Tragédia dupla: inundações e doação de leite

24/07/2024

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Por Rachel Francischi

A emergência nas inundações no Rio Grande do Sul escancarou a vulnerabilidade de bebês, crianças e mulheres. Foram inúmeros pedidos desesperados de doação de fraldas, latas de leite e roupinhas. Ainda que a nobre intenção fosse ajudar, percebi que a maioria das pessoas não sabia que a doação de latas de leite, mamadeiras e fórmulas infantis representa um grave perigo em situações de calamidade pública e catástrofes.

A preparação de leites em pó requer higiene: eles se contaminam facilmente caso não sejam preparados com água fervida ou potável e precisam de utensílios esterilizados para serem servidos a crianças. Em situações emergenciais, a contaminação de alimentos é frequente, aumentando o risco de vômitos, diarreias e doenças graves.

Mas o maior problema é que a distribuição indiscriminada desses produtos prejudica enormemente o sucesso do aleitamento materno. Servir outro leite para um bebê amamentado é a principal causa de desmame precoce e de doenças infeciosas, diarreias, alergias e aumenta o risco de morte infantil.

A Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde recomendam a amamentação até os dois anos de idade ou mais, sendo de forma exclusiva até os seis meses de vida da criança. A partir dos seis meses, alimentos in natura e minimante processados devem ser oferecidos à criança, respeitando a cultura local e a sociobiodiversidade.

Na emergência humanitária após o terremoto do Haiti em 2009, trabalhei pela ONU (Organização das Nações Unidas) justamente na proteção das lactantes. A doação de leites acaba ocasionando a oferta errônea desses produtos a crianças que estavam sendo amamentadas. Sabemos que é só o leite materno que contém anticorpos e dá proteção imunológica ao bebê; evita desidratação e infecções; não precisa de utensílios esterilizados, não gera poluentes nem lixo; previne a desnutrição e é a base da alimentação saudável e do perfeito desenvolvimento da criança.

Além disso, a amamentação proporciona vínculo e conforto emocional para a dupla mãe-bebê, trazendo sensação de segurança em situações traumáticas. E ainda amamentar favorece a empatia e a compaixão. Acredito que ambas são o antídoto mais eficaz contra todas as formas de violência que existem.

Em junho desse ano, o Ministério da Saúde do Brasil publicou a Nota Técnica (No 56/2024) que orienta a promoção, proteção e apoio à amamentação e alimentação complementar saudável em estado de emergência, calamidade pública e desastres naturais. A nota reitera que a amamentação é um direito da criança e das famílias e deve ser exercido livremente sem qualquer tipo de constrangimento, repressão ou restrição. A Nota recomenda ainda que não sejam estimuladas doações de alimentos ultraprocessados, como por exemplo os compostos lácteos. Caso sejam recebidos esses produtos, eles não devem ser ofertados para crianças menores de dois anos. Infelizmente as calamidades aumentam o risco de desmame precoce e da oferta de alimentos inadequados para crianças de primeira infância. Garantir que bebês e crianças recebam alimentação segura é essencial para a preservação de suas vidas.

Mas não só a sobrevivência está em questão. Evidências demonstram que as práticas de amamentação e alimentação saudável na infância contribuem para a redução das desigualdades sociais e para o desenvolvimento econômico dos países. É por isso que precisam ser protegidas, promovidas e apoiadas para todas as famílias, e em particular entre os grupos pobres e em situação de vulnerabilidade e catástrofes naturais.

Nesse sentido, o tema de 2024 da Semana Mundial de Aleitamento Materno é “Amamentação: apoie em todas as situações”. A campanha é mundialmente celebrada na primeira semana de agosto e ressalta que “a amamentação pode ser um fator de igualdade na nossa sociedade e esforços devem ser feitos para garantir que todos tenham apoio e tenham oportunidade para amamentar. É fundamental que ninguém fique para trás, principalmente as mães vulneráveis que podem precisar de apoio adicional para a prática da amamentação.”

O foco é melhorar o apoio à amamentação reduzindo as desigualdades que existem em nossa sociedade. Em especial, apoiar e proteger a amamentação em situações de emergências e calamidades naturais; para pessoas refugiadas; para a população negra; para pessoas portadoras de deficiências; população LGBTQIA+. É necessário garantir acesso a serviços e informação sobre amamentação em braile, em libras e capacitar profissionais para prestar assistência de modo que todos sejam igualmente incluídos e acolhidos no sistema de saúde e de proteção social.

Esforços também devem ser dirigidos para que indígenas e quilombolas possam ter valorizada a sua cultura da amamentação e que sejam protegidos da exposição a produtos ultraprocessados; para que a população periférica ou que residam em regiões de difícil acesso, mães solo e mulheres trabalhadoras na economia informal e desprotegidas das leis trabalhistas e da licença-maternidade (em sua maioria mulheres negras) possam também terem respeitados seus direitos à amamentação e à alimentação adequada.

Os desafios são grandes e precisarão de esforços coletivos para permear a todos sem distinção. Entre eles, o acesso a informação e às recomendações de alimentação saudável na primeira infância é parte da solução.

É nesse contexto que a plataforma de ensino à distância do Sesc São Paulo oferece o curso digital gratuito “Construindo o futuro: introdução alimentar para crianças até dois anos de idade”. O curso apresenta conhecimentos de nutrição infantil para promover crescimento, desenvolvimento e saúde ótimos da criança, desde a infância e ao longo de toda sua vida. O conteúdo é pautado em estudos científicos e recomendações oficiais nacionais e internacionais e é dividido didaticamente em seis videoaulas, cada uma respondendo a um fundamento básico da alimentação saudável infantil. Com profundo respeito às crianças, convido a todos que conheçam mais sobre esse assunto que, além de salvar vidas, contribui para um futuro mais saudável e próspero para todos.


Rachel Francischi é nutricionista há 25 anos, formada pela Universidade de São Paulo (USP) e possui mestrado pela Unicamp. Foi nutricionista das Nações Unidas (ONU) para América Latina e Caribe no Programa Mundial de Alimentos entre 2007 e 2012. Neste período, realizou assessoria técnica e missões humanitárias a países como Haiti, Peru, Guatemala e até mesmo Brasil em nutrição materno-infantil, aleitamento materno, micronutrientes e políticas públicas nessas áreas. Autora do livro “Vegetarianismo e veganismo em nutrição materno-infantil” pela Editora SENAC (2023). Rachel é pesquisadora e professora convidada no Brasil e exterior em cursos de graduação e pós-graduação para nutricionistas, pediatras e profissionais da saúde, como a Faculdade de Medicina da USP, a Faculdade de Saúde Pública da USP, o Instituto Nutrição Comportamental, a Universidad de Chile, Universidad de Panamá, entre outras instituições. Atualmente atende adultos e crianças de todas as idades. Seus consultórios na cidade de São Paulo são espaços de atendimento humanizado em saúde materno-infantil e nutrição e bem-estar. Realiza regularmente Oficinas de Alimentação para famílias, pediatras e profissionais da área. É mãe do Lucas e do Tiago, pratica yoga, meditação e adora comer bem.

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