UM VILÃO ABOBRINHA | Encontro com o ator Pascoal da Conceição

29/09/2023

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Pascoal da Conceição celebra 70 anos de vida e relembra personagens ICÔNICOS da carreira, como o especulador imobiliário do Castelo Rá-Tim-Bum

POR LUNA D’ALAMA

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Ele foi bancário concursado, com dez anos de carreira, antes de abandonar a profissão da vida real para encarnar diversos personagens na ficção. Mais velho de seis irmãos, o ator Pascoal da Conceição cresceu na zona leste de São Paulo, em meio a espetáculos de teatro, encenações de missas e experimentos lúdicos da mãe, costureira e lavadeira que tentava disfarçar para os filhos as dificuldades financeiras que atravessavam.

Na escola, o estudante se destacava nas aulas de leitura, virou mestre de cerimônias nas festas de formatura, e daí para os palcos foi questão de tempo. Seu primeiro curso formal de teatro foi no Sesc Carmo, há mais de 50 anos, com o dramaturgo e diretor Caetano Martins. Depois, entrou para a Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP), a qual cursou dois anos. Foi nesse período que conheceu José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) e seu Teatro Oficina – e por lá ficou, apaixonado. Desde os anos 1980, Pascoal da Conceição atuou em vários espetáculos da companhia, como Ham-let (1993), As Bacantes (1996), Mistérios gozozos (1994), Pra dar um fim no juízo de Deus (1996) e Taniko, o rito do vale (1997). Também trabalhou com diretores como Bibi Ferreira (1922-2019) e Carlos Alberto Soffredini (1939-2001).

Num salto para as telas, integrou o elenco de novelas, minisséries e filmes. Na televisão, ficou muito conhecido pelo vilão do programa Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura: Dr. Abobrinha, um especulador imobiliário cujo maior desejo era derrubar a edificação para construir, no lugar, um prédio de cem andares. Em 2024, o programa (que foi transmitido entre 1994 e 1997) completará 30 anos, e Conceição continua sendo reconhecido pelo papel. Foi até salvo de um assalto por conta disso, nos anos 2000. Mas sabe quando duas pessoas são tão parecidas que parecem “separadas no nascimento”? É o que acontece com o ator e seu personagem real mais famoso, o poeta Mário de Andrade (1893-1945): os dois nasceram no mesmo dia, com um intervalo de 60 anos. E é neste 9 de outubro que Conceição completa 70 anos de idade, preparando-se para encarnar novamente o poeta, desta vez sobre um dos carros alegóricos da Mocidade Alegre, no Carnaval de 2024 – ano em que a escola de samba paulistana homenageia a obra Pauliceia Desvairada (1922). Neste Encontros, o artista fala sobre sua trajetória pessoal e profissional, o encontro com Zé Celso, relembra personagens marcantes e celebra sua participação na 19ª edição do Festival Internacional Teatro de Inverno [FITI], realizada no primeiro semestre, em Moçambique.

vIAGEM PELA ANCESTRALIDADE

Faz 20 anos que comecei a me preocupar mais com a minha ancestralidade. Recentemente, fiz um teste de DNA e vi que tenho raízes indígenas, negras e europeias. Sou filho de pai negro e mãe branca. Minha bisavó materna, Dona Chiquinha, era espanhola e veio ao Brasil no período entreguerras, assim como outros milhões de imigrantes. Eram pessoas muito simples e pobres. Minha avó materna e minha mãe nasceram em Minas Gerais, em um lar de lavradores de café. Meu avô, José Jacinto Ferreira, cuja mãe era indígena, me ensinou o que é o amor. Ele era fotógrafo de lambe-lambe e me levava para passear de bonde e ver os arranha-céus no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Eu achava deslumbrante essa cidade apinhada de gente! Do lado paterno, minha bisavó já nasceu do Ventre Livre [lei abolicionista que determinava que os filhos de escravizadas nascidos a partir de 1871 seriam considerados livres], enquanto meu bisavô era um homem escravizado, depois liberto com a Abolição. Meu pai é da região de Itatiaia, no Rio de Janeiro. Uma tia chamada Polaquinha – cunhada da minha avó – era mãe de santo em um terreiro de Itatiaia. Nosso núcleo familiar era católico, mas ela nos visitava. Além disso, aprendi a ler com os gibis do meu avô, passava as férias na casa dele. Ele e minha avó se mudaram para São Paulo, e meus pais se conheceram numa ocupação, na periferia. Eu nasci quando minha mãe tinha apenas 16 anos. Ela já não está mais entre nós, mas meu pai ainda está vivo. Minha família paterna é longeva. Sou o irmão mais velho de seis irmãos. Minha mãe era costureira e lavadeira, enquanto meu pai era policial militar, linha-dura. Quando eles saíam para trabalhar, era eu quem cuidava dos irmãos e fazia comida.

INFÂNCIA LÚDICA

Sempre fiz teatro, desde pequeno. Minha mãe brincava muito comigo e com meus irmãos, era muito lúdica. Eu gostava de encenar missas em casa, fazia o papel de padre, comia pão fingindo que era hóstia, era uma delícia. Usava roupas da minha mãe, o batom dela em outras peças. Não me recordo de ter passado fome, mas lembro de uma época em que comíamos em latas de sardinha, só feijão, como em filmes norte-americanos. A gente achava isso o máximo, lindo! Tudo era lúdico. Minha mãe se virava economicamente enquanto nos divertia. A gente adorava ir ao mercado uma vez por mês para comprar arroz e feijão. Era uma festa, uma loucura receber tudo aquilo. A infância foi um período riquíssimo para mim. Hoje, construo meus personagens dentro de uma identificação espiritual, mágica, que aprendi quando criança.

TEATRO OFICINA

Entrei na Escola de Arte Dramática (EAD) da USP em 1981. Quando eu estava no segundo ano, minha professora de história do teatro brasileiro dividiu a classe em quatro grupos: o meu ficou com o Teatro Oficina. No percurso desse estudo, a gente encontrou o José Celso Martinez Corrêa na rua. Abordamos ele, explicando que queríamos contar a história do Oficina, como se já não existisse mais. E ele nos disse que ainda estava atuante. Também nos contou a situação que começava a se configurar, da compra do teatro pelo Grupo Silvio Santos. Então, o convidamos para fazer um workshop na EAD, e ele fez uma oficina sobre o espetáculo Mistérios gozosos, inspirado na obra de Oswald de Andrade (1890-1954). Depois disso, o Zé nos contou que estava numa situação de emergência, sozinho, sem elenco. Era um tempo em que ele ainda era muito outsider, marginal, tinha acabado de voltar do exílio e estava num ostracismo absoluto. Depois melhorou, e eu tenho a honra de ter ouvido o Zé Celso dizer que fui uma das pessoas responsáveis por isso. Em 1992, ele nos convidou para trabalhar no Oficina e defender o teatro. Colaborei com o tombamento e a desapropriação do terreno, conheci os arquitetos Lina Bo Bardi (1914-1992) e Edson Elito, responsáveis pela reforma do espaço. A areia que cobre o chão do Oficina e as madeiras foram eu que comprei.

EXPANSÃO DO SONHO

Zé Celso nos mostrava numa maquete como ficaria o Teatro Oficina e eu, lá da Vila Prudente, não acreditava. E o Zé reclamava disso: ele dizia que a expansão do sonho brasileiro tinha se reduzido muito, que a gente estava sonhando pequeno em relação à década de 1950, quando chamavam o Brasil de “país do futuro”. Ou seja, o sonho daquela geração era grande, e a gente se reduziu, adotou um orçamento mental cada vez menor. Naquela época, o Zé já falava em montar As Bacantes (1996) e Os Sertões (2002-2006), mas, sinceramente, era difícil de acreditar. Até porque a gente passou pelo período da ditadura, e ela foi a grande responsável pela redução das nossas expectativas e dos nossos sonhos. Eu e Zé Celso tínhamos uma intimidade humana, corporal, muito grande. E uma das coisas mais fortes do teatro – sobretudo no Oficina – é justamente o corpo. Sofri muito com a morte dele, tenho chorado para cachorro, como diz a música Sujeito de Sorte, do Belchior (1946-2017). Assim como Glauber Rocha, Zé Celso é um herói nacional. Ele teve que assumir esse papel por conta da difícil situação em que a gente vive, culturalmente. O Zé foi uma pessoa identificada com todas as lutas de libertação e de renovação que estão caminhando com a humanidade.

Stig de Lavor

Vestido de Mário de Andrade em celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o ator apresentou o espetáculo Caleidoscópio Musical junto aos músicos Fabio Martino (piano) e Alejandro Aldana (violino), no Theatro Municipal de São Paulo.

Foto: Stig de Lavor

VILÃO DO CASTELO

Trabalhar no Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura, foi uma maneira de retribuir tudo o que, na minha infância, ganhei de lúdico, de fantasia e de cultura da minha mãe. Eu já tinha quase 40 anos quando fui fazer o Dr. Abobrinha [apelido de Dr. Pompeu Pompílio Pomposo]. Sinto uma honra, um prazer de ter feito esse personagem. Quando penso nisso, fico emocionado com a chance mágica que tive de interpretá-lo. Antes do teste, eu fazia locução para programas de natureza da BBC, na TV Cultura, em 1992. Certo dia, alguém me pediu uma carona, mas disse que antes faria um teste para um novo programa chamado Castelo Rá-Tim-Bum. Eu falei que queria tentar também. Na época, já tinha participado do tombamento e da desapropriação do Teatro Oficina, então conhecia bastante sobre a história da especulação imobiliária em São Paulo. Fiz, inicialmente, o teste para o Dr. Victor [personagem interpretado por Sérgio Mamberti, 1939-2021]. Mas o diretor, Cao Hamburger, disse que queria me avaliar em outro personagem, que eles ainda não sabiam exatamente como seria. Ele perguntou se eu toparia fazer um laboratório para inventar umas histórias para esse personagem, e me contou que seria um especulador imobiliário cujo maior desejo era derrubar o castelo para, no lugar dele, construir um prédio de cem andares. Cao, então, me pediu para improvisar algo. E comecei a brincar com o que já sabia, dizendo que a cidade seria toda derrubada. A primeira vez que entrei, improvisei algo falando mal das crianças, e o diretor me alertou que eu não era inimigo delas, mas deveria focar no meu objetivo, que era comprar o castelo. A gente gravava um episódio por semana, se reunia, discutia, era bem puxado. Esse negócio de “meu, meu, meu” foi inventado depois que começaram as filmagens, porque a gente tinha muita liberdade de criação. Mas um dia eu fiz tanto “meeeeeu” que o diretor disse que o máximo seriam cinco vezes.


SALVO DE ASSALTO

Até me livrei de um assalto por causa do Dr. Abobrinha. Era uma manhã de março, no início dos anos 2000. Minha mãe estava no hospital, já no fim da vida. Saí de casa mais cedo para gravar algumas coisas num estúdio, e depois iria visitá-la. Entrei no carro, abri as janelas para sair aquele calor, quando vi na contramão um jovem branco de capacete tipo Darth Vader, óculos escuros e uma mala. Ele encostou e pediu o celular. Não entendi direito, aí ele tirou uma pistola e apontou para dentro do veículo. Entreguei o aparelho e, então, o rapaz me pediu a senha do armazenamento em nuvem, para desbloquear o telefone. Eu respondi que não lembrava, não tinha memorizado mesmo, e também estava nervoso naquela hora. Em seguida, o cara me pediu a carteira, que estava numa mochila no banco de trás. Nisso, saiu para fora a ponta de um microfone. Ele exigiu o microfone e o computador. Aí olhou bem nos meus olhos e perguntou o que eu fazia. Disse que era ator, o Dr. Abobrinha do Castelo Rá-Tim-Bum. Ele parou, olhou para mim e falou: “Dr. Abobrinha, me perdoa? Continua fazendo a alegria das crianças. Vai com Deus!”. Me devolveu tudo e foi embora. Vi um assaltante desumano se transformar numa criança. Fiquei no carro chorando, e toda vez que lembro disso ainda é muito forte, até hoje me emociono.

MÁRIO DE ANDRADE

Já tinha lido na escola sobre o movimento modernista e seus expoentes, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira. Um dia, na década de 1990, ao sair do meu prédio, o porteiro brincou que eu estava no jornal. Fui ver e era o anúncio sobre a nota de 500 mil cruzeiros que estava saindo com o rosto do Mário. Achei a gente parecido pra caramba! Hoje, no Google, aparecem mais fotos minhas vestido de Mário de Andrade do que as originais do escritor. Aliás, uma vez fui ao cinema no Belas Artes, onde tem uma sala batizada com o nome dele, e encontrei um pôster de dois metros de altura, com uma imagem minha. O estagiário deve ter procurado uma foto do Mário na internet e achou aquela com uma resolução muito melhor. Esse, ao contrário do Dr. Abobrinha, é um personagem que existiu. Então li muito sobre ele, sobre a obra dele, fui investigando e descobrindo coisas. É um homem que, como eu, tem uma parte da família branca e outra preta, é um tipo absolutamente brasileiro, misturado. Ele escreveu sobre patrimônio, música, folclore. Já participei, inclusive, de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura do Piauí trajado de Mário de Andrade, e presidi a sessão. Minha avó era benzedeira, médium, e me ensinou a ser muito respeitoso com as entidades, senão “apanhamos” delas. Sei que ele gostava de se vestir bem e de falar segundo a norma culta da língua, então me aproprio disso.

FESTIVAL MOÇAMBICANO

Representei o Brasil no Festival Internacional Teatro  de Inverno (FITI), em Moçambique, entre maio e junho deste ano. Nunca tinha viajado tanto de avião, foram 23 horas de voo em cada trecho. Fiquei uma semana participando de oficinas de teatro, falando sobre métodos de trabalho, maneiras de pensar e de criação em transe, que é algo ancestral. Foi maravilhoso, com muitas trocas e relações. Hospedei-me em um bairro chamado Mafalala, onde começou a revolução anticolonialista na década de 1960, e que só terminou em 1975. É uma comunidade negra, como se fosse uma Rocinha gigante, e eu experienciei a vida lá dentro, conheci poetas e muita gente das artes. Foi um aprendizado de luta, de resistência de guerra. No meu último encontro particular com o Zé Celso, no apartamento dele, conversamos bastante sobre Moçambique, sobre a experiência do Teatro Oficina naquele país. O pessoal lá conhece eles. Inclusive, o Oficina produziu na década de 1970 um média-metragem chamado O Parto, que trata da Revolução dos Cravos, em Portugal, e da libertação das colônias. As ruas do centro da capital Maputo têm nomes de revolucionários do mundo todo. Andar por lá é fazer um passeio pelo histórico recente do planeta, do ponto de vista da esquerda, do socialismo. Foi uma experiência fantástica, quero voltar.

CULTURA VIVA

Mário de Andrade dizia que a burguesia tende a colocar o folclore num lugar primitivo. O folclore não é menor nem primitivo. Atualmente, os materiais de sua missão de pesquisas folclóricas têm valor jurídico para demarcação de comunidades indígenas e quilombolas, o que pode alimentar, inclusive, a votação do marco temporal. O Zé Celso sempre falava do marco temporal, tanto que a última peça que ele estava montando era A Queda do Céu, de Davi Kopenawa. Mário de Andrade também dizia com muita clareza: a cultura tem que ser útil, não utilitária. É uma noção de cultura ligada à vida. Quando foi votado e aprovado o Plano Diretor de São Paulo, em 2014, havia vários sem-teto acampados em frente à Câmara Municipal, e eu apareci caracterizado de Dr. Abobrinha. Falei no caminhão de som que, como Dr. Abobrinha, eu queria a minha parte nessa cidade, porque ela é minha. Brinquei um pouco com isso. Falei até no plenário da Câmara [dos Vereadores de São Paulo] vestido desse personagem, porque o vereador na época me conhecia como Dr. Abobrinha. Tudo isso parece loucura, mas tem um método evidente. A gente trabalha com o futuro, mudando a nossa maneira de ser e de ver.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o ator Pascoal da Conceição, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 30 de agosto de 2023. A mediação do bate-papo é da jornalista Silvia Garcia, da equipe de programação do SescTV.

Bate-papo com Pascoal da Conceição para o podcast do Encontros. Edição: Carol Mendonça

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