UM HOMEM | Conto inédito de Noemi Jaffe

29/02/2024

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Por Noemi Jaffe

Ilustrações Flora Rebollo

Leia a edição de MARÇO/24 da Revista E na íntegra

Um homem, encurvado e enrugado depois de quarenta e três anos de trabalho pesado e diuturno, em cada segundo de cada minuto acreditando que saberia se o Deus de que tanto se falava era de pedra ou madeira, vento ou água, diamantes ou cristais, se a poltrona onde Ele se sentava era coberta de pedrarias ou se era só um banquinho de palha igual ao da casa dele, esse homem chamado Hng colocou o último tijolo na última fileira da Torre, depois de recebê-lo das mãos de Psl, como vinha acontecendo nos últimos sete meses, depois de terem passado pelas mãos de Nr, Kts, Rrr, Drdl e dos outros de quem ele já nem se lembrava, tantos coitados como ele, pobres crentes desgraçados que precisavam ver Deus para implorar que Ele os ajudasse, pois se Deus existia, por que eles sofriam tanto?

Esse homem, Nhg, olhou para baixo, coisa que ainda não tinha feito em todos esses anos. A Terra estava lá, quase tão invisível quanto a Lua quando vista de baixo. O que mais se via era ela, a Torre, Sua Torre, que ele tinha demorado quarenta e três anos para erguer. Em cada fileira dela havia, no mínimo, uns trinta tijolos só seus e agora era Ela, Ela inteira em pé, subindo do tudo ao nada e no meio do nada, ele, Nhg, um nada de nada, Nhg Ngn.

Ele sorriu e disse para Psl, logo abaixo dele, também tonto:

– Psl, psl!

– Nhg!

Mas logo eles se deram conta de que não conseguiam mais se entender.

Logo, nas outras partes da torre, nos degraus mais abaixo e ainda mais, começaram a ecoar os gritos dos trabalhadores, alguns Nhg reconhecia, Rdl, Mrscicia, a linda Mls, a velha Drd ainda bem lá embaixo, outros ele nunca tinha sequer visto, eram de outras gerações, meninos e meninas morenos como tâmaras, olhando para ele com curiosidade, como se perguntando, e então, viu alguma coisa ou algum Ser, pode nos confirmar se haverá um fio de esperança para nós? Seus rostos agora não diziam só esperança mas também espanto, os filhos e as mães não se entendiam mais, só tinham restado os nomes das pessoas. Todas as outras palavras saíam da boca em outras combinações, rsl tinha virado slr, e quando se balançava a cabeça para os lados, o que antes era não, agora era sim, e uns se abraçavam e outros já não podiam nem mais se encostar, uns davam três beijos e outros só apertavam as mãos, os que sorriam ficaram emburrados e os melancólicos começaram a dançar.

Nhg olhou para baixo e só viu balbúrdia, balabúrdia, balababúrdia, babelabúrdia e deu à Torre o nome de Babel.

Nhg, que sempre soube não saber de nada, agora entendia menos ainda e ficou com medo não só de olhar para baixo, mas também de olhar para cima, na direção onde Ele deveria estar, no lugar onde Nhg o imaginava, sentado num altar feito de luz, ele mesmo como um ser de luz que falava a língua da luz.

Essa confusão de línguas, Nhg pensou, seria um castigo ou uma recompensa? Como ele saberia?

Não, não poderia ser um castigo.

O ser de luz não castigaria um homem como Nhg, que tinha passado quarenta e três anos carregando tijolos só para vÊ-lo, um sacrifício como nem Abel nem Caim tinham Lhe oferecido, o sacrifício da sua e de milhares de outras vidas de mulheres, homens, velhas e velhos, meninos e meninas miseráveis que se reuniram para tomar a decisão de erguer a maior torre do universo, com dois quilômetros de altura e quatro quilômetros de diâmetro, construção que levaria mais de trinta anos, isso se a cidade inteira passasse todo o tempo disponível construindo e transportando tijolos para dispor no local escolhido, o centro de tudo, formando uma torre cujo topo coincidia com o centro do céu, “Shamaim”, mistura de água e fogo, no centro da qual estava Ele, o Deus único, ondas brilhantes de luzes coloridas distribuindo luz para os seres da Terra.

Tudo para honrá-Lo, os melhores engenheiros, matemáticos do Egito – que andavam pensando até em pirâmides – medidores de terras e ventos, de umidade e peso, todas as economias de anos, fome, frio e sede, tudo para ele nos abençoar e perdoar por males que mal sabíamos.

Não, não podia ser.

Ele gritou de desespero, numa língua que nem ele conhecia, uma palavra que ele nem sabia o que era.

Ele jamais nos castigaria, Nhg pensou, enquanto olhava fixamente para aquele último tijolo da última fileira do último círculo da torre.

  • Noemi Jaffe é escritora, professora de literatura, escrita e crítica literária. Doutora em literatura brasileira pela USP, publicou O que os cegos estão sonhando (Editora  34, 2012), Irisz: as orquídeas (Companhia das Letras, 2015), Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras, 2017) e Escrita em movimento: sete princípios do fazer literário (Companhia das Letras, 2023), entre outros. Desde 2016, mantém, em São Paulo (SP), o Centro Cultural Literário Escrevedeira, em parceria com Luciana Gerbovic e João Bandeira.

  • Flora Rebollo é artista visual e utiliza o desenho como mídia principal de sua produção. Entre suas exposições individuais estão O primeiro dia de Dadá, na Galeria Quadra (RJ, 2022); 5 pontas, na Galeria Projeto Vênus (SP, 2021); BURUBU, na Galeria Pilar (SP, 2017); e meta-in-pro-produto-sin-forme, no Centro Cultural São Paulo (SP, 2016). Seu trabalho faz parte da coleção da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Centro Cultural Dannemann (São Félix-BA).

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