Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra
Estava prevista para este ano a revisão da lei que determina a reserva de 50% de vagas em instituições de ensino federais para candidatos negros, indígenas, estudantes de escola pública e pessoas com deficiência e de baixa renda. Ou seja, grupos historicamente excluídos desses espaços. Criada em agosto de 2012, a Lei de Cotas prevê uma revisão a cada dez anos, com o objetivo de avaliar resultados e sugerir mudanças.
Como foi adiada, especulações e receios ganham discussões. “Na prática, o efeito das ações afirmativas foi o de mudar a fotografia do ensino superior no Brasil. Ela permitiu que mais integrantes da população negra e indígena acessem o ensino superior. Em 2018, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos – 50,3% – ultrapassou, pela primeira vez, o de alunos brancos nas instituições de ensino públicas brasileiras”, destaca Allyne Andrade, doutora e mestre em direito e autora do livro Direitos e Políticas Públicas Quilombolas (D’Plácido, 2020).
Mesmo assim, “há quem esteja aproveitando o momento para propor a descontinuação das cotas para alguns segmentos”, alerta Regimeire Oliveira Maciel, mestra e doutora em ciências sociais e professora de políticas públicas e economia política. Maciel dá como exemplo o Projeto de Lei 4.125/2021, “que pretende revogar os artigos da lei que preveem a reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas e pessoas com deficiência”.
A fim de refletir sobre esse panorama, neste Em Pauta, Andrade e Maciel, que participaram do bate-papo Lei de Cotas: Balanços e Perspectivas, em janeiro deste ano, pelo projeto Sesc Ideias, traçam reflexões do que está por vir. A seguir, assista ao bate-papo conduzido por elas e, em seguida, leia os artigos escritos pelas duas pensadoras para a Revista E!
A Lei 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas, completa uma década. Ela começou a ser implementada em 2013, e estabelece a reserva de 50% de vagas em instituições de ensino federais para candidatos negros, indígenas, estudantes de escola pública e pessoas com deficiência e de baixa renda, isto é, integrantes de grupos historicamente excluídos desses espaços. Como funciona? O mecanismo é complexo.
As vagas reservadas às cotas são subdivididas. Dentro desse percentual, metade das vagas é destinada a estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita, o que equivale hoje ao valor de R$ 1.818,00. A outra metade é concedida para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a esse valor.
Em ambos os casos, também é levado em conta um percentual mínimo correspondente à soma de pretos e pardos (negros) e indígenas no estado. Para concorrer às vagas reservadas, pretos, pardos e indígenas precisam apresentar uma autodeclaração e, em algumas instituições, passar por uma comissão de avaliação. No caso de pessoas com deficiência, é solicitada a apresentação de autodeclaração e laudo médico.
As cotas são a modalidade de um gênero mais abrangente denominado ações afirmativas, que “são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócioeconômica no passado ou no presente”, como define João Feres Júnior, coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, no livro Ação Afirmativa: Conceito, História e Debates (EdUERJ, 2018).
Segundo o autor, “trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de classe ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.”
Em outros países
As ações afirmativas não são exclusividade do Brasil. A Índia foi pioneira na implementação das políticas afirmativas ao adotá-las como parte da legislação, em 1950, como reparação da exclusão social resultante do sistema de castas. Nos Estados Unidos, foram implementadas na década de 1960 para promoção da equidade racial. Desde então, as ações afirmativas são adotadas em diversos países.
O tema é uma pauta histórica do Movimentos Negros Brasileiros. O assunto foi levado por esse movimento como reivindicação na Marcha Zumbi dos Palmares, que levou ativistas de todo país para a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no ano de 1995. Mas já era uma reivindicação desses movimentos pelo menos desde a década de 1970.
Apesar de a lei federal ser de 2012, as cotas começaram a ser adotadas em 2003, majoritariamente em universidades estaduais, por meio de resoluções internas ou leis estaduais. As instituições pioneiras foram a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e a Universidade Estadual da Bahia (UNEB), em 2003. A primeira universidade federal a adotar uma política de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), em 2004. Hoje, as ações afirmativas existem em quase 90% das universidades estaduais do país.
O principal papel da lei federal foi uniformizar as regras para ações afirmativas nas instituições federais de todo o país e garantir reservas efetivas de vagas nas instituições. Quando da sua implementação, somente duas universidades federais no país não contavam com nenhuma modalidade de inclusão, mas havia políticas bastante tímidas e ineficientes.
As cotas nas universidades foram alvos de muita polêmica e muitos ataques na mídia, todos focados nas vagas reservadas para negros. Sua constitucionalidade também foi questionada. O partido Democratas impetrou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), que foi julgada improcedente em 2012 e, portanto, foi reconhecido que as cotas eram compatíveis com a Constituição Federal de 1988.
Mudança na fotografia
Na prática, o efeito das ações afirmativas foi o de mudar a fotografia do ensino superior no Brasil. Elas permitiram que mais integrantes da população negra e indígena acessem o ensino superior. Em 2018, o número de matrículas de estudantes pretos e pardos — 50,3% — ultrapassou, pela primeira vez, o de alunos brancos nas instituições de ensino público brasileiras. Vale lembrar que os negros são 56% da população brasileira.
Embora ainda haja muito o que fazer no que tange à inserção no ensino superior, em especial, em relação a políticas de permanência e formação de novos pesquisadores e docentes, a inclusão promovida nesses 10 anos é concreta. Para além da mudança da fotografia, há um movimento na própria forma de construir o saber nesses espaços. Novos corpos trazem outras visões de mundo, experiências e saberes para o cenário acadêmico, permitindo a construção de um ambiente mais plural e um saber mais bem conectado à realidade do Brasil.
Revisão atual
A lei federal estabelece que no prazo de 10 anos deveria ser realizada uma revisão da implementação da política de reserva de vagas em todo o país. Apesar de prevista a revisão, ela não foi regulamentada, não há regras que digam como ela deveria ocorrer, e esse processo ainda não foi iniciado. Há duas posições jurídicas sobre a não revisão: uma acredita que a lei perderá a eficácia caso não haja revisão; e outra (defendida por mim e pela maioria dos juristas), de que a lei continuará a viger até que seja revogada, independentemente da revisão.
Atualmente, tramitam vários projetos sobre o tema. Alguns propõem a ampliação do prazo para a revisão nacional ou a transformação da Lei de Cotas em política permanente no país. Os demais projetos defendem a exclusão apenas do critério étnico-racial para o acesso ao ensino. As cotas raciais e a inclusão de pessoas negras e indígenas em espaços antes quase exclusivos de pessoas brancas foram as ações que mais incomodaram os que se opõem à iniciativa. Não é à toa que os projetos contrários se concentram apenas nesse aspecto, mesmo com a constitucionalidade decretada e o comprovado sucesso da política.
E o nome desse incômodo é racismo. A ironia é que foram os movimentos negros que defenderam cotas como política pública, não só para si, mas para todos os grupos historicamente excluídos. É preciso ampla mobilização para que o país não retroceda e que se garanta a permanência do sistema e a produção de dados e análises para garantir a contínua inclusão e as fotos coloridas.
Allyne Andrade é advogada, formada em direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e integra a primeira geração de estudantes de ações afirmativas. Doutora e mestre em direito pela Universidade de São Paulo (USP), obteve o LL.M – Master of Laws na área de Teoria Crítica Racial da UCLA School of Law. Professora do Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa em São Paulo, é autora do livro Direitos e Políticas Públicas Quilombolas (D’Plácido, 2020) e integrante do Movimento de Mulheres Negras no Brasil.
Os anos 2000 anunciaram um novo tempo no que diz respeito à chamada questão racial brasileira. É a partir daí que vimos surgir um conjunto de medidas que sintetizou a luta de décadas por igualdade racial no país. Essa mobilização é resultado de muitos passos dados pelo movimento negro brasileiro em diferentes épocas, mas sobretudo a partir da Constituição de 1988.
Ao incorporar elementos da pauta racial, como a criminalização do racismo e o reconhecimento das terras quilombolas, esse ativismo consolidou a denúncia do racismo como elemento organizador da vida social brasileira. E, em 1995, a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida ajudou a ampliar a reivindicação por políticas públicas de combate à desigualdade racial ao exigir do governo federal a construção de políticas públicas específicas para a população negra.
Políticas de ação afirmativa
É nesse cenário que surge um dos principais mecanismos de combate ao racismo nas últimas décadas: as políticas de ação afirmativa. A sua principal modalidade, as cotas raciais, tornou-se realidade a partir do começo dos anos 2000, quando se tem as primeiras experiências de reserva de vagas em entidades públicas: os casos das instituições estaduais do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A partir desse período, diversas universidades passaram a adotar políticas similares e, em 2012, foi aprovada a chamada Lei de Cotas (Lei 12.711/2012), que estabeleceu que 50% das matrículas de institutos e universidades federais devem ser destinadas a estudantes de escolas públicas.
De acordo com o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), em 2018 todas as instituições universitárias federais já contavam com cotas em cumprimento a essa legislação. Com isso, tem-se registrado um aumento considerável da presença de pessoas negras no ensino superior. Em 2018, por exemplo, as instituições públicas contavam com 50,3% de matrículas de pessoas pretas e pardas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Esses dados indicam, assim, que as cotas iniciam a consolidação de um projeto de democratização do ensino superior brasileiro e, consequentemente, permitem também o desmonte de estruturas racistas enraizadas nesse nível de ensino, pois há décadas o ativismo antirracista chamava atenção para o fato de as instituições públicas permanecerem um corpo discente incompatível com a realidade sóciorracial brasileira.
Em discussão
As cotas no acesso aos cursos de graduação nas instituições de ensino superior também inspiraram importantes mudanças em outros campos. Por exemplo, as demandas e debates associados a essas políticas que orientaram o estabelecimento de reserva de vagas nos concursos públicos federais, por meio da Lei 12.990/2014, e também nos cursos de pós-graduação. Neste último caso, por mais que não se tenha uma legislação nacional, até 2021, segundo o Observatório de Ações Afirmativas na Pós-Graduação (OBAAP), 54,3% dos programas de pós-graduação de universidades públicas adotaram políticas de ação afirmativa no acesso.
É a partir desse contexto que a Lei de Cotas tem sido rediscutida neste ano. A própria lei prevê esse processo. No entanto, há sinalizações de diferentes ordens. Há, por exemplo, quem esteja aproveitando o momento para propor a descontinuação das cotas para alguns segmentos, como pode ser visto no Projeto de Lei 4.125/2021, que pretende revogar os artigos da lei que atualmente preveem a reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas e pessoas com deficiência. No entanto, há também uma ampla mobilização para a manutenção da Lei de Cotas na sua totalidade.
Esse é o caso do Projeto de Lei 5384/2020, que aguarda discussão em plenário e prevê a alteração da Lei nº 12.711/2012, tornando permanente a reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior e ensino técnico de nível médio.
Cabe destacar que o debate pela manutenção dessa política, tal qual ocorreu no começo dos anos 2000, conta com a intensa participação do ativismo negro, exemplificado aqui pela atuação da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e a Coalização Negra por Direitos. São esses sujeitos que têm sustentado a compreensão de que não se pode descontinuar uma política que tem respondido tão fortemente ao racismo brasileiro.
Nesse sentido, a sociedade brasileira mais ampla também precisa assumir uma postura de defesa dessas políticas. Elas não significam apenas a possibilidade de se ter um ensino superior mais condizente com a diversidade entre nós existente, mas também têm se constituído como umas das poucas medidas capazes de questionar as bases de uma das mais importantes instituições brasileiras – as universidades públicas – mantidas, até o início dos anos 2000, quase intocadas do ponto de vista das discriminações estruturais que nos constituem. Se quisermos continuar condenando e enfrentando tais discriminações, uma saída é seguir percorrendo o caminho aberto pelas ações afirmativas via políticas de cotas.
Regimeire Oliveira Maciel é graduada em ciências sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestra e doutora em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora de políticas públicas e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial da UFABC (Universidade Federal do ABC) e coordenadora do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros (NEAB), da mesma instituição.
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