Verônica Hipólito reflete sobre a carreira de velocista, enquanto treina para Paris 2024

27/10/2023

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MEDALHISTA PARALÍMPICA E RECORDISTA SUL-AMERICANA, ATLETA COMPARTILHA DESAFIOS E REFLEXÕES ENQUANTO SE PREPARA PARA AS PRÓXIMAS COMPETIÇÕES

POR LUNA D’ALAMA 

Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Aos 27 anos, a atleta paralímpica Verônica Silva Hipólito acumula a experiência de quem já viveu muitas vidas. Antes de se identificar com as pistas e a velocidade – que lhe renderam quatro medalhas de ouro nos 100, 200 e 400 metros rasos em Mundiais e Jogos Parapan-Americanos desde 2013, além da quebra de recordes brasileiros e sul-americanos –, a jovem já havia experimentado de tudo no esporte: natação, vôlei, basquete, handebol, futebol, tênis de mesa e de campo, modalidades de praia e judô. Encantou-se por esse último, mas um tumor cerebral descoberto aos 12 anos a impediu de continuar nos tatames. Após a cirurgia, seus pais, que também eram adeptos da atividade física regular, a inscreveram num festival de atletismo. “Levei um couro numa corrida de 50 metros. Mas sou muito competitiva, e saí de lá falando que um dia ainda seria a garota mais rápida de Santo André (SP)”, lembra. 

As dificuldades com a saúde física, porém, não pararam por aí: em 2011, aos 14 anos, Verônica sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), que paralisou todo o seu lado direito. O atletismo foi a forma que ela encontrou para voltar a andar, na fase de reabilitação. Hoje, a atleta tem menos força e coordenação motora desse lado, seus músculos estão sempre contraídos, e ela sente dores para caminhar e correr. Por essas razões, compete na classe T37, uma categoria para profissionais da velocidade com transtorno do movimento e falta de coordenação de grau moderado em um dos lados do corpo. Em 2015, a jovem ainda enfrentou uma cirurgia para retirada de vários tumores do intestino grosso, e o tumor cerebral voltou outras vezes, a última delas em 2021. Além da operação, Verônica fez sessões de radioterapia. E também teve dois mini-AVCs no ano passado. 

Enquanto passava por tudo isso, a atleta conquistou suas primeiras medalhas mundiais em Lyon, na França, e se profissionalizou em 2014, quando fechou o primeiro contrato. Hoje, Verônica treina de segunda a sábado e, à noite, faz faculdade de economia e políticas públicas na Universidade Federal do ABC (UFABC). Pensa, futuramente, em atuar no setor de economia esportiva ou meio ambiente. Em 2019, fundou o Time Naurú (que em tupi-guarani significa “herói”, “guerreiro”), projeto que leva a prática esportiva para pessoas com e sem deficiência, em Santo André, São Paulo, Botucatu (SP), Maringá (PR) e Brasília (DF). Desde 2021, a atleta também passou a atuar como comentarista do canal SporTV. Neste mês, ela comenta os Jogos Parapan-Americanos, realizados em Santiago, no Chile. Bem-humorada, curiosa e inquieta, Verônica já sonha com as Paralimpíadas de Paris, em 2024. E, no Depoimento a seguir, ela fala sobre sua trajetória, capacitismo e desafios da carreira, entre outros temas.

Característica 

A deficiência é uma parte da pessoa, às vezes um momento. Não é a nossa vida. Eu tenho uma paralisia, a Rosinha Santos [medalhista paralímpica no arremesso de peso e lançamento de disco], por exemplo, tem uma amputação da perna esquerda. Somos assim, da mesma forma que outras pessoas têm cabelos cacheados, são ruivas, altas ou baixas, gordas ou magras, usam óculos. Não ter uma perna ou um braço, ou ter uma paralisia no corpo, é apenas uma característica. Tenho certeza de que existem muitas pessoas com deficiência no Brasil que poderiam bater nossos melhores competidores. Só que não as encontramos, porque a maioria é marginalizada, esquecida. Por isso, sou uma lutadora da causa. Alguns dizem que quero lacração, mas chamo de garantia de direitos. Alguém tem que começar, pois precisamos de maior visibilidade. 

Capacitismo 

É quando você supõe que uma pessoa com deficiência não tenha capacidade para algo, em relação a uma pessoa com corpo padrão, e a discrimine por causa disso. Quando alguém diz: “Você é cego, que não achou isso?”, eu pergunto: Um cego não pode achar as coisas? Vai na casa de um cego para ver como é tudo organizado. Capacitismo é também quando alguém vê uma pessoa com deficiência na rua e a olha como se fosse um alienígena. Aí começa a pensar em tudo o que aconteceu na vida dela, como será que vai ao banco, quem é que cuida dela. Quem disse que nós precisamos de alguém para fazer as coisas para a (e pela) gente? O capacitismo é também estrutural quando não há intérprete de Libras em uma palestra, por exemplo, ou uma rampa de acessibilidade, ou o elevador para cadeirante não funciona. Como a gente pode mudar esse cenário? Perguntando o que eu posso fazer, como incluir, como falar. E é essencial fazer o “teste do pescocinho”: olhar ao redor para ver quantas pessoas com deficiência estão no mesmo lugar que você hoje. A gente tem que fazer isso todos os dias.

ALGUNS DIZEM QUE QUERO LACRAÇÃO, MAS CHAMO DE GARANTIA DE DIREITOS. ALGUÉM TEM QUE COMEÇAR, POIS PRECISAMOS DE MAIOR VISIBILIDADE

Verônica Hipólito

Comparações 

Como existem vários tipos de deficiência, o esporte paralímpico tem vários tipos de 100 metros ou arremessos de peso no atletismo, por exemplo. Enquanto no olímpico, há apenas a divisão entre masculino e feminino. É por isso, também, que há um maior número de medalhas nas Paralimpíadas, porque são mais categorias em disputa. Aliás, esses são dois movimentos esportivos diferentes, então é impossível compará-los. É importante equiparar, porém, a visibilidade que a mídia dá aos atletas e paratletas. A skatista Rayssa Leal [Fadinha] brilhou nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, e o velocista Petrúcio Ferreira [ouro nos 100 metros e bronze nos 400 metros da classe T47] também, mas menos gente o viu. E ele é o atleta paralímpico mais rápido do mundo, um brasileiro. Os dois merecem grandes coberturas e reportagens especiais. Além da questão da visibilidade, há uma grande diferença nos cachês. Enquanto uma medalhista paralímpica que conheço já recebeu R$ 4 mil por publicidade, uma atleta sem medalha olímpica chegou a ganhar R$ 100 mil pelo mesmo trabalho. Precisamos fazer essas críticas.

Inspirações 

Minha maior inspiração são meus pais, que me ensinaram que não adianta ser a(o) melhor atleta do mundo se você for arrogante. Inspiro-me também em atletas que vieram antes de mim e que são exemplos de superação, como o suíço Marcel Hug, que corre em cadeira de rodas; o saltador alemão Markus Rehm, que é amputado e utiliza prótese abaixo do joelho direito; a velocista cubana Omara Durand, que tem baixa visão; e o velocista brasileiro Yohansson Nascimento, atual vice-presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), entre outros. A Omara Durand, por exemplo, tem mais de 30 medalhas de ouro no currículo, nunca perdeu uma prova sequer. Já o Marcel Hug – conhecido como “Bala de Prata”, por seu capacete prateado – conquistou quatro medalhas de ouro nas Paralimpíadas de Tóquio e outras duas no Rio, só para citar os eventos mais recentes. Eles mostram para o mundo que deficiência física não significa incapacidade, mas uma característica particular deles. Eu, como atleta, também me vejo inspirando outras pessoas, dentro e fora das pistas. Acho que é minha obrigação. Quando marco presença nas Paralimpíadas Escolares, realizadas no Brasil desde 2009, para crianças com deficiência, conheço vários participantes pelo nome e sempre os incentivo a continuar. 

Representatividade

Creio que tenho muita representatividade no esporte, mas ainda há muitos lugares que quero ocupar, aonde pretendo chegar. Quero ajudar a inspirar outras pessoas, a dar voz para muitas delas. Quando vejo um(a) atleta paralímpico(a) desempenhando no mais altíssimo rendimento, percebo que a amputação não é o problema, nem a cadeira de rodas, nem um AVC. O problema está, de fato, em não termos mais tecnologias assistivas [recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar habilidades funcionais de pessoas com deficiência]. Entendi, por conta da minha família, que ter uma deficiência não era o fim do mundo para mim. O Estado não cumpriu seu papel nesse ponto, e é obrigação do Estado suprir isso. É um direito das pessoas com deficiência. E esta é a minha luta hoje: que essas pessoas também possam sonhar e acreditar que ter uma deficiência não é o fim do mundo.

Gêneros

A gente acabou de ter uma Copa do Mundo de Futebol Feminino, e as jogadoras sempre levantam a bandeira da equidade, seja em relação à visibilidade na mídia ou ao salário. Questões de gênero e machismo aparecem em todos os lugares, no esporte de maneira geral. A gente precisa lutar contra isso. Podemos começar falando de valores: normalmente, um atleta homem recebe mais que uma atleta mulher. E também podemos tratar de roupas: a primeira pergunta que recebi de um repórter após ter conquistado uma medalha de prata nas Paralimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, não foi sobre a prova ou o recorde que quebrei. Foi se eu não achava que meus shorts eram curtos demais, e se isso não incomodaria o meu pai. Acredite, essa é uma pergunta comum. Se as mulheres no atletismo usam shorts estilo balãozinho, dizem que as pernas aparecem demais. Os homens puxam os shorts até aparecer o bumbum, não usam cueca, e ninguém comenta. Quando eles começaram a usar cropped, acharam moderno, e eu realmente acho que roupa não tem gênero, devemos usar aquilo que nos faz sentir bem. Mas quando as mulheres, bem antes, já usavam cropped, eram xingadas, diziam que estavam querendo aparecer. Legging, para eles, é algo considerado estiloso; para a gente é muito colado. Infelizmente, no paralímpico não estamos mais à frente disso que em outros segmentos. Ainda temos muito o que melhorar e debater, e mudar o foco para os nossos resultados.

Mental 

Faço acompanhamento com dois psicólogos, um clínico e outro esportivo. Descobri que tenho crises de ansiedade, e já tive depressão também. Por isso, defendo que, antes de você apresentar algum resultado no esporte de alto rendimento, precisa se preocupar com a sua saúde mental. Para relaxar, gosto de conhecer novos restaurantes, desde que a minha dieta permita. Adoro assistir a séries, documentários, tenho prazer em estudar na faculdade. Amo ficar com meus três cachorros. Além de competitiva, comunicativa e bem-humorada, sou curiosa e não gosto de ficar parada. Curto sair com meus pais para qualquer lugar, sou muito família. Além disso, faço dancinhas nas redes sociais, interajo, discuto política e produzo conteúdo sobre pessoas com deficiência e sobre o movimento paralímpico.  

Políticas 

A política está em tudo o que a gente faz. Fui a primeira atleta paralímpica e a pessoa mais nova a participar da equipe de transição do governo, no ano passado. Precisamos de mais políticas públicas para que as pessoas com deficiência possam sair de casa com autonomia e também consigam praticar esportes, de alto rendimento ou não. O esporte, em si, já inclui muitas dificuldades. Como é que uma pessoa amputada vai sonhar em correr? Uma prótese para uma criança menor de 10 anos custa a partir de R$ 25 mil. Para um adulto, acima de R$ 130 mil. Isso sem falar nos acessórios. Como vou dizer para uma criança cadeirante que uma cadeira de corrida custa a partir de R$ 100 mil e que será preciso encomendá-la nos Estados Unidos ou no Reino Unido, porque a gente ainda não conseguiu desenvolver essa tecnologia? Como incentivar alguém cego ou com baixa visão a correr, saltar, jogar, se não tem bola de futebol com guizo, se não tem como formar um time? O problema, quando a gente fala em esporte para pessoas com deficiência, começa muito antes da prática esportiva. Além do Estado, as instituições também precisam funcionar.   

Cenário

Acredito que estamos bem de investimentos públicos, com programas como Bolsa Atleta e Bolsa Pódio, mas precisamos de mais incentivos privados. Eu, por exemplo, tenho o patrocínio de grandes marcas. São empresas que se preocupam com a equidade entre pessoas com e sem deficiência. É necessário que as marcas parem de pregar inclusão e ESG [sustentabilidade ambiental, social e governança corporativa] apenas na teoria, e comecem a praticar esses temas. Além disso, temos o Centro de Treinamento (CT) Paralímpico Brasileiro, na zona sul da capital paulista, que é um dos cinco maiores e melhores CTs do mundo. Mas precisamos de outros no interior do país, em cidades do Norte e Nordeste. Não precisam ter o tamanho dele, mas necessitamos de pistas, piscinas e quadras espalhadas pelo Brasil, para pessoas de comunidades periféricas. Alguns países nos quais devemos nos inspirar nesse sentido são Estados Unidos, China e Azerbaijão – este último, por sinal, está dando um trabalho danado para a gente. Já nos EUA, as próteses e cadeiras de corrida são mais baratas, e há mais investimentos privados.

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