Leia a edição de agosto/22 da Revista E na íntegra
Era uma mocinha ainda — demos-lhe 17 aninhos — e recém-saída do colégio interno. Tinha aprendido que todo mundo é bom até que prove o contrário. E era um final de tarde ensolarado, numa cidade do interior. A mocinha, a senhorita X, abre a porta da frente da casa onde vivia como uma espécie de preceptora dos anos 2000, ou seja, uma simples professora de um garoto de 10 anos, de nome Matheus. Abre a porta da casa a um rapaz jovem, mas careca, ele é meio esquisito. Digamos que a impressão que a senhorita X experimentou foi como se um sol estivesse na porta, um sol irresistível, de praia; mas um sol de praia misterioso porque não deixava perceber onde estava a beleza meio esfuziante. Não dava pra saber se era muito jovem ou um pouco velho nem se era uma pessoa bonita que já tinha sido muito bonita. O engraçado é que ele era meio encantador e a senhorita X estava pensando nisso, parada na porta enquanto ele falava qualquer coisa e entregava um papel. Ao mesmo tempo, ele parecia dizer: Olha, não posso ficar longe de você nem um instante mais.
No dia seguinte o rapaz meio careca, meio jovem e muito bonito pôde entrar na casa e, ato contínuo, os dois estavam sobre a mesa do escritório. As canetas e os papéis todos no chão, a senhorita X com a saia levantada e o rosto ligeiramente virado para a janela da direita, por onde entravam as últimas réstias de sol.
Matheus tinha aula de português e de matemática. Uma criança meio infeliz com a escola. A senhorita X tinha sido monitora da sua turma quando terminava o curso de Magistério. A senhorita X queria ser uma professora séria, de saias abaixo do joelho, paletó, de preferência tudo na cor azul, a cor da seriedade, e se via andando pelos corredores do colégio enorme com uma pasta executiva e saltos altos. Mas na casa do pai do Matheus, onde ela tinha um quartinho só para si, ela andava de sandálias e de saias curtas, como a menina que ainda era. A senhorita X adorava ler as histórias infantis do Matheus, estudar com o Matheus, comer o cereal do Matheus e tomar banho de horas quando não estava lendo, estudando ou comendo com o Matheus.
Numa noite acordou com o pai do Matheus em cima dela. Foi um choro alto e um não, não, não. Por sorte o pai do Matheus saiu de cima dela e pediu desculpas enquanto ela cuspia o beijo. Ela só pensava na mesa e no rapaz meio velho e muito bonito mesmo que careca. E nos estudos do Matheus.
Depois a senhorita X começou a trabalhar no restaurante do pai do Matheus que funcionava no andar de cima. A casa tinha vários andares. Um deles, inclusive, era uma boate. E com o tempo, a senhorita X passou a se dividir em muitas tarefas: os estudos do Matheus, os beijos e tudo mais sobre a mesa do escritório com o rapaz meio jovem e muito bonito, o trabalho de servir as mesas do restaurante e, depois que o restaurante fechava, o trabalho de lavar copos na choperia, e depois o trabalho no bar da boate.
Aos poucos a senhorita X parou de dar aulas pro Matheus e passou a trabalhar mais durante a noite. E ela passou a cuidar dos estoques de bebidas e da abertura e do fechamento dos caixas enquanto o pai do Matheus descansava, via filmes ou ficava sobre a mesa com uma amiga da senhorita X e bem mais alta do que ela. A senhorita X ganhava pouquíssimo. Mas o pai do Matheus sempre lembrava que ela morava na casa dele e então tudo o que ganhava era mais do que bom.
Mas aí chegou um momento em que aquele sol que bateu à porta naquele fim de tarde começou a achar ruim que ela andasse a noite inteira de saltos e à mercê dos assobios alheios, e eis que deu um ultimato: Ou você sai daqui ou eu saio da relação. Ela pensou um pouco e disse: Eu saio. Achava muito interessante o que eles faziam sobre a mesa. E na tarde seguinte, depois de roubar várias notas de cem de cada caixa que ela gerenciava, inclusive amassando uma e jogando no lixo na frente do pai do Matheus, que deve ter percebido tudo, mas deixou passar, fez as malas, deu um beijinho no Matheus, outro no pai dele e disse tchau. Sem deixar de recolher a bolinha que ela tinha jogado no lixo.
E estamos de novo observando a porta que a mocinha, a senhorita X, agora com 18 anos, abre numa tarde ensolarada de verão numa cidade do interior. E aquele sol do início do ano agora entra sem pedir licença: a casa é também dele e nela moram mais duas mocinhas, todas professoras. Mas ele está furioso e quebra a mesa. Vira o sofá, derruba as plantas, joga longe o ferro de passar. Todo mundo fica em polvorosa. O que aconteceu? Aparentemente, a senhorita X iria deixá-lo. Estava pensando em mudar de casa sem avisar. Ai, que coisa feia pra se fazer. Ele não gostou. Quebrou tudo, menos ela. E depois foi embora.
No dia seguinte os donos da casa, que moravam logo à frente, foram ver a senhorita X e falaram de Karma, e de se livrar. Ela não entendeu nada e decidiu dar mais uma chance ao sol. Foram morar numa casa amarela, num ponto distante da cidade. Os pais dela deram a mobília. E ela trabalhava numa papelaria. Ali roubou muitas coisas. Adorava papéis, agendas, mochilas. E, depois, seus irmãos precisavam. E mais, eles nunca pagam direito.
Mas o sol deu pra desaparecer. Às vezes ficava dois, três dias sem voltar pra casa. E a senhorita X começou a ficar, sei lá, meio histérica. E achou uns papelotes branquinhos nas calças dele. Hummmm, o seu sol agora era traficante. Em suas longas ausências, ela ficava lembrando como foram as primeiras vezes sobre a mesa. Sem querer acabou lembrando da vez em que o RP da boate a tinha obrigado a xxxx dentro do carro dele numa rua deserta. Ela era uma professora, de coque no alto da cabeça, óculos, saltos e toda de azul, tentando parecer mais velha. E nunca tinha feito num carro. Depois lembrou da casa dele e da vez em que a deixou esperando na porta da escola. Definitivamente os rapazes sabem se fazer esperar, ela pensou. Mais dia, menos dia e você se vê esperando.
Numa noite, exausta do trabalho da papelaria, pôs a comida no fogo e deitou pra descansar um pouquinho.
Agora vemos a senhorita X acordando meio sufocada, imersa na fumaça da casa. A comida pegou fogo, a panela ficou imprestável, as cortinas também, mas ela nem precisou ir pro hospital. E ficou sozinha tempo suficiente para o cheiro da fumaça sair da casa. Quantos dias? Ela não lembra direito. O negócio das drogas devia ir bem, ele — o meio velho, meio jovem — desaparecia com muito mais frequência. Mas ela nunca via o dinheiro. Ele dizia estar montando um negócio próprio que iria deixar os dois muito ricos.
E então a senhorita X começou outra vez a querer deixar aquela casa. Num dia de especial indecisão, ligou para uma amiga que ia fazer um concurso. Como não tinha nada pra fazer, foi com a amiga. E pra passar o tempo, fez o concurso. E passou. E ficou tão feliz que esqueceu que ia embora da casinha amarela. Ela já tinha seus 19 anos e um trabalho promissor. Ele voltava pra casa às vezes e até ficava mais tempo sem sair.
Um dia, ele pediu pra ela se podia depositar um cheque em sua conta e ela disse: Claro! E então, alguns dias depois um senhor muito assustador foi procurá-la em seu trabalho e ela teve que fazer um cheque ali mesmo antes que ele dissesse a palavra horrorosa para a polícia. Estelionato. Então, quando voltou pra casinha amarela, pronta para jogar o ferro de passar no rapaz que agora lhe parecia muito feio, descobriu que ele não estava em casa. E durante vários dias, ficou sem notícias dele. Então um amigo lhe deu uma cachorra de companhia. A Jéssica. E ela se mudou de casa. Agora vemos a senhorita X falando com a Jéssica numa linguagem canina, numa casa com varanda e quintal e uma mesa feita com uma porta sobre uma caixa cheia de roupas. De vez em quando o rapaz ainda toca a campainha da porta e promete que não vai mais desaparecer. Mas então, uma noite o amigo — o da cachorra — vai buscá-la em casa para dar uma volta. A senhorita X já estava na universidade e conhecia vários outros rapazes. O amigo optou por um bar longe da universidade… Estranho… e perto do colégio onde ela havia estudado anos antes. Ela não entendia porque aquele bar de secundaristas, e não o do pessoal um nível acima, quase chegando aos 20 anos, mais a cara deles. Mas aí ela entendeu. Quando entraram no bar, viu o seu sol com uma menina no colo.
Ele ficou sem graça, mas foi ao carro buscar os cadernos da menina e depois quis levar a senhorita X pra casa. A senhorita X foi. A mesa que era uma porta sobre uma caixa de papelão cheia de roupas acabou num canto da sala. As roupas espalhadas pelo chão. A Jéssica fugiu de casa. E a senhorita X, inconsolável, foi morar na casa de uma amiga.
O que aconteceu depois foi muito triste. A senhorita X começou a receber muitas cartas cobrando contas que ela jamais tinha feito. Muitos cheques ficaram sem fundos e parecia um complô: todos os postos de combustíveis da cidade reclamaram pagamento. E ela nem tinha carro. Mas ele tinha. E ela lembrou da palavra horrível: estelionato. Resultado: a senhorita X estava endividada. Ela já tinha 20 anos e teria que trabalhar duro até os 25, pelo menos, pra pagar todas as dívidas feitas em seu nome. E nem sabia como iria pagar a universidade. O carro que ele usava também estava em seu nome. Ela estava frita! Foi morar com ele numa casa na favela. Com o dinheiro poupado do aluguel, da luz e da água talvez juntasse mais rápido o que precisava para pagar as dívidas. Ele nunca mais saiu de casa e quando ela chegava do trabalho, ganhava banho e comida quentinha. Ela queria ir embora, mas ele tinha um revólver. Os pais dela ficaram muito preocupados e fizeram até alguns empréstimos pra cuidar das dívidas dela. No lugar em que ela morava não se podia colocar roupas no varal. Não teria o que recolher quando secasse.
Na primeira vez que ele sumiu por uns três dias, ela colocou suas coisas num pequeno caminhão e foi morar num quarto e sala em cima de um salão de beleza. Cortou os cabelos e descoloriu. Avisou todo mundo no trabalho que se seu sol aparecesse era pra chamar a polícia. E ele não conseguia mais chegar perto dela. A senhorita X estava muito orgulhosa dos seus cabelos novos. A senhorita X foi conhecendo outras mesas e a senhorita X chamou todo mundo pra morar com ela. Mas, às vezes, a senhorita X se sentia sozinha e lembrava do tempo em que seu sol quase a sufocava de tanto abraço durante o sono.
IEDA MAGRI estreou na ficção em 2007 com Tinha uma coisa aqui (7Letras). Olhos de bicho (Rocco, 2013), seu primeiro romance, ficou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura. Ainda é autora de Ninguém (7Letras, 2016) e de Uma exposição (Relicário, 2021). Ieda Magri também leciona Teoria da Literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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Neste mês, quando o mundo comemora o Dia Internacional da Juventude (12/08), o Sesc São Paulo promove mais uma edição da Juventudes: Arte e Território, ação que segue até dezembro discutindo e incentivando a potência das produções culturais das diferentes juventudes. Em reportagem desta edição, damos voz a iniciativas artísticas, em todo o estado de São Paulo, que provam que a arte, em suas diferentes linguagens, dá vazão à expressão e ao potencial criativos dos jovens, impactando os territórios que habitam.
Além dessa reportagem, a Revista E de agosto/22 traz outros conteúdos: um texto sobre os desafios e a importância da amamentação para a saúde dos bebês e o vínculo entre mães e filhos; uma entrevista em que a escritora portuguesa Isabel Lucas, que esteve presente na 26ª Bienal do Livro, defende a literatura como um mapa para se conhecer um país; um depoimento de Davi Kopenawa sobre a defesa da cultura indígena e a preservação da floresta; um passeio fotográfico pelos trabalhos de Eustáquio Neves, artista que reflete sobre o lugar histórico dos afrodescendentes e cuja obra será celebrada em exposição no Sesc Ipiranga, a partir de setembro; um perfil que mergulha no legado plural de Flávio de Carvalho (1899-1973), multiartista que protagoniza uma exposição no Sesc Pompeia, a partir do fim de agosto; um encontro com Renato Maluf, pesquisador que aponta os rostos da fome no Brasil; um roteiro por lugares, atividades e intervenções que espalham poesia pela cidade de São Paulo; um conto inédito da escritora Ieda Magri, intitulado “Vida e amores da senhorita X”; e dois artigos que relacionam língua, discursos e diversidade: Gabriel Nascimento escreve sobre racismo linguístico e Dri Azevedo, sobre linguagem neutra.
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