Priscila Vieira
Socióloga, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e coordenadora do estudo.
priscilav@cebrap.org.br
Florbela Ribeiro
Antropóloga, pesquisadora do Cebrap e integrante da equipe do estudo.
florbelaribeiro@cebrap.org.br
Juliana Shiraishi
Socióloga, pesquisadora do Cebrap e integrante da equipe do estudo.
juliana.shiraishi@cebrap.org.br
1 Esse artigo apresenta uma síntese dos resultados de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) com financiamento do Itaú Viver Mais (IVM). Para o relatório completo acesse este link.
2 Mulheres passam o dobro do tempo dos homens em jornada dupla, ou seja, conciliando trabalho remunerado com trabalhos domésticos e cuidados com crianças e/ou idosos. (Pnad-c) IBGE, 2019: em média, as mulheres dedicam 21,7 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado para 11 horas dos homens.
3 Segundo dados da pesquisa Cuida-Covid Fiocruz, mais de 70% das cuidadoras familiares realizam tarefas de cuidado todos os dias da semana e 60% têm jornadas de 12 horas ou mais.
4 Também conhecidas como centros dia, podem ser públicas ou particulares. Caracterizam- se por ser um espaço para atender pessoas idosas que possuem limitações para realização das atividades de vida diária (AVD) que convivem com suas famílias, porém não dispõem de atendimento em tempo integral no domicílio. Fonte: https://www.prefeitura. sp.gov.br
Resumo
O aumento da expectativa de vida dos brasileiros tem como uma de suas consequências a intensificação das demandas de cuidado de pessoas idosas. As políticas públicas nacionais do cuidado de pessoas idosas são escassas e a responsabilidade recai quase exclusivamente sobre as famílias, especialmente sobre as mulheres. Contudo, a atividade não é reconhecida como trabalho, o que conduz a uma desvalorização das cuidadoras familiares e a uma invisibilidade dessa função. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa qualitativa exploratória com cuidadoras familiares de pessoas idosas a partir de entrevistas em profundidade realizadas em seus domicílios, localizados na cidade de São Paulo. Os resultados indicam que a responsabilidade do cuidado de um familiar idoso impacta a vida profissional, social e emocional dessas mulheres. A alta demanda de atividades voltadas ao cuidado caracteriza a rotina exaustiva dessas cuidadoras familiares e produz falta de autonomia financeira, dificulta a realização profissional e pessoal e atividades que promovam saúde e bem-estar físico e mental. Via de regra, essa forma de trabalho envolve afeto e é vista como obrigação ou missão. Mas, pela ótica da cidadania, o cuidado de pessoas idosas é uma demanda pública e uma responsabilidade de toda a sociedade. Com efeito, é fundamental avançar na construção de políticas públicas e iniciativas corporativas voltadas às cuidadoras familiares para a construção de uma sociedade que acolhe o envelhecimento e promove igualdade e equidade.
palavras-chave: envelhecimento; cuidado; gênero; pessoas idosas.
Introdução
A população brasileira está vivendo cada vez mais e uma das consequências desse novo padrão de longevidade é a intensificação das demandas de cuidado de pessoas idosas. No Brasil, a responsabilidade por essa forma de trabalho recai quase exclusivamente sobre as famílias. O grupo familiar geralmente atribui a função do cuidado às mulheres² como consequência de uma divisão sexual do trabalho (GUIMARÃES, HIRATA e SUGITA, 2008; HIRATA e KERGOAT, 2007; SORJ, 2008). Muitas delas veem o cuidado familiar como obrigação ou missão (SOUSA et al., 2021), o que envolve questões morais e sentimento de gratidão pela pessoa idosa.
Como cuidadora familiar seu papel é essencial à manutenção da vida da pessoa idosa que demanda cuidado e envolve tarefas vitais como gestão de remédios, higiene pessoal, alimentação, deslocamento e até administração financeira.
Geralmente, o cuidado familiar não é visto como trabalho e sim como uma “ajuda” (GUIMARÃES e VIEIRA, 2020) e é desvalorizado pela família e pela sociedade. A alta demanda do trabalho de cuidado³ dificulta a realização de atividades remuneradas e conduz à falta de autonomia financeira. As limitações de realização profissional e pessoal afetam o bem-estar físico e mental e podem gerar uma carga emocional negativa de obrigação e privação de liberdade (MINAYO e FIGUEIREDO, 2018).
Embora existam algumas iniciativas interessantes em contextos estaduais e municipais, há uma enorme escassez de políticas e serviços públicos para pessoas idosas. Só recentemente o tema começou a ganhar espaço na agenda pública. Destaca-se a criação de um grupo de trabalho interministerial (decreto no 11.460, de 30 de março de 2023), coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pelo Minis- tério das Mulheres para elaborar a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados.
A produção acadêmica sobre o tema do cuidado também vem crescendo nos últimos anos, mas o cuidado exercido no âmbito domiciliar de maneira informal por familiares ainda é pouco investigado. Há dificuldade em quantificar a demanda de cuidado de idosos no Brasil (CAMARANO, 2021), dimensionar o cuidado profissional remunerado (GUIMARÃES e PINHEIRO, 2023) e ainda maior é o desafio de medir o cuidado familiar exercido nos domicílios sem remuneração (MENE- ZES, 2021). Assim, o cuidado familiar é a dimensão mais invisível de um fenômeno já caracterizado pela invisibilidade.
Este artigo apresenta uma síntese dos resultados de uma pesquisa-piloto que buscou identificar os impactos do cuidado de um familiar idoso na vida profissional, social e emocional dessas mulheres. Almeja-se contribuir para a produção acadêmica sobre o tema, qualificar o debate público e sensibilizar a sociedade.
Metodologia
Este é um estudo qualitativo exploratório com mulheres que exercem o trabalho não remunerado do cuidado de um familiar idoso. Em maio de 2023, realizamos entrevistas em profundidade nas residências de 11 cuidadoras familiares residentes no município de São Paulo.
O estudo contemplou uma diversidade de perfis. Das 11 entrevistadas, seis mantinham outra atividade profissional; cinco eram de classe AB e seis eram CD; seis delas tinham entre 18 e 45 anos e cinco tinham mais de 60 anos; cinco entrevistadas eram negras e seis brancas. Além disso, quatro cuidavam de pessoas idosas que apresentavam algum tipo de deficiência física e/ou cognitiva. Os nomes foram preservados e as entrevistadas serão referidas por números, de acordo com a ordem de realização das entrevistas.
O roteiro de entrevistas investigou aspectos sobre a cuidadora, a pessoa cuidada e sua família, buscando diferentes ângulos da experiência do cuidado. Buscamos entender:
• Rotina e atividades desempenhadas;
• Arranjos financeiros que viabilizam o cuidado;
• Existência e composição de uma rede de apoio;
• Possibilidade de conciliar o cuidado com outras atividades pessoais e profissionais; Impactos emocionais;
• Conhecimento e acesso a serviços e equipamentos públicos voltados ao cuidado da pessoa idosa.
As visitas domiciliares permitiram a realização de observações et- nográficas que complementaram informações sobre a casa, a dinâmica familiar e os aspectos da rotina de cuidado e trabalho remunerado, além da relação entre cuidadoras e familiares idosos.
Resultados
Este tópico sistematiza os principais achados da pesquisa através da análise do material qualitativo.
O primeiro eixo de investigação do estudo analisou as trajetórias das cuidadoras e de suas famílias, buscando entender os caminhos e as decisões que as levaram a assumir o cuidado de um parente idoso. As entrevistadas são mulheres de locais variados da cidade de São Paulo, com histórias familiares e situações financeiras diversas, mas que compartilham desafios comuns em torno do cuidado, que vão desde a rotina até problemas físicos e emocionais. Vejamos algumas dessas trajetórias.
“Eu sempre soube que ia cuidar da minha mãe.” Assim a primeira entrevistada expressou a consciência de que seria responsável pelo cuidado da mãe, refletindo a expectativa social de que o gênero feminino assuma esse papel, já que ela é a única mulher entre os irmãos. Sua rotina é inteiramente dedicada ao cuidado, seja da mãe idosa, que sofre de demência senil, seja de seus filhos. A rápida progressão da doença não permitiu um planejamento para lidar com as crescentes demandas de cuidado. Ela abraçou o papel de cuidadora em tempo integral, rejeitando alternativas fora da família. Essa escolha é motivada não apenas por questões financeiras, mas também por laços afetivos e um senso de obrigação familiar.
Se existir uma mulher na jogada é ela que vai assumir esse tipo de cuidado. Infelizmente não é uma coisa dividida, isso não é perguntado, não te dão chance nem de você falar nada. É uma coisa que já fica estabelecida, [se] você tem pai e mãe que necessitam de cuidados, é a filha que vai assumir. Isso é reflexo da nossa sociedade machista (cuidadora 1).
Algumas das cuidadoras entrevistadas, como a citada acima, demonstram um vínculo afetivo muito forte com a mãe e entendem o cuidado da familiar idosa como missão de vida. Outra entrevistada (60 anos) também tem irmãos, mas assumiu a tarefa de cuidar integralmente de sua mãe de 92 anos. Ela afirma que houve uma inversão de papéis: “Agora eu sou a mãe e ela é minha filhinha. Eu cuido com todo o amor do mundo, ela merece. É minha rainha. Ela cuidou tanto de mim, agora é minha vez”. Apesar de lamentar a ausência dos irmãos no cuidado e de se sentir constantemente cansada, outra cuidadora (62 anos) acredita que cumpre sua obrigação, pois sua mãe cuidou de suas filhas enquanto ela trabalhava fora. A mãe sempre foi dona de casa, cuidou dos filhos, netos e marido quando o Alzheimer chegou. O cuidado sempre foi central em sua vida e, aos 84 anos, ela que precisa de cuidados. A filha se sente em dívida e cumpre sua obrigação.
É minha responsabilidade. Porque ela é minha mãe, me ajudou muito a minha vida inteira, sempre foi uma pessoa presente em todos os momentos. Ela levava minhas filhas ao médico, porque eu tinha que trabalhar, então eu devo muito a ela. Muito carinhosa com as minhas filhas, muito preocupada sempre. Jamais vou deixar, é minha responsabilidade (cuidadora 11).
A pesquisa identificou que o cuidado da pessoa idosa fica centralizado em uma figura, a cuidadora principal, e é recorrente a falta de suporte consistente do grupo familiar nessa tarefa. É o caso de uma entrevistada de 39 anos que planejava dividir os cuidados dos pais com outros familiares, mas acabou assumindo toda a responsabilidade e deixando seu emprego por não conseguir conciliar as atividades. A única pessoa que lhe ajuda esporadicamente é a sobrinha. A família atribuiu a ela esse papel por ser solteira e não ter filhos. Ela também acredita que é sua obrigação por morar com os pais idosos e ter forte vínculo afetivo com eles.
A pesquisa identificou casos de netas que cuidam de suas avós sem esse vínculo afetivo tão forte, já que não tiveram tanta convivência ao longo da vida. Contudo, elas precisaram ajudar suas mães idosas que não conseguiam mais exercer papéis de cuidadoras das avós. Nesses casos, são mulheres jovens que deixaram estudo e mercado de trabalho e assumiram o papel de cuidadoras de suas avós por falta de outra solução. Assim, percebe-se que as filhas se sentem responsáveis pela mãe, seja ela pessoa cuidada ou cuidadora. Uma das entrevistadas (33 anos) cuida em tempo integral de sua avó de 86 anos, pois a mãe não consegue mais executar as atividades. Começou como um arranjo temporário que se tornou permanente. Ela se sente sobrecarregada e isolada, lamentando a falta de apoio da família e a perda de sua própria liberdade e vida pessoal.
As trajetórias dessa e de outras participantes do estudo revelam a percepção equivocada de que o cuidado da pessoa idosa seria temporário, mas torna-se uma sobrecarga permanente e crescente. A falta de planejamento para lidar com as demandas do envelhecimento leva a soluções improvisadas na hora de uma emergência. Via de regra, a solução mais fácil é atribuir a responsabilidade às mulheres desempregadas, em trabalhos flexíveis e/ou com forte vínculo afetivo com a pessoa idosa, que sinta uma obrigação moral de retribuir cuidados. A decisão de cuidar no seio familiar se dá pela falta de planejamento e ausência de políticas públicas, sendo fortemente influenciada por ele- mentos subjetivos – como proximidade, vínculo e confiança – e morais – como obrigação e missão.
O segundo eixo de análise da pesquisa buscou compreender a rotina do cuidado familiar. Para as entrevistadas, o cuidado é uma ocupação em tempo integral, sem horário, sem distinção entre dias úteis e fins de semana e sem perspectiva de que a jornada diminua com o tempo. Pelo contrário, as demandas de cuidado da pessoa idosa tendem a aumentar. Uma cuidadora descreveu a rotina de cuidados com sua mãe como uma inversão dos cuidados com um bebê: em vez de se desenvolver, adquirir novos conhecimentos e conquistar autonomia, a pessoa idosa se torna cada vez mais dependente com o passar do tempo. Isso faz com que essa cuidadora se sinta sobrecarregada, uma vez que precisa estar sempre disponível para a mãe. As cuidadoras precisam oferecer disponibilidade constante para as necessidades de seus familiares idosos, o que significa sacrificar suas próprias atividades e necessidades.
A rotina de cuidado de uma pessoa idosa envolve uma série de atividades básicas e complexas: alimentação, higiene pessoal, deslocamento, administração de medicamentos, realização de procedimentos, acompanhamento a consultas médicas e tratamentos. As cuidadoras são responsáveis por planejar e executar todas essas tarefas, muitas vezes sem ajuda externa. Os relatos destacaram a rigidez da rotina do cuidado, que demanda organização e planejamento meticulosos para ser mantida. Qualquer alteração pode representar um desafio significativo para as cuidadoras, que preferem manter a estabilidade e a previsibilidade.
As entrevistadas também relataram os desafios para obtenção de conhecimentos básicos para o exercício do cuidado domiciliar. Elas precisam aprender na prática, com auxílio de pesquisas na internet e/ ou trocas em grupos virtuais de cuidadoras. Algumas conseguem fazer cursos especializados para adquirir conhecimentos técnicos como, por exemplo, medir saturação, glicemia, pressão arterial, identificar sintomas e alterações no quadro de saúde, administrar injeções etc. Algumas tarefas são muito desafiadoras e desgastantes. A mais citada nesse sentido foi o banho, devido às dificuldades práticas, o medo de acidentes e a exposição da intimidade e vulnerabilidade dos idosos. A execução do banho requer habilidade e, em alguns casos, adaptações estruturais nos domicílios. Em situações precárias, onde as instalações são limitadas, as cuidadoras enfrentam ainda mais desafios, como o transporte manual dos idosos.
Foi com meu pai que eu comecei [a dar banho]. Você imagina eu dando banho no meu pai, um militar. Não imagine, porque foi triste. Fiz porque precisava, não tinha quem fizesse (cuidadora 11).
Eu pesquisava assim “como ajudar um idoso a tomar banho” [no Google], aí aparece um monte de vídeo. Eu vi o que dava mais certo para mim e ia lá e fazia. Foi assim que eu fui aprendendo (cuidadora 4).
Além dessas atividades diárias há também as tarefas domésticas, como limpeza, compras e cuidados com as roupas que são pouco compartilhadas com outros familiares. Portanto, há um acúmulo de responsabilidades e uma multiplicidade de tarefas que tornam a rotina muito exaustiva no ambiente doméstico. Inicialmente, as atividades podem parecer simples, como preparar refeições, oferecer companhia e gerenciar a administração de medicamentos. Mas, surgem tarefas mais complexas que requerem conhecimentos que, muitas vezes, as cuidadoras não possuem.
O terceiro eixo da pesquisa investigou as (im)possibilidades de articulação do cuidado familiar com outras atividades de trabalho. Explorou as tentativas de conciliar o cuidado com outras formas de trabalho remunerado, descrevendo os obstáculos enfrentados e os arranjos feitos para lidar com esse desafio.
Algumas cuidadoras tiveram que deixar seus empregos ou antecipar a aposentadoria para dar assistência a um parente idoso. Por exemplo, uma delas precisou se aposentar mais cedo do que o planejado para cuidar de sua sogra, que enfrentava problemas de saúde e não podia mais ficar sozinha. Embora muitas dessas mulheres gostassem de seus empregos, a necessidade de cuidado do familiar idoso se tornou prioritária.
Das 11 participantes, seis realizavam algum tipo de trabalho remunerado no momento da pesquisa, embora informais e/ou esporádicos, sem uma rotina fixa de horários ou demandas. Muitas expressaram satisfação com suas atividades de trabalho e desejavam realizá-las com mais frequência, seja para aumentar a renda ou para alcançar realização pessoal. As entrevistas também revelaram que, para conciliar o cuidado com outras atividades produtivas, são necessários alguns acordos e arranjos, como trabalho remoto, jornadas parciais e horários flexíveis. No entanto, esses arranjos costumam ser instáveis e limitados, não permitindo mais do que algumas oportunidades de trabalho temporário. Vejamos alguns exemplos.
A cuidadora 2 vende roupas pelo WhatsApp e procura um emprego flexível próximo de casa para cuidar de sua avó. A cuidadora 5 faz bicos em atendimento ao consumidor por mensagens de texto, o trabalho pode ser feito em casa e assim consegue cuidar de sua mãe. A cuidadora 7 realiza trabalhos domésticos remunerados, como lavar e passar roupa, e faz peças de crochê para ajudar nas finanças e ter um tempo para si mesma. A cuidadora 8, que tinha uma escola infantil, agora aju- da a irmã em um negócio de venda de marmitas, equilibrando isso com o cuidado da avó. A cuidadora 10 deixou seu trabalho para cuidar da mãe e começou a fazer cursos de corte e costura, conseguindo se organizar, com ajuda da família, para frequentar as aulas.
A dedicação ao trabalho de cuidado familiar tem impactos financeiros substantivos na vida das cuidadoras. A maioria das entrevistadas tem pouca autonomia financeira. Assim, a dimensão material e financeira da vida das cuidadoras foi o quarto eixo de análise da pesquisa. O estudo revelou que, além de aposentadorias, pensões e possíveis ganhos de trabalhos esporádicos, as cuidadoras dependem principalmente de dois tipos de recursos: os rendimentos do próprio familiar idoso que precisa de cuidados e doações e/ou recursos fornecidos pela família como ajuda financeira simbólica.
Quando trabalhava ganhava mais de um salário. A gente teve que cortar, eu arrumava meu cabelo direto, fazia a unha, fazer esse tipo de coisa não dá mais. Agora só quando ganho um dinheirinho extra. Falta dinheiro para cuidar de mim (cuidadora 10).
Com mais ou menos dificuldade, boa parte das entrevistadas contou que consegue pagar as contas. No entanto, a maioria delas não possui recursos para gastos pessoais e nem uma reserva financeira. Elas explicam que não conseguem guardar, seja para um objetivo específico, seja para uma emergência.
A pesquisa revelou também que há uma diferença significativa na natureza dos rendimentos das cuidadoras mais velhas e das mais jovens. As mais velhas, geralmente aposentadas ou pensionistas, têm uma fonte de renda estável, embora muitas vezes limitada a um salário-mínimo. Já as mais jovens têm maior necessidade de buscar atividades remuneradas, o que pode ser ainda mais desafiador para aquelas com filhos pequenos.
O estudo identificou que as aposentadorias e pensões dos idosos beneficiários do cuidado são fundamentais para os arranjos financeiros das famílias, independentemente da classe social. As cuidadoras familiares dependem muito desses arranjos familiares, o que limita sua autonomia e a capacidade de investir em si mesmas com educação ou bens pessoais. Além disso, esses acordos familiares geralmente são instáveis e envolvem compensações financeiras simbólicas, bem abaixo dos valores do mercado para cuidadoras profissionais.
As contas da casa, então, é tudo com elas. Com o salário da minha vó, minha mãe paga as contas fixas, aluguel, água, luz da casa. A minha irmã paga alimentação. O mercado tá na conta dela. Aí se precisa comprar roupa, alguma coisa, a minha tia deposita um valor para minha mãe, minha tia também ajuda com um valor mensal (cuidadora 8).
O quinto eixo de análise diz respeito aos aspectos emocionais envolvidos na tarefa do cuidado familiar de parente idoso. A relação entre a cuidadora e a pessoa cuidada é complexa, repleta de emoções, memórias e preocupações. O trabalho de cuidado familiar envolve demandas emocionais, especialmente ao lidar com doenças e vulnerabilidades dos entes queridos. Muitas vezes, essa tarefa envolve um profundo sofrimento e até mesmo um luto antecipado. Algumas cuidadoras verbalizam essa dor e a falta de preparo e suporte psicológico para enfrentar essa situação.
Você tem que se preparar para isso. Eu assumi, mas eu não tive nenhum suporte inicial para me preparar para o que viria. Eu tive que ir atrás disso depois que o dano já começou a chegar para mim. Eu acho que isso tem que ser estabelecido, se é um familiar que vai cuidar, ele tem que ter um suporte, ele tem que ter uma ajuda, porque ele vai ver muitas coisas difíceis, ele vai ter que lidar com isso, entendeu? E é diário (cuidadora 1).
Apesar das dificuldades, aquelas que têm uma relação próxima com a pessoa idosa que cuidam encaram a atividade como uma demonstração de amor e cumplicidade, como uma forma de aproveitar o tempo com suas mães e avós, pois reconhecem que sentirão falta delas no futuro.
Eu aprendi a fazer muita coisa que eu não sabia, aprendi muitas histórias sobre a minha vida, sobre a minha ancestralidade que eu não sabia. Então, não foi de todo ruim, né? Vamos colocar, parece que eu falei só os pontos negativos, mas também teve muitos pontos positivos. Aprendi a cozinhar melhor, aprendi uma técnica de como lavar roupa, aprendi a fazer sabão caseiro, aprendi a fazer biscoito de polvilho. Conheci um pouco mais sobre a minha ancestralidade. Soube que a avó da minha avó era escrava, que eles trabalhavam em Engenho, que eles faziam cachaça. A minha avó me ensinou a fazer um remédio para cólica com arruda. Aprendi um monte de coisa que, de repente, se eu não tivesse esse contato mais direto com ela, eu não teria aprendido, porque eu tô numa geração e ela tá em outra. A dela não vale menos do que a minha, muito pelo contrário, o valor vem vindo, passado de geração em geração e a gente vai aprendendo (cuidadora 4).
O trabalho emocional das cuidadoras familiares é intenso, pois estão ligadas afetivamente às pessoas idosas que cuidam. Mães, filhas, avós e netas têm memórias e laços afetivos construídos ao longo da vida com aquelas que agora necessitam de cuidados. Embora reafirmem o passado ativo e admirável dessas pessoas, testemunham de perto a progressão das doenças, a perda de autonomia e a diminuição da capacidade cognitiva. Esse processo, marcado por tristeza e preparação para a despedida, é particularmente difícil quando enfrentam condições como Alzheimer e demência senil, levando-as a sentir falta da pessoa como ela era antes. Enquanto a cuidadora profissional não tem uma história anterior com a pessoa idosa e já a conhece nesse estágio de sua vida, a cuidadora familiar tem um vínculo carregado de memórias afetivas e tem de lidar com a mudança na relação.
Na parte da pessoa que cuida, eu acho que quando existe um vínculo familiar tem que ter um cuidado muito grande, porque quando você é um cuidador profissional, você vê a pessoa tendo certo tipo de com- portamento e aquilo não te atinge, é um paciente, você tá vendo várias pessoas agirem daquela forma. Mas quando você vê seu pai, sua mãe, alguém que é tão importante para você, uma figura tão importante para você, agindo de uma forma totalmente diferente daquilo que você conheceu um dia, é extremamente chocante. É como se você tivesse que se reorganizar também, você vai buscar nas suas memórias o que a pessoa era e o que ela é hoje, o que ela tá se transformando (cuidadora 1).
Outro aspecto que influencia a dimensão emocional da vida das cuidadoras familiares é a alta e constante demanda de trabalho. Como vimos, a rotina exaustiva de cuidado com o familiar idoso, com os filhos e com a casa impede que as cuidadoras se dediquem a si mesmas e às atividades pessoais, como lazer, bem-estar, sociabilidade, estudo e trabalho. Como dito, a rotina de cuidado requer disponibilidade e prontidão a todo momento, até mesmo durante a noite ou a madrugada, e as atividades geralmente se sobrepõem à rotina de trabalho doméstico. Foi frequente a percepção de solidão e abandono e relatos de desestímulo e falta de planos ou sonhos. Isso impacta principalmente as entrevistadas que têm uma rede de apoio mais frágil. Assumir tantas tarefas dentro do universo doméstico e familiar gera sentimentos como estresse e esgotamento emocional.
Outro problema enfrentado por essas mulheres, que impacta na questão emocional, é o isolamento social. Esse é um problema que atinge tanto as pessoas cuidadas como as cuidadoras. A entrevistada que cuida da avó e não conta com uma rede de apoio efetiva, contou que se sente em um “subsolo”, sem autonomia, enquanto seus familiares já têm suas vidas “formadas”. Ela não conseguiu construir a vida que desejava, já que seu tempo está integralmente voltado para o cuidado da sua avó. Ela disse que perdeu o protagonismo de sua vida e não se identifica com a que vive hoje.
Embora reconheçam o desgaste emocional do cuidado, nenhuma das participantes do estudo tem acesso a atendimento psicológico profissional. Algumas procuraram apoio on-line, em redes sociais ou grupos de cuidadores para troca de experiências, diálogo e desabafo.
Por fim, o sexto eixo de análise do estudo se dedicou às políticas e serviços públicos voltados ao envelhecimento e ao cuidado de idosos pelo olhar das cuidadoras familiares. Ou seja, mapeou as percepções das entrevistadas a respeito do que existe em termos de política pública para elas e para as pessoas idosas. A pesquisa também buscou entender as necessidades das cuidadoras familiares e suas visões sobre as políticas públicas voltadas para o cuidado e o envelhecimento.
No geral, elas demonstraram desconhecimento sobre políticas e serviços públicos destinados ao cuidado e aos idosos. Poucas tinham conhecimento sobre algumas iniciativas, como as “creches”⁴ para idosos, mas percebiam que esses recursos eram limitados e pouco acessíveis. Duas entrevistadas mencionaram um direito para cuidadoras familiares de pessoas idosas aposentadas por invalidez, que consiste em um aumento de 25% no valor da aposentadoria da pessoa cuidada caso seja comprovada sua dependência ou necessidade de cuidados. No entanto, elas relataram dificuldades de acesso e entendimento sobre as regras desse benefício.
Embora haja uma percepção de escassez de ações governamentais, especialmente no contexto brasileiro, há alguns programas e serviços municipais voltados para idosos que poderiam contribuir para melhorar sua qualidade de vida e reduzir as demandas de cuidado familiar se fossem disponibilizados em maior número e fossem mais conhecidos pela população.
No município de São Paulo existem os Centros Dia da Assistência Social que fornecem cuidados especializados a idosos e/ou pessoas com deficiência e algum grau de dependência. Esses centros proporcionam um ambiente de convivência durante o dia, permitindo que os idosos retornem às suas casas após participarem de atividades programadas. Além disso, a Assistência Social oferece serviços de acompanhamento domiciliar para idosos que estão em situação de isolamento, dependência e necessidade de cuidados. Também são disponibilizadas atividades sociais e culturais em outros locais, como nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), destinados a idosos com autonomia e mobilidade. Na área da saúde, há programas que oferecem acompanhamento domiciliar para pessoas idosas e/ou com deficiência, além de serviços de transporte especial para aqueles com mobilidade reduzida. No âmbito cultural, há equipamentos da cidade que promovem programas específicos para o público da terceira idade.
Embora essas iniciativas não sejam suficientes para suprir as demandas de cuidado, podem servir como opções para aliviar a carga de responsabilidade da família e proporcionar benefícios às pessoas idosas, como atendimento especializado, momentos de lazer e interação social. Porém, a falta de conhecimento, acesso e uso desses recursos e programas pelas famílias revela uma lacuna entre as iniciativas governamentais e aqueles que poderiam se beneficiar delas.
Também foi perguntado às cuidadoras familiares que tipo de pro- gramas e serviços elas demandariam para o poder público visando o envelhecimento digno e o cuidado da pessoa idosa. O estudo revelou que elas não atribuem ao Estado a responsabilidade pelo cuidado, pois veem essa função como uma obrigação moral da família, baseada no afeto e no vínculo. Muitas defendem que o cuidado é uma prerrogativa exclusiva da família, relutando em considerar formas de compartilhá-lo com outros atores e instituições. Qualquer alternativa que não envolva o elemento afetivo remete à negligência ou ao descaso com o familiar idoso. Há uma certa resistência e desconfiança em relação aos serviços públicos voltados ao cuidado da pessoa idosa. Políticas e serviços governamentais, como Instituições de Longa Permanência (ILPI), seriam uma alternativa para casos excepcionais, como idosos sem família ou cujas famílias não têm condições financeiras para cuidar.
Ninguém tem culpa da pessoa ficar bem velhinha mesmo. Quem tem que cuidar é a família. Tem que ter mais amor, mais compreensão com os idosos. Porque é difícil. Se eu falar para você que é fácil, não é. Você tem que ter muito amor para pessoa poder estar cuidando (cuidadora 10).
Porém, ainda que vejam as instituições provedoras de cuidado com ressalvas, as cuidadoras reconhecem a importância de proporcionar maior sociabilidade e atividades fora de casa para os idosos visando combater o isolamento social. Elas demandam mais serviços de interação e lazer e acessibilidade facilitada aos centros de convivência, onde os idosos possam participar de atividades culturais, de lazer e esportivas. Também ressaltaram a necessidade de transporte público acessível para garantir o deslocamento seguro, especialmente para aqueles com mobilidade reduzida.
Na área da saúde, sugerem a implementação de equipamentos e programas específicos para idosos, incluindo fornecimento de remédios. Também falaram sobre a importância da adaptação das residências para atender às necessidades de mobilidade dos idosos, com recursos fornecidos pelo governo para facilitar essas modificações.
Principalmente adaptação da casa. A gente não consegue por causa do salário, eu parei com tudo, então a gente só ganha um salário. Seria isso, adaptação da casa, se é uma casa difícil para poder estar locomo- vendo. Que nem eu, eu também não sou mais criança, já tenho 62 anos, vou fazer 63. Eu cuido da minha mãe que tem 91 anos. Então eu tenho que ficar andando com ela para lá e para cá por causa da minha casa que não tá adaptada. Isso com certeza eu acho que o governo deveria ajudar (cuidadora 10).
Por fim, a pesquisa explorou as necessidades e expectativas das cuidadoras em relação às políticas e aos serviços destinados às pessoas que exercem o cuidado de pessoas idosas. Elas sugeriram a criação de um auxílio financeiro – como uma “bolsa cuidadora” – para proporcionar alguma autonomia financeira e reconhecimento pelo trabalho realizado. As cuidadoras também destacaram a necessidade de serviços de apoio emocional e psicológico direcionados a elas. Reconhecendo o peso emocional do cuidado familiar, elas manifestaram o desejo por programas que ofereçam suporte psicológico e oportunidades para compartilhar experiências com outras cuidadoras.
Um último ponto trazido pelas participantes foi a respeito do acesso a informações e conhecimentos técnicos sobre o cuidado de idosos. Como já mencionado, elas tiveram que buscar aprendizado por conta própria, geralmente na internet ou conversando com outras pessoas que enfrentaram situações semelhantes. As entrevistadas sugeriram que iniciativas governamentais de formação para cuidadoras seriam muito úteis. Foi proposta também a criação de espaços públicos ou canais de comunicação para troca de experiências e informações sobre o cuidado de idosos. Sentindo-se inseguras nesse aprendizado solitário, acreditam que orientação especializada seria valiosa tanto para elas como para quem se beneficia do cuidado.
Discussão e Considerações Finais
Após a breve exposição dos principais resultados do estudo, segue nesta sessão uma apresentação dos principais destaques analíticos da pes- quisa Envelhecimento e Cuidado: Estudo sobre Cuidadoras Familiares de Pessoas Idosas:
• A decisão pelo cuidado familiar: vínculo, moralidade e falta de opções acessíveis e confiáveis. Há uma recusa a qualquer arranjo de cuidado que não aquele internalizado pela família. Prevalece uma visão de que é obrigação da família cuidar de seus idosos e outros arranjos de cuidado (governamentais ou mercantis) tendem a ser malvistos e interpretados como displicência e negligência. É uma decisão pautada pela moralidade, mas, além da questão moral, as famílias não conseguem visualizar muitas opções acessíveis e confiáveis. Primeiro, não há conhecimento sobre serviços públicos, que são, de fato, escassos. Por outro lado, há um estigma grande sobre serviços privados. A exceção são serviços de luxo, fora do alcance financeiro da maior parte das pessoas. Predomina uma recusa muito forte em relação às ILPI. Assim, cuidar em casa é quase sempre considerada a melhor opção. Mas, a contratação de cuidadoras profissionais domiciliares também é vista com ressalvas, há receio e desconfiança: “É uma desconhecida”. Então, responsabilizar alguém da família é considerado o arranjo mais fácil, barato e que garante que o cuidado será desempenhado por alguém conhecido, de confiança e que tem vínculo com a pessoa cuidada. A dimensão do vínculo – seja de afeto, seja só de parentalidade – é muito valorizada nas decisões que constroem os arranjos de cuidado das pessoas idosas.
• A demanda de cuidado se impõe: as famílias não estão preparadas e lidam com a situação no improviso. Embora o cuidado de idosos seja uma responsabilidade absorvida pelas famílias na sociedade brasilei- ra, elas não se organizam e nem se planejam para esse momento. O tema é tabu e quando a necessidade surge – após algum evento drástico como diagnóstico de doença grave e/ou perda de mobilidade da pessoa idosa – a família tende a lidar com o fato de modo improvisado e como se fosse uma situação passageira. Não há planejamento financeiro e nem conversas abertas sobre os melhores arranjos para enfrentá-la coletivamente. Não há nenhum tipo de preparo para aprender habilidades técnicas básicas para o cuidado de uma pessoa idosa. Perdura o suposto de que cuidar é natural. O arranjo provisório acaba se tornando duradouro e nem sempre é a melhor situação para as pessoas implicadas nele.
• O cuidado familiar é feminino. Via de regra, a responsabilidade recai sobre uma mulher da família, que geralmente está sem trabalho, ou tem um trabalho mais flexível, e/ou é responsável pelo cuidado de outras pessoas da família (crianças, doentes etc.).
• O cuidado familiar é centralizado em uma figura, não é distribuído no grupo familiar. Assim que uma pessoa se torna a principal responsável por esse trabalho, alguns outros membros da família podem (ou não) assumir papéis complementares. Mas, geralmente, são arranjos desequilibrados, em que a principal carga de trabalho recai sobre uma pessoa e os personagens coadjuvantes assumem tarefas esporádicas.
• A rotina de cuidado familiar é implacável e afasta as cuidadoras de outras atividades. O cuidado de uma pessoa idosa envolve demandas constantes e urgentes. A cuidadora fica totalmente absorvida por esse trabalho e renuncia a outras atividades. Pequenas tarefas até chegam a ser compartilhadas com outros familiares, mas os cuidados de maior intimidade ou complexidade são realizados exclusivamente pela cuidadora principal. Assim, ela não consegue ter dias de folga. Os fins de semana são iguais aos dias de semana. Para que a rotina dos cuidados funcione precisa haver planejamento e sair da rotina é muito desafiador para as cuidadoras.
• O cuidado demanda habilidades e conhecimentos técnicos específicos, nem sempre fáceis de serem obtidos. As mulheres que se tornam cuidadoras familiares desenvolvem as habilidades por meio de experiências práticas, pela observação do trabalho de outrem, na realização de pesquisas na internet ou fazendo um curso de cuidadora.
• O cuidado não é visto como trabalho, a cuidadora familiar não é remunerada. Em alguns casos ela até recebe alguma remuneração, mas simbólica, pois não configura um salário. Trata-se de um arranjo precário feito com a família, definido como ajuda: ou ela recebe uma parte da aposentadoria da pessoa cuidada, ou outros parentes pagam as contas dela – que se confundem com as despesas da casa, pois seu gasto pessoal é mínimo.
• A conciliação entre o cuidado familiar e outras atividades produtivas é desafiadora. A falta de compartilhamento dos cuidados com outras pessoas aumenta a dificuldade da cuidadora em buscar uma fonte de renda ou ter metas profissionais, apesar do desejo manifestado por elas de alcançar essa dimensão laboral. Assim, as possibilidades de conciliar o cuidado com outros trabalhos são limitadas a atividades irregulares e/ou que possam ser feitas em casa, durante os pequenos momentos de folga do cuidado, como por exemplo, quando a pessoa idosa dorme. As mulheres cuidadoras ficam de fora do mercado de trabalho e não têm esse tempo do trabalho de cuidado familiar contabilizado para sua aposentadoria, mesmo trabalhando em jornadas exaustivas.
• As cuidadoras familiares não possuem autonomia financeira. Elas dependem muito da renda da pessoa idosa cuidada, além de outros arranjos financeiros familiares que as remuneram com um valor simbólico, abaixo do valor de mercado. Elas não conseguem guardar dinheiro ou mesmo custear consumos próprios e de realização pessoal.
• A renda da pessoa idosa é central nos arranjos financeiros e de cuidado das famílias. As pessoas idosas recebem aposentadorias e/ou pensões por morte, além de outros rendimentos como aluguéis e aplicações financeiras que cobrem seus custos pessoais, pagam parte substantiva das contas domiciliares e ainda financiam a retribuição simbólica das cuidadoras familiares. O estudo observou que, independentemente da classe social da família, os recursos financeiros dos idosos são fundamentais nos arranjos que provêm o cuidado familiar e têm uma participação financeira importante nos domicí- lios onde moram. Por fim, são os recursos dos próprios idosos que são parcialmente destinados para uma colaboração financeira sim- bólica visando compensar a dedicação das cuidadoras familiares.
• A dedicação ao trabalho de cuidado familiar de idosos traz impactos emocionais negativos. Acompanhar o envelhecimento e o processo de fragilização física e cognitiva de um familiar com quem se tem laços afetivos envolve sofrimento e sensação de luto antecipado. Além disso, a rotina rígida e exaustiva associada a uma rede de apoio frágil provoca estresse e leva ao esgotamento emocional das cuidadoras familiares.
• Distância, desconhecimento e desconfiança em relação às políticas governamentais destinadas ao envelhecimento e ao cuidado. Os serviços oferecidos pelo poder público para o cuidado das pessoas idosas são poucos e desconhecidos. Algumas entrevistadas até já ouviram falar de serviços desse tipo, mas não têm conhecimentos aprofundados e não sabem como acessá-los. A decisão de internalizar o cuidado na família também está pautada na percepção negativa e na desconfiança nos serviços públicos ou privados que oferecem cuidado às pessoas idosas.
• As cuidadoras familiares demandam ações governamentais para exercer a tarefa de cuidado contando com auxílio financeiro, suporte psicológico e acesso a conhecimento técnico.
Referências
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