“Um diretor deve escrever com a câmera” (Samuel Fuller)
Por Duda Leite
Em 1954, o diretor Samuel Fuller veio ao Brasil a convite de Darryl F. Zanuck, o presidente da 20th Century Fox, em busca de locações para seu próximo filme, intitulado Tigrero. Tigrero seria estrelado por John Wayne, Ava Garder e Tyrone Power, e seria filmado na selva amazônica, na região do Rio Araguaia, no estado do Mato Grosso. Fuller veio ao Brasil munido de uma câmera Bell and Howell 16mm, cinquenta caixas de charuto e setenta garrafas de vodca. Chegando no Mato Grosso, Fuller entrou em contato com os indígenas Karajá, ficou fascinado por eles e filmou seus costumes e rituais. Ao voltar a Hollywood, mostrou o material para Zanuck, que chegou a conclusão de que o seguro para trazer atores dessa magnitude para a Amazônia seria alto demais. Como Fuller se negou a filmar em estúdio, o projeto foi abandonado.
Quarenta anos mais tarde, Samuel estava casado com a atriz e produtora alemã Christa Lang Fuller. Christa assistiu às imagens feitas pelo marido e ficou fascinada. Pensou que seria uma pena não as exibir. Durante um jantar em Nova York com os diretores Mika Kaurismaki e Jim Jarmusch, sugeriu que Mika fizesse um documentário trazendo Sam de volta ao Mato Grosso, e exibindo as imagens para os Karajá. Essa foi a origem de Tigrero – O Filme Que Nunca Existiu (1994), que chega agora com exclusividade à plataforma Sesc Digital.
A atriz e produtora Christa Lang Fuller recebeu o jornalista Duda Leite na sua casa nas colinas de Hollywood, via Zoom, para contar mais detalhes dessa aventura, como conheceu Sam, e sua colaboração com os diretores da Nouvelle Vague, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard.
DUDA LEITE – Como você conheceu Samuel Fuller?
CHRISTA LANG – Conheci Sam através de uma amiga chamada Maria Rodriguez. Era uma mulher muito bonita, foi Miss América do Sul, pelo Equador. Maria havia se mudado para a França e era bastante religiosa. Estava em cartaz na época um filme chamado Cuspirei No Teu Túmulo, baseado na obra de Boris Vian. Ela ficou chocada com aquele título, fazia até o sinal da cruz. Após um ano em Paris, já estava bastante francesa. Eu estava na Cinemateca Francesa e assisti a Paixões que Alucinam de Samuel Fuller. E, apesar de já ser amiga da turma dos Cahiers du Cinema – andava com Claude Chabrol e Jean-Luc Godard – nunca tinha ouvido falar em Samuel Fuller. Fiquei muito impressionada com o filme. Um dia, Maria Rodriguez me ligou e disse: “conheci esse diretor, Samuel Fuller. Vou encontrá-lo para um jantar, mas meu inglês não é bom. Você não quer vir comigo?”. Eu aceitei na hora.
DUDA – Como era Sam em relação às mulheres?
CHRISTA – Sam era bastante tímido com as mulheres. Ele teve poucas mulheres na sua vida. Ele era um feminista. Não gostava da forma como as mulheres eram tratadas no cinema. Dá para ver isso nos seus filmes. Ele era um diretor de ação, mas também era um diretor feminista. As mulheres nos seus filmes são sempre fortes. O diretor espanhol Luis Buñuel, por exemplo, adorava O Beijo Amargo e Paixões que Alucinam.
DUDA – Como foi o encontro de Sam com os indígenas Karajá?
CHRISTA – Quando me casei com Sam, nos mudamos para a Califórnia. Em 1945, a mãe de Sam comprou para ele uma câmera 16mm Bell and Howell. E ele me mostrou os filmes que tinha realizado em 1945, durante a guerra, sobre a liberação do campo de concentração de Falkenau, na República Tcheca. Foi o primeiro filme que Sam realizou como diretor. Anos mais tarde, após ele dirigir seu primeiro filme, Sam levou a mesma câmera para a Selva Amazônica, para filmar os índios Karajá. E o filme era maravilhoso. Sam ficou alguns meses com os Karajá, no Mato Grosso, na Amazônia, numa reserva próxima ao Rio Araguaia, que só era possível chegar de barco. Quando vi esse filme em 1967, pensei: “temos que mostrar isso para a National Geographic. E conseguir Orson Welles, que também amava o Brasil, para fazer a narração. E assim faríamos um documentário sobre os Karajá. Eles são um povo maravilhoso e receberam Sam muito bem. Em 1955, Darryl Zanuck, havia comprado os direitos de um livro chamado Tigrero. Era a história de um caçador de onças. Nos anos 1950, graças ao sucesso de filmes como Casablanca e Mogambo, os filmes de aventuras ambientados em locações exóticas estavam na moda. Sam queria filmar Tigrero no Brasil. Só que o estúdio não achou seguro levar os atores que já estavam escolhidos para o elenco, que incluía John Wayne, Ava Gardner e Tyrone Power, para o Brasil. O seguro ficaria alto demais. Vinte anos mais tarde, sugeri que ele voltasse para o Mato Grosso e chamássemos Orson Welles para narrar o documentário. Mas nunca conseguimos dinheiro para esse projeto. Alguns anos mais tarde, estávamos em Nova York com amigos mais jovens de Sam, Jim Jarmusch, Alexandre Rockwell e Mika Kaurismaki. Dei a ideia de voltarmos ao Brasil e mostrarmos as imagens para os Karajá. Mika adorou a ideia e disse que conseguiria levantar os recursos. Ele estava morando no Brasil na época. Seria uma forma dos Karajá verem seus antepassados e quem sabe se reconhecer naquelas imagens.
DUDA – E qual foi sua impressão sobre os Karajá?
CHRISTA – Os Karajá são um povo muito hospitaleiro. Eles vivem a beira do rio, comem peixe. Têm mangueiras e galinhas, são completamente autossuficientes. E suas casas eram limpíssimas. Não existia roubo. Eles sobreviviam com a venda de artesanato. Não queriam viver como os brasileiros. Eles tinham sua própria cultura, que era maravilhosa. São pessoas muito carinhosas. Eles não perguntam qual é a sua religião. Se você é uma boa pessoa, vão te receber muito bem. Os Karajá haviam migrado dos Andes, do Peru. Curiosamente, sua língua lembrava um pouco o japonês.
DUDA – E como foi trabalhar com Mika e a equipe?
CHRISTA – Mika foi ótimo. Ele e sua esposa na época, Pia, que também é finlandesa e cineasta. E Jim Jarmusch foi com sua esposa, Sara Driver. Ela era a continuísta. Portanto, esse filme foi uma ideia minha. É como um filho para mim. Fiz pelo meu amor por Sam e para preservar a cultura Karajá. E o cacique Ataú (que aparece no filme) reconheceu Sam. Eles tinham a mesma idade.
DUDA – Esse reencontro dos dois deve ter sido bastante emocionante.
CHRISTA – Sim, inacreditável. E as crianças são tão lindas. Pia tirou muitas fotos delas. É uma cultura muito respeitosa. Quando Jim diz no filme: “me busquem daqui a 40 anos”, ele estava falando sério. Ficamos muito ligados à eles. Quando exibimos o filme no Festival de Berlim, ganhamos o prêmio da crítica. O público ficou louco com o filme. Eles riam nas horas certas. Sam já havia feito uma grande operação, eu estava preocupada com sua saúde, que já estava se deteriorando. Ele teve um aneurisma de uma artéria em Paris. A viagem para o Brasil era longa, mas eu consultei com os médicos antes. Foi uma alegria para Sam voltar ao Brasil após 40 anos.
DUDA – Sam nunca cogitou a ideia de filmar o filme original em estúdio?
CHRISTA – Quando ele voltou para Hollywood em 1954, a Fox amou o que ele tinha filmado com sua própria câmera, mas o seguro para levar os atores era alto demais. Apenas para Ava Gardner custaria 1 milhão de dólares, naquela época. Eles disseram que era uma locação perigosa. E Sam não queria fazer o filme no estúdio em Los Angeles. Tinha que ser feito em locação. Era por isso que Sam era adorado pelos diretores da Nouvelle Vague. Especialmente por Claude Chabrol e Jean-Luc Godard. Ele começou a filmar nas ruas antes deles.
DUDA – E você já havia trabalhado como atriz com os dois. Você era próxima de Godard? Como foi sua experiência em Alphaville?
CHRISTA – Godard era muito estranho. Ele havia me visto em um filme de Chabrol chamado O Código é: Tigre (1964). E disse: “gostei da atriz que faz a loira burra. Ela é natural. Ela se move como Bernadete Lafond. Tenho um papel para ela no meu próximo filme. Como faço para encontrá-la?”. Então, nos conhecemos e ele me contou a história de Alphaville. Godard estava triste porque Anna Karina estava filmando na Espanha com Maurice Ronet. Ele fez um grande discurso sobre l’amour. Mas essa é uma outra história. Enfim, ele era bem estanho e animado.
DUDA – E com Chabrol? Como foi sua experiência com ele?
CHRISTA – Conheci Chabrol bem antes de Sam. Ele gostava de mim, porque tinha uma cena onde eu precisava estar pelada em uma banheira. Eu era bem tímida, quase chorei. Mas eles colocaram tanto sabão na banheira, que no final não dava para ver nada. Eu era uma principiante, muito jovem e tímida. Chabrol foi muito protetor comigo. Ficamos muito amigos, eu, ele e Stéphane Audran, sua mulher na época. Quando conheci Sam, perguntei para Chabrol: “você já ouviu falar em Samuel Fuller?”. Ele me fez todo um discurso sobre seus filmes. Ele sabia tudo sobre Sam. E Stéphane Audran fez um filme conosco, Dead Pigeon on Beethoven Street, em 1972. Eu sou a pomba morta do título. Quando me casei com Sam, ele me disse: “não se case comigo porque eu só faço filmes de guerra, você provavelmente nunca estará num filme meu. Eu não ligava para isso. Estava trabalhando no meu PHD sobre Samuel Beckett.
DUDA – Mas Samuel apoiava sua carreira como atriz?
CHRISTA – Eu nunca tentei ter uma carreira com atriz, porque era muito difícil ser casada com um diretor e continuar casada. Eu nunca quis ficar pulando de homem em homem. Eu queria ficar casada até que a morte nos separe. E foi o que eu fiz.
DUDA – E como foi o encontro com Jim Jarmusch?
CHRISTA – Ele é uma pessoa maravilhosa. Adoro ele e Sarah Driver. Eles são autênticos. Não tem conversa fiada, sabe? Sam Fuller também era assim. Ele era autêntico. Quando falava com os diretores dos estúdios, ele dizia: “Olá, meu garoto!”. E eu dizia: “esse era Michael Eisner. Você não pode falar: “Olá, meu garoto!”. “Por que não?”. Ele era um iconoclasta. Mesmo quando sua carreira não estava indo tão bem. Ele não se importava. Sam se dava muito bem com Darryl F. Zanuck. Ele amava bons filmes e boas histórias.
DUDA – Sam era próximo de Orson Welles?
CHRISTA – Tanto Orson como Sam eram homens do mundo. E era isso que as pessoas acreditavam que a América deveria ser. Os Estados Unidos são um país de imigrantes. Não deveria haver racismo. Mas entre o que é e o que deveria ser há uma distância muito grande. As coisas evoluem muito devagar. É por isso que a democracia é tão importante. É preciso respeitar as diferenças. Não deveria haver leis. Eventualmente a Terra deveria ser um mundo só. É isso que devemos almejar.
DUDA – O que você aprendeu com a cultura dos Karajá?
CHRISTA – Eles ainda respeitam o sagrado e os mais velhos. Se você perde o respeito pelo seu semelhante, você se torna selvagem, corrupto e propenso ao crime. Precisamos trazer o sagrado e o respeito para nosso coração. Se você respeita o sagrado, não importa qual religião você tem, nem de que cor você é. Aprendi que precisamos respeitar uns aos outros. Eles mostraram uma bondade em relação ao sagrado, que todos deveríamos ter, seja vivendo em Paris, Nova York, Moscou, não importa. Ao mesmo tempo, precisamos ter lucidez sobre como as pessoas funcionam. Eu li Tristes Trópicos de Claude Levy Strauss. Entendi porque as pessoas vivem em harmonia nas reservas. E porque eles não querem adotar a vida na cidade grande. Não deveríamos impor nossa maneira de vida para as outras pessoas.
TIGRERO – O FILME QUE NUNCA EXISTIU
Dir.: Mika Kaurismäki | Brasil, Finlândia | 1994 | 75 min | Documentário | Livre
Em 1993, Samuel Fuller leva Jim Jarmusch em uma viagem ao Brasil, subindo o rio Araguaia até a vila de Santa Isabel do Morro, onde 40 anos antes o famoso produtor Zanuck havia enviado Fuller para explorar uma locação e escrever um roteiro para um filme baseado em um tigrero, um caçador de onças, que seria estrelado por John Wayne.
Assista gratuitamente em sescsp.org.br/cinemaemcasa
Disponível até 20.10.2023
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