclusivamente sobre samba. Fiquei satisfeito (embora, quando, depois, esse disco saiu, Paulinho, para minha tristeza, seguisse ausente). Um detalhe que Scaramuzzo não conta no livro é que, quando Tom Zé me ligou para perguntar sobre David Byrne estar interessado no trabalho dele, eu, que fiquei contente (e também intrigado por ter mencionado Paulinho mas nem me lembrado de Tom Zé – embora sentisse que Tom Zé fosse como que já representado por presenças tropicalistas no primeiro álbum de brasileiras produzido por Byrne), perguntei, mais por cuidado, para que Tom Zé não tivesse nem mesmo uma remota decepção, se talvez não estivessem falando de Tuzé, outro compositor baiano e formado nos Seminários Livres de Música, de obra experimental, com quem David tinha estado nos dias que passou em Salvador, antes de vir pro festival de cinema do Rio: eu tinha sabido que David saíra com Tuzé, que lhe tinha sido apresentado como alguém que lhe seria um bom guia pela cidade. Somado à desatenção pelo trabalho mais recente de Tom Zé na altura, essa suposição de que pudesse tratar-se de um quase homônimo, conhecido dele e meu, sem dúvida soou mal aos ouvidos de Tom Zé – e ele chegou a mostrar publicamente alguma mágoa ou raiva de mim. Mas nunca isso me pareceu ter tom amargo o suficiente para que me causasse mal-estar ou desgosto.

Toda a queixa de Tom Zé me chegava como parte do estilo de performer que o destaca tanto que fez Paula Lavigne, àquela altura minha namorada, me dizer, surpresa, diante de um show dele no Vila Velha: “Este é um gênio. Caetano, você pode ser bom compositor, ter canções bonitas e até ser bom sobre um palco, mas este aí é um gênio. É coisa diferente”. Tínhamos acabado de assistir a um show em que de fato Tom Zé provocava essa impressão. Eu não discordei de Paulinha nem intimamente. Nem dentro do silêncio de minha cabeça. Além das músicas lindas, Tom Zé fazia um número sentado numa cadeira, com uma riqueza teatral indescritível. Alguns anos depois, fiz um número em que eu me movia, meio dançava, meio contracenava com o violão, sem sair da cadeira em que estava sentado. Não era uma cópia do que Tom Zé fizera: eu tenho um estilo de movimento muito diferente do dele – e incapaz de transmitir a soltura e a força que ele transmite –, mas havia a estrutura do mover-se sem levantar-se que ecoava a de Tom Zé. Disso também ele reclamou, mas nunca nenhuma dessas queixas dele me feriram a alma. E minha admiração por ele nunca decresceu. Tenho uma vida amorosa muito intensa com o artista Tom Zé. Não podia ser menos do que isso. Que bom que Scaramuzzo captou a dimensão do que, nele, faz com que essa intensidade seja inevitável para mim. Se fosse coisa morna, admiração mútua “equilibrada”, não representaria toda a chama que é a alma artística de Tom Zé.

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