Por Augusto Cesar Mauricio Borges*
Os últimos dados de desempenho sobre o setor de turismo no Brasil revelaram que o país vem se recuperando da crise que se abateu no segmento com a pandemia da Covid-19 nos anos 2020-2022.
Segundo a ABRACORP, Associação Brasileira de Agências de Viagens Corporativas, o setor alcançou faturamento total de R$ 869 milhões no mês de março de 2022. O sucesso se deve a fatores como o fim das restrições devido à Covid, ao avanço da vacinação e ao retorno de viagens corporativas e de grandes eventos presenciais. Levantamento da Associação Brasileira de Agências de Viagens expõe o otimismo dos operadores de Turismo que, em 2021, atingiu faturamento 37% superior ao de 2020 (R$ 19,2 bilhões). Nos três primeiros meses de 2022, os deslocamentos domésticos puxaram a retomada e tiveram em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Gramado, Fortaleza, Maceió, Porto de Galinhas e Salvador os principais destinos.
Paralelamente ao Turismo já tradicional, o Brasil vem se destacando nos últimos anos com a eclosão do “turismo negro”, isto é, o surgimento de guias com serviços especializados em passeios que promovem idas culturais em locais de memória, bem como a exploração de lugares e de patrimônios culturais de povos historicamente discriminados.
Lotados principalmente em capitais como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, agências e guias particulares têm desenvolvido trabalhos cujo objetivo é valorizar, conhecer, explorar e divulgar espaços de cultura negra e indígena, ao mesmo tempo em que desenvolve mecanismos de criação de renda para trabalhadores locais que empreendem no setor, que busca ampliar serviços para turistas que pretendem romper com a ideia de passeios ultra convencionais. No caso de Guarulhos, produtores culturais e entidades como, por exemplo, a AAPAH, Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico de Guarulhos, tem exercido papel relevante no sentido de agenciar tours e passeios guiados pela cidade, destacando o patrimônio material e imaterial do município. A Casa da Candinha (região do Bonsucesso), a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (no Centro) e a casa Ilê Maroketu Axé Oya Ati Osun, um dos primeiros terreiros de Candomblé do Estado de São Paulo, localizado no bairro do Fortaleza, Guarulhos-SP, são lugares de memória extremamente importantes de subsídio às narrativas negras da cidade.
Porém, o desafio se dá para além da luta da manutenção dos espaços já existentes, já que se faz necessário também, e em paralelo, descobrir topografias novas; daí a relevância da História Oral como dispositivo para trilhar, tecer, desenvolver e descobrir novas narrativas que estão difusas no meio urbano.
Sob o apelo da História Oral, se faz premente então trazer à tona a história do Sr. Cristiano de Jesus e Dona Maria do Carmo, publicada em 2010 no livro Cecap Guarulhos, histórias identidades e memórias. (Org. GUERRA, Tiago Cavalcanti)
Nascido em 1930 em Minas Gerais, chegou na cidade com apenas dois anos de idade. Residiu desde então às margens do Rio Baquirivú, mais especificamente onde hoje é o Hotel Marriot, na região do Cecap, a poucos quilômetros do SESC Guarulhos. Sua mãe trabalhou na Base Aérea como lavadeira, enquanto o pai, “faz-tudo”, atuou com “cortes de estradas”, desbastando árvores e carpindo o mato para construir a Rodovia Dutra. Seu Cristiano e dona Maria do Carmo foram desapropriados inúmeras vezes de onde moravam: o desterro inicial chegou em função da construção dos edifícios do Cecap e culminou com a exigência da construção do fórum de Guarulhos, na mesma região, e que nunca foi construído. Nas memórias, o casal relatou os saberes da terra, o modo de vida simples, as mudanças urbanas, assim como falaram da pesca e da agricultura no Baquirivú, das flores amarelas de jacarandá que circundavam o Cecap (toda extensão da atual avenida Monteiro Lobato, até Cumbica), do matadouro no Macedo, da caça de tatus e de preás nas águas do rio que ainda serpenteava as ruas de terra do bairro (“retou”, disse Cristiano durante entrevista, fazendo alusão ao “progresso” urbano de Guarulhos, que deixou o rio retilíneo).
Negros, o casal Cristiano e Maria são entidades puras de uma herança colonial escravocrata à brasileira. Ambos são resultado de históricas desterritorializações e frutos de significantes socioeconômicos cuja tônica é a ruptura, ao invés da continuidade. Os dois representam o descontínuo e a não permanência na terra, da repetida mania de serem obrigados a improvisar a subsistência e do eterno papel social de serem apenas joguetes nas mãos de interesses econômicos predatórios. Seus respectivos “lugares de memória”, patrimônio, identidades e narrativas não foram encapsulados pela narrativa oficial da cidade, tampouco seus locais de passeios, lazer e descanso foram ressignificados pelo turismo consagrado. A história de Seu Cristiano e Dona Maria do Carmo são eivadas pela diáspora africana, que faz lembrar da personagem da autora Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio.
Negra Ponciá é neta do avô Vicêncio que, quando escravizado, durante um momento de surto e indignação contra sua condição, vê-se diante da oportunidade de livrar sua família do trabalho compulsório e mata a esposa e logo em seguida tenta, sem êxito, o suicídio ao mutilar-se, tornando-se aleijado de um dos braços. Inválido para seguir sendo “escravo”, avô Vicêncio torna-se louco. O filho que ainda lhe restou, já livre pela abolição, é agora o único Vicêncio sobrevivente. Sem condições de trabalho, foi obrigado a laborar como assalariado na fazenda do próprio ex-senhor de escravo do pai, longe do único e pequeno pedaço de terra que sobrou para a família; não proprietária da terra. Pai Vicêncio morre após anos de dedicação. Depois da morte do pai, restando-lhe apenas a mãe e irmãos, Ponciá Vicêncio sai do meio rural e torna-se mais uma retirante que vai para a cidade em busca de uma vida melhor. No entanto, torna-se doméstica e amarga uma vida dura com o marido abusivo e violento na favela, fazendo com que o ciclo e a combinação entre desterro, miséria, êxodo e diáspora permaneçam vivos. Sua única herança é o nome Vicêncio: nome que a família, toda negra, herdara do senhor de escravo desde a época de seu avô.
Seu Cristiano e Dona Maria do Carmo têm a mesma herança da escravidão pela qual passara qualquer família negra em Guarulhos. A herança do desterro e da improvisação no modo de sobreviver e ganhar a vida. Em vários momentos da entrevista o casal aludira aos “japoneses”, vizinhos agricultores da época em que moravam na região das “Sete Pontes”, atual Cecap.
Em meio a tantas desapropriações, enquanto os japoneses se mudavam da região assediada pelo mercado imobiliário e migravam de Guarulhos para cidades como Mogi das Cruzes, por exemplo, a fim de seguir com a cultura hortifrutigranjeira, Cristiano e Maria permaneciam até onde dava nas terras em que moraram desde idos de 1930. Antes, em 1850, a Lei de Terras impedira negros e negras de comprarem lotes. Não por acaso, a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico negreiro, foi assinada por Dom Pedro II momentos antes da assinatura da Lei de Terras; o que significa dizer que, além de alijados da propriedade, negros serviram de mão-de-obra livre, abundante e barata para o latifúndio oriundo da própria Lei de Terras, que permitiu ter a zona rural dividida em latifúndios e não em pequenas propriedades. Já pelos idos de 1900, ideias eugenistas e racistas que vieram à baila no Brasil ensejaram tentativas de “branquear” o país: uma das políticas de branqueamento consistiu exatamente na concessão de benefícios a colonos estrangeiros (italianos, japoneses, entre outros) em detrimento do negro, agora liberto pela Abolição. Este elemento explica o porquê da propriedade de japoneses no entorno do Cecap, Bonsucesso e Jardim Santa Emília, cuja existência de granjas e hortas colonizadas por orientais surgiram em grande número neste período, ao passo que Seu Cristiano e Dona Maria do Carmo não tinham, segundo eles mesmos citaram durante entrevista, o selo de propriedade da terra, o que os fez serem expulsos mais de uma vez do mesmo lugar. A casa de pau a pique em que residiam, lar feito de barro, da terra, é a antítese e a causa primordial do desterro causado e provocado pela paisagem feita de concreto da cidade, pelo progresso material do município, pela construção do patrimônio edificado, com ferro e cimento, típico de sociedades industriais eurocentradas e desenvolvidas sob a égide do capital. Neste aspecto, pode-se afirmar que há sim, a despeito da conjuntura contrária demonstrada, lugares de memória e de patrimônio – e por que não de turismo – que podem ser descortinados a partir da própria desconstrução da ideia de que este tipo de narrativas e de lugares de memórias devam ser sempre, por excelência, patrimônio erigido, e não o patrimônio imaterial, simbólico, cultural. Em muitos contextos, turismo, memória e narrativas negras são representados em lugares feitos para os negros, e não pelos negros. É o caso da existência do chamado “lugar de memória difícil”, em que o turismo e memórias estão em locais cujas lembranças são tristes ou traumáticas (pelourinhos, antigas senzalas, cemitérios de escravizados etc). Lugar de memória difícil devem ser preservados e explorados a fim de que a lembrança constante do luto e da morte permaneçam vivas para que, paradoxalmente, evitemos que o triste passado se repita. Por outro lado, os lugares de memórias e identidades feitos pelos negros, e para os negros, podem ocupar seu devido lugar a partir do uso da História Oral que, sem precisar de subterfúgios e ferramentas materiais, documentais-físicas e concretas, podem atingir o objetivo de trazer para a superfície uma série de identidades, de memórias e de lugares que o documento oficial ignora: são os jacarandás amarelos, os preás do rio Baquirivú e o ocaso de paisagens rurais que não resistiram ao assédio imobiliário das grandes cidades, entre elas, Guarulhos. É, portanto, através da História Oral que se pode des-esconder uma série de locais, outrora escondidos e negados, formatando, deste modo, novos itinerários de exploração cultural e de desenvolvendo do turismo regional. Por último, é necessário o abandono de uma ideia de cultura idílica e pura, romantizada, temperada de padrões e de referências externas pré-concebidas e preconceituosas. A diáspora traz consigo uma cultura impura, “suja”, cheia de rebarbas, incongruências, relações ressignificadas em meio às necessidades que surgem a partir da contingência histórica de sujeitos que se reinventam a cada fratura, seja ela de ordem econômica ou simbólica. O colonialismo, o navio negreiro e o comércio triangular entre Europa, África e Américas, que se alicerçaram sob o fundamento do desterro e do deslocamento compulsório, impuseram esta nova dinâmica.
o navio [negreiro] tornou-se senão o viveiro de rebeldes, o ponto de encontro onde várias tradições se apinhavam numa estufa de internacionalismo. […] Seu madeirame concentrava todas as contradições do antagonismo social. O Imperialismo era a madeira principal. […] Forçado pela magnitude de seu próprio esforço de juntar massas heterogêneas de homens e mulheres a bordo de navios para enfrentar uma viagem mortal com destino cruel, o imperialismo europeu também criou as condições para a circulação da experiência dentro das grandes massas de mão-de-obra que pusera em movimento. (Linebaugh, p.163-164)
Cada unidade social presente no navio criou redes de solidariedade a fim de sobreviver e resistir a ponto de remodelar e produzir sua própria existência dentro de uma perspectiva de mundo que deixa o nacional de lado e passa a ser integral; transatlântica. Á respeito desta turba heterogênea, Paul Gilroy diz que
é particularmente significativo que eles tenham circulado para lá e para cá entre nações, cruzando fronteiras em máquinas modernas que eram em si mesmas microssistemas de hibridez linguística e política. Sua relação com o mar pode mostrar-se importante tanto para a política como para a poética do mundo atlântico negro, que desejo contrapor aos nacionalismos estreitos. (Gilroy, p. 52)
A este sujeito em trânsito pelo Atlântico Homi Bhabha os denomina de “sujeito hifenado” pela diáspora. Ele é um sujeito desterrado e sem lugar, mas que ao mesmo tempo absorveu e englobou para si todos os lugares. O jamaicano Stuart Hall, outro intelectual da Diáspora, descreve bem este ente ao narrar uma autodenominação identitária de um jovem de Trinidad, Steve Ouditt, que se descrevia como “um artista do sexo masculino, creole caribenho trinidadiano indiano cristão de educação anglo-americana pós-independência”. (Hall, p. 42) A passagem faz lembrar a hifenização de Seu Cristiano, mineiro-negro-paulista-católico-agricultor-pedreiro-caçador-aposentado.
Deste modo, o mundo atlântico xilogravou, no contexto da diáspora, do colonialismo, do imperialismo e das formas elaboradas de resistência uma cultura “inacabada”; o que faz Stuart Hall afirmar que a “cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. (Hall, p. 43). Para as culturas “híbridas”, incluindo a cultura brasileira, Hall afirma que:
o hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados como os ‘tradicionais’ e ‘modernos’ como sujeitos plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indicidibilidade. (Hall, p. 71)
A hifenização e o hibridismo são conceitos basilares na construção de novos caminhos de exploração cultural. O abandono de uma cultura única e padronizada, acentuadamente etnocêntrica e que se plasma em termos de um binômio pobre e redutor entre “verdadeiro” ou “falso” devem ser deixadas de lado nesta perspectiva diaspórica. Narrativas negras em meio ao debate de novos roteiros de turismo e patrimônio podem ser materializadas, por exemplo, em fenômenos culturais tipicamente diasporizados, como no caso da Casa do Norte do Mineiro, localizada na Avenida Faria Lima, região do Cocaia, durante a década de 90. Fusionada culturalmente a partir de três regiões do país, ele é o mineiro, que é radicado em Guarulhos, que fazia “comida nordestina” e cujo nome da casa sequer faz alusão ao nordeste, e sim ao norte do Brasil. Uma busca por um sujeito único ou estereotipado do nordeste, de Minas ou de qualquer outra parte será inútil. É deste modo que o funk, o slam, bares e restaurantes espalhados pela periferia da cidade também podem ser patrimônio e roteiros de turismo cujas narrativas imanentes destes sujeitos sejam de fato respeitadas e descobertas através da história oral.
*Graduado em História pela PUC-SP e Mestre em Ciências Sociais. Ex colaborador do Jornal Folha de S.Paulo, escreveu reportagens sobre cotidiano, esporte e política no Canal F5. Entre viagens pelos continentes americano e africano, possui uma série de participações e autoria de livros sobre Urbanismo e História de Guarulhos. Atualmente é editor de uma agência de fotojornalismo em São Paulo-SP.
BIBLIOGRAFIA
(ORGs.) BORGES, Augusto Cesar Mauricio. OMAR, Elmi El Hagi. Signos e Significados em Guarulhos: identidade, urbanização e exclusão. São Paulo: Editora Navegar, 2014.
(ORG.) GUERRA, Tiago Cavalcanti. Cecap Guarulhos: histórias, identidades e memórias. São Paulo: Editora Scortecci, 2010.
BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
GILROY, Paul. O Atlántico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.
HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LINEBAUGH, Peter. A Hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.