Três contos de Janaina Tokitaka

30/09/2024

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Leia textos inéditos da escritora e roteirista, dedicados a crianças, jovens e mulheres de meia idade

TEXTOS E ILUSTRAÇÕES POR JANAINA TOKITAKA

Leia a edição de OUTUBRO/24 da Revista E na íntegra

O PORCO FRAMBOESA
UM CONTO DE FADA PARA CRIANÇAS

Havia muitos anos atrás um porco que nasceu com perfume de framboesa. Não havia quem não elogiasse muitíssimo o odor natural do bicho que exalava perfume de frutas vermelhas de sua pele cor de rosa.

Pois bem, havia também, naquele mesmo reino, uma princesa cujo sonho era ter um porco de estimação. Seus pais, o Rei e a Rainha, impuseram, porém, uma única condição: o animal tinha que ser limpo e cheiroso para não emporcalhar os salões branquinhos e os pisos de mármore do palácio.

O porco framboesa, que era um porco selvagem, ouviu esse rumor que começou na cidade e foi se propagando até chegar no meio da floresta. Imediatamente, pôs-se a marchar para o tal do palácio, afinal, aquela vaga só podia ser dele.

O castelo era a quilômetros dali, longe, bem longe, quase em outra cidade. Fazia tempo que não chovia e o pó das estradas de terra foi grudando nos seus pelos cor de rosa. Estava um calor danado e cada passo dado com firmeza na direção do castelo alimentava o chulé dos cascos do porco framboesa.

Depois de muito caminhar, finalmente o porco chegou ao castelo. Sem papas na língua, já chegou se autoproclamando a solução para todos os problemas. Afinal, ele era O Porco Framboesa! Um porco perfumado e limpíssimo.

A princesa, emocionada, bateu palmas e correu na direção do visitante, pronta para abraçar aquele milagre, mas… A verdade é que o bicho fedia tal e qual qualquer porquinho normal. O Rei e a Rainha se prepararam para expulsar aquele animal sujo e mentiroso do palácio real, mas a princesa, aos prantos, disse que podia provar que aquele era um porco framboesa sim!

Com esforço, carregou o porco no colo até o banheiro real. Lá, encheu a banheira de porcelana de água morna e deu um banho de espuma no porco. Passou hidratante nos pés do bicho e talco atrás de suas orelhas. Depois disso, a Rainha deu uma boa fungada no pelo cor de rosa e teve que concordar que aquele porco era Framboesa, sim.

E assim, todos os dias, a princesa continuou dando banho de espuma, lavando os pelos do porquinho com sabonete de lavanda e shampoo. E assim, eles continuaram juntos e perfumados para todo o sempre. Afinal, aquele era sem dúvida alguma o Porco Framboesa. Ou não era?

ROUPA DE SAIR
UM CONTO DE FADA PARA JOVENS

Dizem que nos mares escuros e agitados vive a Selkie, um ser híbrido de duas peles.

Quando a Selkie sente vontade de entrar em farmácias de luz azulada, passar os dedos despreocupadamente por infinitos vidrinhos de esmaltes, dançar usando sandálias que machucam a pele fina de seus pés ou beber aquele líquido ultradoce, gasoso e escuro de dentro de um cilindro de metal vermelho, ela abandona sua pele de foca nas rochas da praia e anda por aí como uma mulher de cabelos pretos e compridos.

Conta-se que certa vez uma Selkie se casou com um pescador e passou cinquenta anos a seu lado. Certa manhã, acordou, vestiu sua pele de foca e voltou para o mar.

Dizem também que Oyá, a orixá, mulher búfala, casou-se com Ogum, foi feliz no casamento, teve muitos filhos e depois retornou ao estado animal quando reencontrou sua verdadeira pele, deixando aquela casa para trás.

Minha mãe tinha uma jaqueta de couro vermelha guardada na parte de baixo do armário, dentro de uma sacola de supermercado, amarrada com três nós bem apertados. Eu descobri aquele segredo brincando de esconder com minha irmã mais nova. Ignorei os nós e rasguei o plástico fino com toda a força dos meus dedos pequenos. No escuro, com o queixo apoiado nos joelhos, desdobrei a peça de roupa mais bonita que já tinha visto na vida: tão linda quanto as roupinhas das bonecas de plástico da minha irmã. Aproximei ela do meu nariz: tinha cheiro de mofo, suor, desodorante e maresia. Sem pensar, vesti a jaqueta em cima do meu moletom manchado de groselha. Imediatamente, espirrei: o barulho denunciou meu esconderijo. Minha mãe abriu a porta, mandou eu tirar a jaqueta e me deu uma bronca. Aquilo não era fantasia, não era de brincar.

Mas se não era de brincar, para que aquela cor toda, as franjas, o forro estampado? Perguntei porque ela não usava aquela jaqueta todos os dias. Ela respondeu que aquela não era uma jaqueta para ir ao supermercado ou buscar criança na escola. Era roupa de sair.

A frase ficou na minha cabeça. Roupa de sair: o contrário de roupa de ficar.

Imaginei minha mãe vestindo aquela jaqueta e indo embora, no meio da noite, muitas e muitas vezes, depois das nossas trocas de gritos de todos os dias. Cheguei a sonhar com a cena: às vezes ela deixava um bilhete na porta da geladeira. Outras, uma mensagem de voz no celular. Muitas vezes, nada. Eu assistia televisão com minha irmã no sofá da sala, ouvindo as vozes dos personagens se misturando ao barulho da minha mãe lavando louça ou andando de um lado para o outro no quarto, monitorando sua presença.

Minha mãe nunca saiu daquela casa. Nós saímos, eu e minha irmã, ela aos poucos, uma escova de dentes e par de chinelos por vez, eu de repente, no meio da noite, depois da última de nossas brigas. Estava muito frio. Espirrei. Minha mãe acordou, pegou a sacola de supermercado e me deu: “Toma, Gabriel. Tá gelado lá fora. Não me serve mais.” Vesti aquela jaqueta vermelha com franjas, que me serviu como uma segunda pele: Minha roupa de sair.

DESEJOS
UM CONTO DE FADA PARA MULHERES DE MEIA IDADE

“Ah, não lhe dê ouvidos.” disse a fada de meia idade, cutucando um gato gordo com a varinha de condão. “Uma fada madrinha de verdade não concede desejos a homens, querida.”

O gato pulou na barriga da fada, amassando o tecido da saia com as patas, como quem sova uma massa de pão.

“Homens não sabem desejar. Sempre pedem a mesma coisa: tudo!” ela continuou, gargalhando ao final da frase. “Só os muito, muito pobres não são completos egoístas, filhinha.”

A fada jovem piscou seus olhos redondos, sem olheiras nem rugas.

“Mas… Esse moço…”

“Menina, escute bem. Ou ele quer todo o ouro do mundo ou a mais bela princesa, o que quer dizer que deseja reinar, na verdade. Não, não, não, não.”

“Cinderela também queria um príncipe!” a fada jovem retrucou, irritada.

“Cinderela queria era parar de esfregar aquele chão imundo e não ter que alvejar as roupas de baixo das irmãs todo santo dia. Mulheres são mais razoáveis.” A fada continuou, arrepiando o pelo do gato com os dedos. “O que elas querem? Uma criança, não morrerem devoradas, salvar os irmãos da morte, ou, como a pobre Pele de Asno, só imploram pelo amor de deus para não terem de ser obrigadas a casar com o próprio pai.” O gato espreguiçou-se e levantou do colo da fada, pulando para o chão. “Já os homens, vamos lá. Querem que tudo que toquem vire ouro!” ela continuou, abanando as mãos. “Dê três desejos a um homem e ele desperdiçará os três. Não vale a pena, querida.”

A fada jovem fez um bico, levantou da cadeira, sacudiu os cabelos e saiu, batendo a porta, sem dizer nada. O gato miou.

“Ah, gato, cedo ou tarde ela vai perceber”, a fada mais velha disse, arrumando os óculos. “No fundo ela tem bom senso. Todas elas têm”.

Janaina Tokitaka é escritora, ilustradora e roteirista formada pela ECA/USP. Dois milhões de exemplares de seus livros foram distribuídos pelo programa Itaú Social em todo o território brasileiro. Foi finalista do Prêmio Jabuti, recebeu o Prêmio Cátedra Unesco de Literatura e suas obras compõem o catálogo do clube ONU de leitura. Especialista em contos de fada, já publicou títulos pela Companhia das Letrinhas, também ilustrou e traduziu o livro Contos de fada japoneses (Todavia), lançado neste ano.

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