Por Rosa Miranda *
A história de resistência protagonizada pelas mulheres negras no período escravagista no Brasil até hoje é invisibilizada pelo machismo e pelo racismo. Embora tenham participado de todos os momentos históricos da luta por direitos, o período pós-abolição relegou a mulher negra aos espaços à margem de todo e qualquer processo social. Mesmo com a liberdade já proclamada no papel, as mulheres negras estavam diretamente marcadas pelas situações de vulnerabilidade, gênero, classe e cor da pele. Essa soma de desigualdades refletiu e ainda reflete diretamente em sua autonomia financeira, física e familiar.
A história de luta e resistência das mulheres negras passou séculos fora dos livros e dos mapas. É sobre esse contexto que insurge da mulher negra e ativista, Rosa Miranda, a vontade de constituir uma cartografia cultural do Vale do Paraíba para descortinar histórias que precisam ser reveladas. A partir dessa reconstituição histórica sobre a cultura da população negra da região, esse primeiro recorte traz narrativas protagonizadas por mulheres negras. Visibilizar suas histórias de luta, é perceber o quanto elas foram persistentes, resistentes e resilientes durante mais de 300 anos de escravidão. Vamos aqui reverenciar as nossas mulheres negras ancestrais, guerreiras que se tornaram símbolos da rebeldia e ousadia, que inspiraram e motivaram outras pessoas a seguirem seus passos, que abriram caminhos para uma liberdade que ainda não alcançamos totalmente e que foram escamoteadas ao longo dos anos.
De Dandara, Aqualtune, Acotirene, Anastácia, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Adelina Charuteira, Mariana Crioula, Maria Firmina dos Reis, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Maria Aranha, Nã Agontimé, Tia Simoa, Zacimba Gaba até tantas outras. Sob as bençãos de guerreiras ancestrais, abrimos um fio condutor para ligar suas histórias às de mulheres negras do Vale do Paraíba e revelar – sob a ótica de Lélia Gonzalez – um vale cheio de Amefricanidade.
Negra, pobre, periférica. O questionamento sobre esse “não lugar” foi o que aproximou Rosa Miranda nos anos 1980 dos movimentos sociais. Aos 61 anos, ela traz o registro de vivências compartilhadas junto com as histórias de suas iguais. Mulheres que tiveram os caminhos cruzados na busca por seus lugares de pertencimento. A luta das mulheres negras, historicamente, tem sido fundamental para (re)mover as estruturas de opressão e tensionar as sociedades por uma nova ordem social mundial. Dos movimentos periféricos à ocupação da academia e da política, um processo árduo e demorado vem contribuindo para o reconhecimento da mulher negra enquanto sujeita de direito e que não só produz conhecimento como também é capaz de construir uma engenharia social menos racista, machista e desigual.
Neste contexto de resistência, as mulheres negras através das suas ações descobriram muito cedo que os heróis e heroínas que lhes apresentavam não se pareciam com elas, muito menos com suas ancestrais. Elas sobem e descem o morro, andam pelas vielas e becos, pelas periferias, palafitas e num instante de iluminação, enxergam nos costumes locais sua maior riqueza: as habilidades e talentos das suas Ancestrais.
Essas histórias estão espalhadas pelos mais remotos cantos do Brasil. Nossa missão neste texto é desvendar alguns pedaços dessas histórias de mulheres do Vale do Paraíba Paulista – uma região extremamente ligada ao processo de formação do país e do povo brasileiro.
Os registros históricos apontam que no século XVI os colonizadores haviam chegado ao Vale em busca de pedras preciosas e de escravizar os povos indígenas que aqui habitavam. No século seguinte, a região passa a receber africanos escravizados que por um longo período mantiveram grandes fazendas de café. Há relatos de que alguns povos/etnias trazidos de África só aportaram nessa região, o que explica a formação linguística (sotaque) e cultural que não é encontrada em nenhuma outra região do país e que ilustra bem o conceito cunhado pela intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez de AMEFRICANIDADE – o qual se refere à experiência comum de mulheres e homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas contra a dominação colonial. Do culto aos elementais da natureza, passando pelo assentamento dos Orixás e se tornando a capital nacional da fé – há muito ainda que se revelar sobre essa imensa região entre serras e rios.
A amefricanidade se apresenta para nós como um papel social que surge da resistência direta de quem viveu as opressões da colonização, portanto, estamos em solo fértil para compreender um pouco mais como essa resistência e manutenção de costumes e tradições africanas foi sendo repassada por gerações. Nossa cartografia foca na história de algumas mulheres deste território. Nesta trajetória, por meio das manifestações culturais e da religiosidade, revelamos um pouco do legado, costumes, talentos e habilidades que mantiveram as tradições vivas.
TERRITÓRIOS, RESISTÊNCIA E EXISTÊNCIA
Nossa cartografia começa com aquilo que vem a ser o ponto essencial para a existência de um povo: o território. O local onde as tradições e ritos podem ser cultivados e, sobretudo, onde é possível existir – nascer, viver e morrer – e construir sua história. A história dos Quilombos de Caçandoca e Picinguaba estão registradas devido ao seu processo de reconhecimento enquanto terras quilombolas, mas não podíamos seguir com nossa contação sem uma parada para conhecer mulheres importantes para a existência e criação destas áreas protegidas. Nas palavras de Lélia “nas revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre” (GONZALEZ, 198, p. 79) é onde se percebe a vivência da amefricanidade – uma forma de continuar existindo.
CAÇANDOCA
No Quilombo da Caçandoca, no extremo sul de Ubatuba, conversamos com Eloisa Santos, filha de dona Gabriela Santos e seu Antônio Santos, líder do Quilombo Caçandoca. Ela nos contou sobre a rotina de resistência dentro do quilombo das várias mulheres, entre elas está a sua mãe Dona Gabriela, Dona Emilia Gabriel, Dona Diolalia Gabriel, Madalena, Bárbara e Débora entre tantas outras que, juntas, desenvolvem várias atividades dentro do quilombo. São mulheres criativas, guerreiras e resistentes, que trabalham recepcionando os visitantes do Afroturismo, elas trabalham e criam juntas seus artesanatos. Dona Gabriela também cuida da equipe que é responsável pela alimentação, hospedagem e guias do roteiro de turismo. Há diversas modalidades de artesanato desenvolvidas por estas mulheres como: Bonecas amigurumis e abayomis, colares confeccionados com escamas de peixe, bordado com fibra de bananeira, colares de missangas, sementes como capiás, olho-de-boi e olho-de-cabra, açaí e conchas, tear, filtros do sonho. O Quilombo da Caçandoca conta com 890 hectares de área legalizada, dispõe de uma Casa de Artesanato e do Centro Comunitário Flávio Firmino dos Santos.
PICINGUABA (Quilombo da Fazenda)
Numa outra ponta, no extremo norte de Ubatuba, conversamos com Dona Laura de Jesus Braga, 65 anos, filha de José Braga e Justina da Conceição Braga, que nasceu no quilombo do Campinho em Paraty e que, aos 6 anos, veio com seus pais, o Tio Leopoldo e a Tia Maria morar na Fazenda Picinguaba na década de 1970. Seu tio foi contratado pela Caixa Econômica Federal para administrar a Fazenda que pertencia à senhora de engenho Maria Paiva. Dona Laura nos conta que um dos filhos da sinhá se casou com uma das três negras da casa e que a fazenda era isolada, não tinha comunicação com a cidade, mas que mantinham viva a cultura, principalmente a pesca e agricultura, e praticavam diversas danças. Diz que foi à escola da comunidade pela primeira vez aos 13 anos, casou-se aos 17, e, aos 18, foi mãe. Em 1980, a fazenda foi tombada passando a fazer parte do Parque da Serra do Mar, seu nome também mudou para Fazenda do Quilombo, o que acarretou numa tentativa de desapropriação. A decisão não foi bem recebida pelas famílias e dona Laura foi uma das moradoras que resistiu. Ela relata que teve sua casa incendiada, estava grávida de cinco meses e com cinco crianças, ficando sem ter onde morar. Foi amparada por uma das moradoras, a Dona Celeste. Durante anos travou uma imensa luta pelo reconhecimento e direito de ocupação do Quilombo. Criou a Associação Comunitária dos Remanescentes do Quilombo da Fazenda Picinguaba, onde ela é a representante.
A ROTA DA LIBERDADE
Conversando com Solange Barbosa sobre a Rota da Liberdade, moradora na cidade de Taubaté, especialista em turismo, que trabalha com Afroturismo e Turismo de Base Comunitária, ao chegar no Vale Paraíba, ela teve a oportunidade de conhecer a cultura negra através do Jongo, da Congada, do Moçambique e da Religiosidade.
Tudo isso foi inspiração para a criação da Rota da Liberdade em 2006, um programa cultural de mapeamento da diáspora africana da região do Vale do Paraíba e que foi considerado o primeiro projeto de Turismo Afrocentrado do Estado de São Paulo. O projeto leva as pessoas para conhecerem e fazerem uma imersão na cultura negra da nossa região. Em 2009, foi considerado um dos dez melhores projetos de geoturismo do mundo no desafio geográfico da Ashoka* e, em 2020, ganhou um prêmio como um dos três melhores projetos de turismo sustentável do Brasil.
*A Ashoka é uma organização global que atua focando no setor cidadão, promovendo as missões e valores que constituem o campo do empreendedorismo social.
O JONGO
Nossa andança pelas histórias das mulheres negras sobre as serras se depara com uma imensidão de manifestações culturais que envolvem resistência, fé e exaltação da negritude. Ao propor o pensamento da amefricanidade, Lélia aponta que é diante do controle do imperialismo que as tradições africanas e ameríndias vão buscando formas de reinvenção e resistência, valendo-se das tradições culturais, em especial da dança e da música, para permanecerem vivas e se comunicarem com seus pares.
O Jongo se insere bem nesta definição: é uma manifestação de canto e dança, usada pelos escravizados como forma de comunicação e adoração cifrada. Antigamente era restrita a homens e velhos, no entanto as mulheres e jovens enfrentaram a tradição e passaram a fazer parte como Antônia Rita Jeremias (filha de Dona Ana Rosa), conhecida como Dona Tó, primeira mulher a bater um tambor dentro do Jongo e compor vários pontos, considerada como a grande liderança desse movimento. Fez parte do Jongo Tamandaré de Guaratinguetá, cidade onde nasceu, cresceu, formou família e transmitiu saberes, deixando este legado para suas filhas Vera, Regina e Fatima. Ainda no Jongo, Dona Adélia A. dos Santos, de 83 anos, desde criança acompanhou as rodas, mas não podia participar porque era mulher, depois porque o pai não deixava e depois porque foi o marido que a impedia. Ela, além de jongueira, é benzedeira, aprendeu o ofício vendo a sua madrinha que a criou desenvolvendo esta função. Já em São José dos Campos, com a família, resolveu colocar em prática um sonho acalentado pela vida toda junto da filha Marcia Cunha e do genro Laudení de Souza. Foi assim que no dia 26 de julho de 2002 fundaram o Jongo Mistura de Raça, onde Laudení se tornou Mestre, Marcia comanda o grupo e Dona Adélia é considerada a Matriarca. Hoje há uma nova geração assumindo a responsabilidade – Luciana S. Carvalho, filha de Marcia e neta de Dona Adélia.
CONGADA SÃO BENEDITO DO ALTO CRISTO
A Mestra e Contramestra – Mestra que puxa o canto na primeira voz e Contramestra que exerce a segunda voz – Joaquina de Oliveira, 59 anos, filha de Geni Maria dos Santos e Guido Bonifácio, começou a dançar aos 6 anos na Congada do Alcides Pereira de São Luiz do Paraitinga, Rei do Congo Paulista. Depois do seu falecimento, o título passou para o Capitão Mestre Guido, que foi morar em Taubaté. Mestre Guido trouxe a Congada consigo e a chamou de Congada São Benedito do Alto Cristo. Após sua morte, a filha, Mestra Joaquina, aos 19 anos, assumiu a Congada. Atualmente, a Congada São Benedito do Alto Cristo, formada somente por familiares, possui como Rei seu Braz e Dona Cida como Rainha, que foram coroados em 25 de dezembro de 2020.
OS POVOS DE TERREIRO
Seguindo nossa caminhada por vários lugares desta região, conversamos também com mulheres que têm marcado sua resistência através das Religiões de Matrizes Africana, termo utilizado no Brasil para se referir às religiões que se desenvolveram a partir do processo da vinda dos povos escravizados do continente africano. O preconceito, a ignorância contra os seguidores da Umbanda e do Candomblé trazem danos irreparáveis. Mas as mães de santo resistem, persistem na construção da sua identidade religiosa, na manutenção de suas casas enfrentando os desafios de combater o preconceito todos os dias.
Candomblé
Mãe Almerita S. Aragão, 83 anos, de São José dos Campos, fala que nasceu com seu orixá e toda torta, sua mãe chamou uma benzedeira africana de nome Rosa que lhe benzeu e deu à sua família algumas folhas de uma planta para que fizesse um patuá – objeto consagrado que traz em si o axé, a força mágica do Orixá, do santo católico ou guia de luz, a quem ele é consagrado –, e colocasse em seu pescoço. O patuá esteve com ela até os 7 anos de idade, quando um dia tomou uma chuva muito forte e o perdeu. Nunca mais o encontraram. Na escola, enfrentou muita resistência por parte da professora e da diretora que não queriam ela ali, por conta do Torço – turbante ou pano de cabeça – e do Contra-Egun – trançado de palha da costa trazido ao Brasil pelas religiões Afrodescendentes. Sofreu muito preconceito por parte dos vizinhos, amigos e familiares que a chamavam de negrinha macumbeira. Iniciou no santo aos 9 anos de idade pelas mãos de um tio que era Ogan. Ela, por sua vez, é filha de Omolu, mãe carnal de Jaira e Gilka, que também são iniciadas no Candomblé.
Umbanda
Mãe Cida Preta (Em Memória), filha de Maria do Carmo Silva, negra, ativista e yalorixá. Em meados de 1970, abriu seu terreiro que ficou conhecido como Tenda de Umbanda Caboclo 7 Flecha e Vovó Cambinda de Guiné. Foi representante da Federação Estadual de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo. Recebeu Femenagem – termo cunhado durante a Marcha Mundial de Mulheres para trazer reverência e reconhecimento ao femenagear as mulheres e assim nos sentimos representadas – da Câmara Municipal de Carmo de Cachoeira com nome de uma Rua da cidade e da Câmara de São José dos Campos com nome de Rua no Jd. Califórnia. Mãe Cida faleceu em 19 de maio de 1990.
Reverenciamos Mãe Terezinha de Xangô, Yalorisá (Em Memória), de São José dos Campos, Mulher negra do Candomblé, um símbolo de resistência e de fé que ilustra bem a grandiosidade dos povos de terreiros.
Estendemos essa femenagem às outras mães de santos que atuam em defesa dos direitos humanos e pela liberdade religiosa: Mãe Shirley, Mãe Denizia, Mãe Rosa e Mãe Iolanda, todas de São José dos Campos.
A FAMÍLIA DO SAMBA
Numa outra frente de resistência, conversamos com algumas mulheres negras que buscaram através da música desenvolver conhecimentos e ao mesmo tempo uma profissão. As Irmãs Maria do Carmo (Carmelita), 74 anos, Maria Aparecida da Silva (Cida), 66 anos, e Rita Irene, 70 anos, aprenderam a falar cantando com o pai e com a mãe Marieta. A relação com a música é longa: elas participaram das reuniões para a criação da Secretaria de Cultura da cidade de São José dos Campos, antes da Fundação Cultural do município. Juntas fundaram o Coral da Igreja onde atuam até hoje. Com os irmãos, criaram o grupo de Samba Última Hora e começaram no samba no bloco do Calazans no bairro de Santana, depois no bloco do Zequinha (Unidos da Vila), e na escola de samba Acadêmicos do Satélite. Hoje, suas filhas seguem os mesmos passos, a Áurea e a Leila Moreno. Esta última, que é atriz e cantora, relata que toda sua ascensão na música e nos palcos é fruto do espelho de sua família. Sua mãe e suas tias sempre foram as grandes incentivadoras da sua carreira.
RITMOS MUSICAIS DIVERSOS E MOVIMENTO NEGRO
Mas as mulheres negras musicais não param por aí. Podemos citar nesta cartografia grandes nomes que se destacaram e que se destacam dentro do Samba, da MPB, do Funk, do Rap, entre outros estilos no Vale Paraíba. Destaques da cidade de Jacareí, Cecilia Militão, Dani Kriola, Tássia Reis, morando hoje em São Paulo; em São José dos Campos, Glauce & Nossa Raiz, Preta Ary, Meire D’Origem, Priscila e Julia MC’s; Nina Reis, de Aparecida do Norte, morando em Guaratinguetá; e Killa Bi, de Pindamonhangaba, que mora em Taubaté.
Rigleia A. C. dos Santos (Em Memória), cantora da noite taubateana, que além do samba atuava em outras frentes de luta junto com outras mulheres, deu vida ao Movimento Negro no Vale do Paraíba. E dentre estas mulheres, podemos citar: Marcia Antônia, Sônia Ribeiro, Rosa Miranda, Claudia Camilo, Silvia Mirtes, Neusa Corona, Maria Conceição Moreira, Viviana Mendes, Maria Olivia, Ana Carolina da Costa, Dulcineia Vicente, Maria Vicente, Isaura Vicente, Jaci de Paulino, Maria Gorete, Ana Maria Dias, Vanize do Carmo, Maria Delfina Maria Morais (Em Memória), Eloisa Elena, Luana Cristina, e a Professora Efigênia A. de Freitas, que em 1988, junto com amigos criou na cidade de Aparecida o Grupo Namíbia.
MADROEIRAS
Nesta busca de visibilidade e valorização do trabalho das Mulheres Negras, quanto às Madroeiras – palavra com o objetivo de mostrar a nossa existência que foi trazida por Celina Simões, Promotora Legal Popular formada pelo Centro Dandara na perspectiva de tratar “se é mulher, é madre, se é madre, é madroeira”, (Nossa Senhora Aparecida, a Madroeira do Brasil) – que têm reconhecidamente contribuído no debate e na construção de uma sociedade mais igualitária do ponto de vista das relações raciais e de gêneros, temos as Promotoras Legais Populares (PLPs), conhecidas em diferentes países da América Latina também como agentes multiplicadoras de cidadania.
O Centro Dandara surgiu como uma demanda do Projeto de Promotoras Legais Populares, desenvolvido no município de São José dos Campos, no final da década de 1990, cujo nome é uma femenagem a uma das grandes heroínas da história brasileira, Dandara. E, com este sentimento de representatividade, é que vamos femenagear de forma especial duas mulheres negras fortes guerreiras que tiveram sempre lado a lado na luta.
Albina Silva (Em Memória), 76 anos, mais conhecida como Tia Albina, casada com José Francisco, mãe de quatro filhos, foi uma grande líder. Desde cedo dedicou a sua vida a trabalhar em prol das pessoas. Católica, foi coordenadora da Pastoral Vocacional da Igreja Coração Eucarístico de Jesus, no bairro do Parque Novo Horizonte em São José dos Campos. Começou a sua militância racial dentro do SequeNegro, entidade precursora da luta pela igualdade racial em São José dos Campos fundada no final dos anos 70 ao lado do ex-vereador João Bosco da Silva e que junto com outras mulheres, passou a fazer um trabalho de informação e formação no combate ao racismo ainda que vigiados pelo regime ditatorial vigente na época. Atuou também dentro do Camarões, associação esportiva fundada no ano de 1990, em homenagem a seleção da República dos Camarões que brilhou na Copa do Mundo na Itália. A Associação Esportiva e Cultural Camarões levou sua equipe de futebol e dança-afro para várias cidades do interior e litoral do Estado de São Paulo, da UJAD (União Jovem da Assembleia de Deus), participou da Sociedade Amigos de Bairro do Jardim Novo Horizonte, foi uma das fundadoras do grupo Geração de Renda das Mulheres do Novo Horizonte e sempre participou da organização das missas Afro. Recebeu várias Femenagens: da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, da Câmara Municipal de São José dos Campos, entre outras. Faleceu em 2 de fevereiro de 2019, deixando um grande legado.
Elaine de Fátima dos Santos Justino (Em Memória) foi professora por formação e Trançadeira – cabeleireira especializada em trançar cabelos à moda africana – por vocação. Nascida em São José dos Campos, filha de Amilton e Rosemary, a saudosa Tia Rose, integrante do Camarões e quituteira de mão cheia. Militou durante anos na Associação Esportiva e Cultural Camarões e ajudou na organização de várias atividades do grupo. Presença sempre marcante nos Festivais Comunitários Negro Zumbi – FECONEZU. Foi Coordenadora da Pastoral Afro do bairro Jardim Novo Horizonte e responsável pela realização das missas Afro no 20 de novembro. Em busca de novos conhecimentos, morou durante alguns anos na Europa onde se especializou em algumas técnicas de trança com angolanas que lá moravam e trabalhavam. Uma das profissionais mais reconhecidas na cidade em cabelos afro, recebeu o troféu Destaque Negro, pela sua dedicação, colaboração e preservação da cultura afro-brasileira. Casada com Emerson Justino, mãe de Ana Lívia e Amilton José, faleceu em 07 de agosto de 2018.
O Instituto Lélia Gonzalez para a Igualdade Racial e de Gênero, em São José dos Campos, é uma organização que busca a promoção, a defesa e o reconhecimento da história, dos direitos e da produção dos saberes de mulheres negras, sempre com a perspectiva interseccional entre raça, gênero e classe. Seu nome é uma femenagem a uma importante intelectual negra brasileira que décadas atrás produziu uma literatura sobre feminismo negro e igualdade racial e que ainda hoje é estudada em vários locais do mundo dentro da academia.
Lélia defendia que, pelo fato de a mulher negra ser a base estrutural da sociedade, ao movimentar essa mulher, em relação a sua situação política, social e econômica, toda a sociedade muda. Em suas obras, além da defesa do conceito de amefricanidade como elemento essencial para avançar nas políticas de igualdade racial, Lélia nos indicou a importância do combate ao epistemicídio do pensamento negro, sobretudo ao das mulheres. Epistemicídio que pode ser definido como a invisibilização do conhecimento e dos saberes produzidos por um povo. Ao realizar esta cartografia e contar a história dessas mulheres, estamos justamente combatendo esta prática de séculos de apagamento.
Este texto é um fragmento de uma história de séculos de ancestralidade, de tradição, de fé e de resistência. A história das mulheres negras é vasta e constante e não caberia nem mesmo em um único livro. Portanto, este texto não pretende esgotar o assunto, mas sim servir como disparador de um processo que pode e deve ser amplificado, buscando as ramificações dessas histórias que aqui trouxemos. Como proposto por Lélia, exercitar a amefricanidade requer que conheçamos nossas histórias e que, além disso, possamos cunhar também o poder de narrar nossa própria vivência a partir de nossos olhares e palavras.
Continuaremos reafirmando nossa luta no Resgate dos ensinamentos das nossas Ancestralidades, Por nós, Por todas nós, Pelo bem-viver!
* Rosa Miranda
Assistente Social Pós-graduada em Gestão Pública e Sociedade Civil.
Educadora em Direitos Humanos e Igualdade Racial, Ativista do Movimento Negro e Mulheres.
Fundadora e Coordenadora do Instituto Lélia Gonzalez, Promotora Legal Popular.
Membra do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de São José dos Campos.
Autora do Livro “Otília Minha Mãe”.
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Esse conteúdo integra o projeto “Amefricanidade, o caminho das mulheres negras”, que aborda o conceito de amefricanidade, criado por Lélia Gonzalez, com especial enfoque e abordagem na população negra feminina, por meio de textos, ilustrações, rodas de conversa e cursos. O curso Baobá encerra o ciclo de atividade do projeto.
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Referências:
Nanny: Pilar da amefricanidade. Publicado originalmente em Humanidades, Brasília, ano IV, v. 17, pp. 23-5, 1988. Transcrição original cedida por Alex Ratts.
GONZALEZ, Lélia. Nanny: Pilar da amefricanidade. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios, Márcia Lima — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Zahar, 2020, pp. 151-158.
Por um feminismo afro-latino-americano. Publicado originalmente em espanhol, com o título “Por un feminismo afrolatinoamericano”, em Isis Internacional — Mujeres por um desarollo alternativo, Santiago, v. 9, pp. 133-41, jun. 1988. (Mujeres, crisis y movimiento: América Latina y el Caribe). Traduzido para esta edição por Catalina G. Zambrano.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios, Márcia Lima — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
A categoria político-cultural de amefricanidade. Publicado originalmente em Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92-3, pp. 69-81, jan./jun. 1988.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios, Márcia Lima — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Zahar, 2020, pp. 127-138.
Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Cláudia Pons Cardoso UNEB – Universidade do Estado da Bahia. Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/TJMLC74qwb37tnWV9JknbkK/?lang=pt. Acessado em 06/12/2021.
CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, set./dez. 2014, pp. 965-986. Disponível em:<https://www.scielo.br/j/ref/a/TJMLC74qwb37tnWV9JknbkK/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 6 de dezembro de 2021.
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