Espetáculo idealizado pelo Sesc São Paulo está em cartaz no Teatro Antunes Filho (Sesc Vila Mariana), na capital paulista
Com múltiplos olhares sobre as questões do Brasil contemporâneo e especialmente a participação da mulher negra como agente da história, ‘Uma Leitura dos Búzios‘, espetáculo idealizado pelo Sesc São Paulo, estreou na última sexta-feira (18), no Teatro Antunes Filho (Sesc Vila Mariana), às 21h. A atração, que aborda o racismo e a manipulação da história, é idealizada a partir do movimento político que aconteceu em Salvador (BA), em 1798, conhecido como Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates — inspirado nos ideais da Revolução Francesa (1789 – 1799) e na Revolta de São Domingos, atual Haiti (1791 – 1804).
A peça musical, coreográfica, videográfica e textual com participação de atores de todo o país tem a encenação de Marcio Meirelles, colaboração de Cristina Castro e João Milet Meirelles e texto de Monica Santana. Os ingressos podem ser adquiridos presencialmente e no site do Sesc São Paulo. O espetáculo fica em cartaz até fevereiro de 2023.
A doutora e mestre em Artes pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Monica Santana, 43 anos, que assina a autoria da peça, explica que, ao trazer a voz de mulheres negras do nordeste para a perspectiva de uma narração , tanto as atrizes quanto ela fazem esse deslocamento. “A gente traz outras perspectivas de nação e também aponta o nosso lugar em um momento constante de criminalização das artes e da cultura, nos entendemos como parte das disputas por resistência, somos um campo de luta e de resistência”, defende.
Sufocamento da participação política: passado e presente
Ao se inserir na disputa de narrativa, a autora mostra no espetáculo o tensionamento e, ao mesmo tempo, reivindica esse lugar de protagonismo de negros dentro dela. “A gente vai mostrando os tensionamentos para a narração dessa história. E eu posso dizer que ‘Uma Leitura dos Búzios’ se insere também na disputa das narrativas sobre contar as histórias, especialmente da segunda metade do século XX, quando a gente tem uma emergência dos movimentos negros no Brasil. E essa emergência vai criticar o apagamento da história da Revolta dos Búzios. A negligência, o modo como os personagens dessa história eram menosprezados, tinham sua inteligência menosprezada, tinham sua capacidade de organização menosprezada, seu desejo de participação política menosprezado“, argumenta.
O musical possui diferentes referências de musicalidade negra, que convoca de maneira didática a importância de trabalhar com uma história que pouco foi contada para as gerações mais recentes. “Teve uma série de disputas históricas e foi negligenciado contar essa história na perspectiva contemporânea, numa perspectiva certificada de movimento, de canto, de dança, de utilização do audiovisual, e de muita gente em cena. Temos um elenco diverso. Atores, atrizes de diferentes regiões do Brasil“, explica Santana.
A autora ainda afirma que esse olhar sobre o passado faz com que os negros compreendam o movimento de repetição existente dentro da história e sejam motores para compreender as forças retrógradas do passado e do presente, da negligência e falta de protagonismo ao sufocamento causado pela repressão e tentativas de golpes contra a democracia. “Tem setores da sociedade reivindicando nas ruas liberdade, mas uma liberdade para censurar e matar“.
“A gente o tempo todo faz esse olhar para o passado e presente. Até porque a gente olha pra essa história dos referenciais que a gente tem no presente. Essa história nos serve para pensar sobre o sufocamento da participação política, da liberdade, que não é a mesma para todo mundo. A depender de cada ponto de vista, de quem fala e de que segmento da sociedade, essa liberdade vai ganhar um contorno bastante diferente“, ressalta a dramaturga Monica Santana.
Uma revolta baiana
O levante popular, inspirado nos ideais da Revolução Francesa (1789 – 1799) e na Revolta de São Domingos, atual Haiti (1791 – 1804), vai acontecer em Salvador (BA), em 1798, como uma resposta à crise socioeconômica que uma parcela significativa da população soteropolitana enfrentava. Nesse momento, a Coroa Portuguesa mantinha seu poder político e econômico, e donos de engenho e integrantes da alta burocracia da colônia prosperavam. A Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates ganhou o apoio das elites locais, insatisfeitas com o tratamento da Coroa Portuguesa, que via no pacto colonial a possibilidade de aumentar os lucros, o poder econômico e político. Essa parcela da população começa a abandonar esse movimento quando ele passa a se popularizar e se radicalizar, tendo a participação de milicianos, artesãos e escravizados, que lutavam por liberdade, igualdade e justiça.
Alguns nomes que tiveram envolvimento na revolta ganharam destaque, como o médico Cipriano Barata e o tenente Aguilar Pantoja, além do envolvimento da população negra: Lucas Dantas (soldado), Manuel Faustino (aprendiz de alfaiate), Luiz Gonzaga das Virgens (soldado), João de Deus (mestre alfaiate) e Luíz Pires (ourives), que chegaram a ser presos, enforcados em praça pública e esquartejados, à exceção do ourives Pires, que nunca foi encontrado. A violência contra os representantes das classes mais populares se deu por conta da forte repressão do governo à época.
O doutorando em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Vinicius Bonifacio destaca que o estopim para resistência popular se deu por conta da saída da concentração do poder de Salvador, a província baiana que iria perder essa hegemonia e os ideais revolucionários franceses, como liberdade, igualdade e fraternidade e inspiração da revolta do atual Haiti. Para o especialista, a revolta traz como desdobramento a capacidade das diferentes classes se juntarem.
“Nós estamos vendo atualmente, pensando no âmbito acadêmico, o papel da academia, das universidades e de nós pretos dentro da universidade nos aquilombarmos, aglutinarmos e deliberarmos mesmo para os outros, que estão ali na sociedade e querem ajudar, querem se manifestar, mas não sabem. Nós estamos com esse papel e sendo punidos. Ainda tem isso, a sociedade está nos punindo, nos perseguindo, a universidade é um lugar de balbúrdia, a universidade é isso, é aquilo. Eu considero como um grande desdobramento, da Revolução dos Alfaiates“, acrescenta.
Texto: Jean Albuquerque | Edição: Elias Santana Malê | Imagem: Alma Preta Jornalismo
Este texto foi publicado na plataforma da Alma Preta Jornalismo – www.almapreta.com
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