TRAVESSIAS DE UM CAMINHANTE | A trajetória de Danilo Santos de Miranda (1943-2023)

28/11/2023

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ILUSTRAÇÃO: BRUNO CORRENTE


A incansável jornada que fez de Danilo Santos de Miranda um dos alicerces da cultura no país  

Por Manuela Ferreira

Colaborou Adriana Reis Paulics

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Quando ainda era um jovem seminarista, o filósofo e sociólogo Danilo Santos de Miranda (1943-2023) viveu uma experiência reveladora, que trouxe solidez aos seus passos e maior clareza frente ao propósito de compreender o seu entorno. No período das chamadas “provações” do noviciado na Companhia de Jesus, entre estudos, práticas espirituais e serviços à comunidade, ele realizou uma peregrinação, momento obrigatório para os candidatos ao sacerdócio. A jornada foi solitária: após longas horas a pé, atravessando cidades, no interior de São Paulo, fazia intervalos para pedir água, comida ou um abrigo para o descanso noturno. Estas eram formas de experimentar, na prática, o conceito cristão de “confiança na Providência”. Andando do nascer ao pôr do sol, ele pôde refletir sobre sua real vocação. No final do percurso, já não era o mesmo, e a renúncia ao seminário veio pouco tempo depois, assim que concluiu sua formação em filosofia.

Com aquela mudança de rota, Miranda também predeterminou a estrada que trilharia dali em diante. Tinha 25 anos e trabalhava como professor quando leu no jornal sobre a abertura do processo de seleção para o Serviço Social do Comércio de São Paulo. Começava, assim, uma outra travessia, duradoura, firme, grandiosa e inestimável. Foram 55 anos de dedicação ao Sesc, sendo quatro décadas como diretor regional da instituição. Uma caminhada que primou pela defesa da cultura e da educação como elementos vitais para o desenvolvimento humano, que inseriu a diversidade como o cerne da promoção da cidadania e do bem-estar dos indivíduos, e que mudaria os paradigmas sobre políticas públicas de incentivo à cultura no Brasil.

“Danilo tinha, desde a juventude, o desejo de olhar o todo, a perfeição como valor, como seu ideal, e trazia consigo a filosofia de que ninguém se salva sozinho”, revela o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Fernando José de Almeida. Os laços de amizade, iniciados na infância, permitiram a Almeida testemunhar, de perto, o caminhar do amigo-irmão de toda a vida. Os sólidos pilares humanistas, o grande apreço pelos pensadores clássicos, a paixão pelo teatro, o gosto reservado ao futebol e o amor à família estavam na essência daquele caminhante. “Seu êxito como gestor se deu, muitíssimo, ao brilhantismo das equipes que ele conseguiu formar ao longo desse período. Ele queria terminar sua trajetória no Sesc. E, até o fim, seguia pensando no futuro”, recorda Almeida.

Junto ao presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo, e da Federação do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo do Estado de São Paulo, Abram Szajman, na ocasião dos 50 anos da FecomercioSP. Foto: Acervo Sesc Memórias

Acolhida permanente

Ao iniciar seu itinerário no Sesc, Miranda estava acompanhado pelo sociólogo e economista Luiz Galina. Ambos ingressaram no mesmo processo seletivo e começaram a trabalhar na instituição na mesma data: 1º de novembro de 1968. Atuaram juntos, naquele início, como orientadores sociais no programa das Unidades Móveis de Orientação Social (Unimos), um amplo trabalho de intervenção na capital e nas comunidades do interior paulista, principalmente nas cidades que não dispunham de unidades do Sesc. Nas décadas seguintes, Miranda e Galina formaram uma bem-sucedida parceria, com o economista ocupando as funções de gerente de finanças, superintendente da área administrativa e consultor técnico da diretoria da entidade. No dia 9 de novembro, Luiz Galina foi nomeado o novo diretor do Sesc São Paulo. “Danilo sempre teve um olhar de cuidado com as equipes, com as pessoas. E isso culminou durante a pandemia”, reflete, enaltecendo aquela que é considerada por todos uma das características mais singulares de Miranda: a atenção que reservava às pessoas na prática cotidiana. “Ele tinha uma visão generosa, baseada na confiança e na lealdade. Quem trabalhava com ele se sentia encorajado a experimentar”, recorda Galina. “A agenda de um diretor regional é muito intensa, são muitas responsabilidades, muitas decisões. Mas, quando eu vinha conversar, ele tinha todo o tempo do mundo para me ouvir”, completa.

É o respeito ao outro que permeia, também, as lembranças daqueles que compartilhavam a rotina de trabalho com Miranda na sede administrativa do Sesc, no bairro do Belenzinho, na zona Leste da capital paulista. Em entrevista ao Guia brasileiro de produção cultural, publicado pelas Edições Sesc São Paulo em 2022, Danilo Santos de Miranda refletiu sobre os valores que norteavam sua atuação pública – e que eram, também, a tradução de seu modo de transitar no mundo.

“Os bens materiais sozinhos não fazem a felicidade de ninguém, embora grande parte, senão a maioria da humanidade, imagine que seja assim. Parece que o caráter humanizador da sociedade ficou relegado, mas o que nos torna humanos de fato, o que nos torna diferentes dos outros seres que habitam este planeta, é a cultura, a arte, o conhecimento e a capacidade de, através da análise e percepção das coisas, transformar a realidade e, assim, tornar a vida das pessoas melhor”, disse Miranda.

Aplaudir e agradecer

Nas palavras de despedida dos amigos da classe artística, com a qual Miranda andou sempre lado a lado, o tom é de reverência e gratidão. Inúmeras expressões de afeto vieram na hora da partida – de perto e de longe. “Mas e o Danilo, e nós? Como faremos sem seu olhar? A particularidade daquele olhar, isso perdemos para sempre, o que é muito grave. E a qualidade do abraço? Abraço que dava suporte às nossas angústias perenes”, escreveu a atriz e diretora teatral Bia Lessa, em homenagem publicada no jornal Folha de S. Paulo. Em sua visão, Miranda “moveu o mundo com serenidade e sem armas de fogo”. pontuou a encenadora.

Ariane Mnouchkine foi outro grande nome das artes cênicas que lamentou a ausência de Miranda. Para a intelectual francesa, fundadora e diretora, desde 1964, do Théâtre du Soleil, a ausência de Danilo é uma perda enorme. “É como uma arvore imensa que acabou de ser arrancada e que deixa uma cratera escancarada na nossa floresta. A floresta dos artistas, dos educadores, dos trabalhadores sociais, de todos aqueles que sob seu estandarte trabalhavam a fazer recuar as ignorâncias, as patologias, os racismos, os obscurantismos e a fazer crescer os sentimentos humanos”, escreveu Mnouchkine em depoimento de despedida ao amigo.

Já a cantora e compositora Maria Bethânia definiu Miranda como “um dos maiores incentivadores, se não o maior, da arte brasileira e da cultura nacional”. “Chora o Teatro, chora a Música, chora a Arte brasileira. Todas as reverências a esse grande homem. Todas as palmas para essa figura ímpar na cultura deste país”, registrou a artista em seu perfil no Instagram. O antropólogo e filósofo francês Edgar Morin, com quem compartilhava a busca pela construção de uma política de civilização capaz de renovar o humanismo, também manifestou o afeto pelo amigo de longa data. Por intermédio da socióloga Sabah Abouessalam-Morin, sua esposa, o francês expressou a profunda gratidão pela influência de Miranda na difusão de sua obra no Brasil.

Em editorial, o jornal O Estado de S. Paulo sintetizou o papel de Miranda na estruturação de espaços plurais para a ação cultural – e como mantenedor sério de um patrimônio que ficará para sempre. “Ele teve a sensibilidade e a inteligência de perceber, desde muito cedo, que a construção de um país democrático, justo e desenvolvido está umbilicalmente ligada ao desenvolvimento individual de seus cidadãos por meio da educação e da cultura. Muito mais do que somente centros culturais, Danilo expandiu as unidades do Sesc São Paulo como verdadeiros centros cívicos, espaços de cidadania e de convivência, nos quais os paulistas puderam encontrar de tudo, com a mais alta qualidade, para adquirir conhecimento, fruir a arte em suas múltiplas manifestações e se capacitar cada vez mais para a vida em sociedade”.

Pai de Talita (à esquerda) e Camila Miranda (abaixo), casado com a assistente social Cleo Regina (à direita). Foto: Matheus José Maria

Ao lado do rei do futebol Pelé, no Sesc Pompeia, no lançamento do Dia do Desafio, em 1995. Foto: Acervo Sesc Memórias

Olhar além

Pai de Camila e Talita Miranda, casado com a assistente social Cleo Regina e avô de quatro netos, Danilo Santos de Miranda recebeu diversos reconhecimentos e honrarias em sua jornada, enquanto figura pública – a exemplo da medalha de Ordem do Mérito Cultural, do governo brasileiro, e a Ordem do Infante Dom Henrique, condecoração da presidência de Portugal. Para Talita Miranda, entretanto, a percepção da dimensão do trabalho do pai ficou evidente somente em 2003, na comemoração dos 60 anos do gestor. Na ocasião, retornando ao Brasil depois de anos vivendo nos Estados Unidos, ela se surpreendeu com a quantidade de amigos na solenidade – seja pelos nomes famosos, como do músico Paulo Moura (1932-2010) e da atriz Eva Wilma (1933-2021), seja pelos inúmeros colegas de trabalho que abraçavam seu pai.

“O sociólogo, o pensador e o humanista são inerentes ao pai; ele não foi outra figura dentro de casa. Vejo meu pai como uma árvore, que criou raízes profundas e que, agora, está se ramificando”, descreve Talita. Ao celebrar oito décadas de vida, em abril deste ano, Miranda disse, em entrevista à Revista E: “Eu, pessoalmente, tenho o privilégio e a responsabilidade de atuar no nível pessoal e de colaborar no nível institucional para, quem sabe, alcançarmos um futuro menos desigual”. De valores bem definidos, e ético, transmitiu às filhas fundamentos nos quais o humano se sobrepunha ao material.

“Das idas, nos tempos de criança, ao Sesc Bertioga, no litoral paulista, ficaram as lembranças das árvores
que nossa família plantou na área de vegetação densa que
circunda a unidade”, recorda Talita. De tempos recentes, ela lembra as últimas leituras de um devoto dos livros: Escravidão (2019-2022), de Laurentino Gomes; Exercícios de Perplexidade (2023) de Mauro Maldonato, Antologia Poética (1962), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), e Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior. Obras de Valter Hugo Mãe, Nélida Piñon (1937-2022), João Guimarães Rosa (1908-1967) e João Pinto Coelho estavam na lista de futuras leituras.

A Serra da Bocaina, na divisa de São Paulo com Rio de Janeiro, seu estado natal, era o refúgio onde Miranda encontrava serenidade e descanso do trabalho. Um destino que o inspirava, segundo Talita. No silêncio do terreno cercado de verde, na vastidão da natureza de beleza ímpar, Miranda construiu uma casa no topo de montanha, para onde peregrinava nas férias, cercado de afetos. Um breve respiro para quem, sem nunca parar de caminhar, pavimentou estradas, construindo seu próprio caminho.

Apaixonado pela literatura, Danilo Miranda fez da sua vida os versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino/ se hace camino al andar” (Caminhante, não há caminho/ o caminho se faz no andar). Foto: Matheus José Maria

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