Vestir-se do outro

31/03/2025

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Aos 97 anos, atriz Laura Cardoso lança filme sobre o abandono de idosos, diz ser realizada com sua carreira e sonha em atuar até o final da vida (foto: Matheus José Maria)

POR MARCEL VERRUMO

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Laura Cardoso nasceu Laurinda de Jesus Cardoso, em setembro de 1927, no tradicional bairro do Bixiga, no Centro de São Paulo. Quando criança, gostava de brincar na rua e desbravar o mundo. Ainda pequena, descobriu sua paixão pela representação. O Brasil era um país onde o rádio era o veículo de comunicação mais popular e, nessa época, ela foi uma adolescente ouvinte de radionovelas, emocionada com suas tramas e personagens. Enquanto as escutava, imaginava que também poderia fazer aquele trabalho. Um dia, criou coragem e desafiou a família, conservadora, ao fazer um teste para atuar como atriz na Rádio Kosmos. “Fui aprovada e quase morri de alegria! Eu comecei assim: fugindo para fazer um teste para trabalhar na rádio”, conta a atriz no documentário Tributo – Laura Cardoso (Globoplay, 2024).  

Em 1950, ano em que a Tupi fez a primeira transmissão televisiva no Brasil, foi convidada para representar nesse novo veículo, então inovador. A teledramaturgia brasileira ainda não tinha gêneros nem linguagem consolidados, como as atuais telenovelas e séries. Por isso, foram produzidos muitos textos escritos originalmente para o teatro, como Hamlet, de William Shakespeare, um dos primeiros teleteatros nacionais. Na mesma década, também foram produzidas as primeiras telenovelas brasileiras, transmitidas ao vivo, devido à inexistência de videoteipes, e que exigiam muita improvisação do elenco. Sem referências, mas aberta a encarar o desafio, disse “sim” ao convite e iniciou sua jornada na televisão.  

Ao lado de outras pioneiras, como Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg e Léa Garcia (1933-2023), Laura Cardoso forjou o que é ser atriz de televisão no país e contribuiu para criar as bases da teledramaturgia brasileira. “Começamos praticamente da mesma maneira, na rádio, TV e, depois, veio o palco. A cultura é a nossa vida e sabemos que ela é fundamental para a formação de uma nação”, ressalta Fernanda Montenegro no documentário Tributo.  

Entre os papéis mais lembrados de sua carreira, estão a matriarca Sinhana, da telenovela Irmãos Coragem (TV Globo, 1995), mãe dos personagens que dão nome à trama; também representou Isaura no remake de Mulheres de areia (TV Globo, 1993), mãe das gêmeas Ruth e Raquel (Glória Pires); e a avó Carmem, de Chocolate com pimenta (TV Globo, 2003-2004), como a verdureira que mora em um sítio e precisa se acostumar ao luxo quando a neta Ana Francisca (Mariana Ximenes) fica rica. Ainda é rememorada por seus papéis nas telenovelas A Viagem (1994), Meu bem querer (1998), Vila Madalena (1999), A Padroeira (2001), Caminho das Índias (2009), dentre outras produções.  

Em mais de 100 trabalhos, entre telenovelas, radionovelas, filmes, dublagens, apresentações de circo e peças de teatro, inspirou gerações de público e também de artistas que a seguiram. “Eu aprendi a fazer televisão com Laura Cardoso e essa referência ficou no meu DNA de atriz”, revela no documentário Tributo a atriz Dira Paes, que atuou com a veterana em Irmãos Coragem. Na homenagem, a atriz Deborah Secco, que dividiu o set com Laura Cardoso em A Padroeira, enfatiza que ela é uma das maiores atrizes que a televisão já teve: “é uma das nossas grandes damas, uma dessas atrizes que vão ser inesquecíveis”, sintetiza.  

Além de aclamada pelo público, sua carreira profícua é celebrada pela crítica. Exemplo disso são as dezenas de prêmios e reconhecimentos que recebeu ao longo dessas sete décadas, entre os quais o Troféu Roquette Pinto (1956 e 1963), APCA (1977; 1995; 2001 e 2015), Shell (1990 e 1993), Mário Lago (2002), Aplauso Brasil de Teatro (2015), Guarani de Cinema Brasileiro (2021) e Festival de Cinema de Gramado (2023), além da Ordem do Mérito Cultural (2006).  

Hoje, Laura Cardoso mora em Itu, no interior de São Paulo, e segue ativa. Lançou, em 2025, um novo filme, Dona Rosinha, no qual interpreta uma idosa abandonada pela família em um ponto de ônibus, tema que ela diz ter sido difícil de enfrentar pela crueldade. “O abandono é ruim, é sempre feio, é sempre mau. Abandonar um idoso, pegar uma pessoa pela mão e levá-la para uma esquina, deixá-la ali. A pessoa que faz isso precisa ser punida”, defende. O longa-metragem tem produção de Marcelo Gomes e direção de Kk Araújo.

Ao lado da atriz Bianca Rinaldi, Laura Cardoso interpreta uma senhora que é abandonada pela família num ponto de ônibus, em seu mais recente filme, Dona Rosinha. (foto: Lyvia Garmec).

No último dia 12 de fevereiro, a artista participou do evento de lançamento do filme em São Paulo, no Sesc Consolação, em um momento de rara aparição pública. A ocasião reuniu centenas de pessoas no Teatro Anchieta que, por minutos a fio, a ovacionaram. “Quando eu olho para tudo o que fiz, no palco do teatro, na televisão, no rádio, no cinema, eu vejo uma história que foi boa, foi bonita, foi gratificante de trilhar”, avalia a atriz. Neste Depoimento, Laura Cardoso compartilha memória, trajetória e projetos.  

ESTREIA  
É uma felicidade muito grande poder lançar o filme Dona Rosinha hoje, neste momento da minha vida. Eu amo cinema. Amo assistir e fazer cinema. É um grande prazer. Estou muito feliz de estar aqui no palco do Sesc Consolação, lançando esta obra e vendo esta planteia lotada. É uma felicidade estar diante de tanta gente que está sorrindo após assistir a esta obra. Representar uma mulher idosa abandonada foi algo muito difícil, doloroso. O abandono é sempre ruim, é sempre feio, é sempre mau. Abandonar um idoso, pegar uma pessoa pela mão e levá-la para uma esquina, deixá-la ali. A pessoa que faz isso precisa ser punida. Esse não é um caminho que devemos seguir. O que precisamos valorizar nas relações humanas é o amor, é a busca pela compressão do outro, pelo diálogo.  

ARTE  
Eu amo representar, então para mim é sempre uma festa poder atuar, é um acontecimento bom. Amo o teatro, a televisão e todo lugar onde há a representação. A arte tem o poder de transformar. Uma peça, um filme, uma telenovela, uma radionovela mostram os problemas de nossa sociedade. Às vezes, apontam soluções.  Acredito que tudo o que está relacionado à arte e à comunicação é sagrado.  

REPRESENTAR  
Para fazer teatro, cinema, televisão, rádio, é necessário amor. Para representar, você precisa se despir de você e se vestir do outro, se entregar. É preciso amar. Quando subo neste palco, eu faço isto: deixo quem eu sou lá fora e, aqui dentro, represento o outro. Faço isso com a maior boa vontade, com amor. Amo representar e esse amor é o que me move.  

JORNADA  
Eu tive muita sorte na minha carreira. Encontrei só gente boa. Só tenho boas recordações. Não tenho um senão para falar. Quando eu olho para tudo o que fiz, no palco do teatro, na televisão, no rádio, no cinema, eu vejo uma história que foi boa, foi bonita, foi gratificante de trilhar.  

SONHO  
Qual é meu maior sonho? Hoje, aos 97 anos, eu acho que já realizei uma boa parte de tudo o que eu sonhava em minha vida. Sou uma mulher muito realizada por tudo o que fiz. Meu maior sonho hoje é continuar representando. Até ir embora deste mundo, eu quero representar.

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