Leia a edição de maio/22 da Revista E na íntegra
Uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país, a gestora cultural Adriana Barbosa tinha pouco mais de 20 anos quando criou a Feira Preta, empreendimento que se tornou o maior do gênero na América Latina. “Quando comecei a fazer a feira eu não tinha a dimensão de no que ela se transformaria. Lembro que falava sobre o desejo de dar visibilidade à população preta que empreende e que atua na área da cultura, e as pessoas diziam: ‘Lá vem aquela menina sonhadora’”, recorda Adriana, que buscou ferramentas para concretizar esse sonho. Por esse trabalho, ela já recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, sendo homenageada em 2017 como uma das(os) 51 negras(os) com menos de 40 anos mais influentes do mundo segundo o Mipad (Most Influential People of African Descent), premiação mundial reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Hoje, a Feira Preta completa 21 anos de edições realizadas não só na cidade de São Paulo, como também em outras cidades, tendo reunido mais de 200 mil pessoas e fomentado o trabalho de mais de 1,9 mil afroempreendedores e empreendedoras. Neste Encontros, Adriana Barbosa fala sobre esse percurso, os efeitos da pandemia, conquistas e desafios.
Eu trabalhava na área de música, na gravadora Trama, e levava CD dos artistas debaixo do braço para as rádios poderem divulgar. A gravadora era pequena, mas tinha uma proposta diferente, porque tinha um casting artístico negro: Claudio Zoli, Caju e Castanha, Leci Brandão, entre outros. Isso me abriu um leque de possibilidades de entendimento do que é a música negra – não só o estado da arte da música, mas todo um processo de gestão para que aquela música pudesse acontecer. Depois, quando fiquei desempregada, comecei a vender minhas roupas em feiras de rua. Montei um brechó e ia fazendo as feiras e mercados alternativos, havia um boom de feiras. Foi nessa perspectiva de um empreendedorismo por necessidade que comecei a observar uma cena forte da cultura negra na região da Vila Madalena.
No final da década de 1990, início dos anos 2000, havia muitas casas noturnas de música negra brasileira e americana, muitos jovens negros se deslocando para aquela região e muitas pessoas pretas na cadeia de produção. Só que uma coisa me intrigava: “Poxa, a gente se desloca para vir consumir essa música, essa estética, toda essa cultura, mas a riqueza que se gera a partir disso vai para os donos desses lugares, que são homens brancos”. Foi aí que, conversando com uma amiga que trabalhava na área de cinema, a gente decidiu se unir e criar a Feira Preta. O objetivo maior era dar visibilidade à população preta e gerar riqueza nas mãos das pessoas negras.
Quando comecei a fazer a Feira Preta eu não tinha a dimensão do que ela transformaria. Lembro que eu falava sobre o desejo de fazer uma feira que pudesse dar visibilidade à população preta que empreende e atua na área da cultura, e as pessoas diziam: “Lá vem aquela menina sonhadora”. Idealista, zero real no bolso, mas com os olhos brilhando e querendo fazer coisas. Tinha uma questão que não era só racial, mas a intersecção de raça, gênero e idade. Com o tempo, fui entendendo que para poder fazer a feira e continuar produzindo, eu tinha que me educar. Tanto numa educação empreendedora quanto na área da cultura, de eventos, daquilo que me propus fazer. À medida que fui me educando em diversos assuntos, eu fui, não digo ultrapassando obstáculos, mas tentando lidar com eles de maneira pragmática no meu dia a dia.
Quando eu olho pra trás, quando falam dos prêmios que a Feira Preta recebeu, eu não pensava ser reconhecida e ganhá-los. Eu os entendo numa perspectiva coletiva, não individual. Quando premiam a Feira Preta, junto comigo tem muita gente, sobretudo muitas mulheres negras. É um prêmio para os empreendedores, artistas, para todo mundo que faz essa mobilização acontecer. Minha caminhada tem sido uma construção coletiva.
Tem um contexto importante: hoje a população negra no Brasil é maioria por um processo de autodeclaração. Nas últimas duas décadas, nos Censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual de pretos e pardos aumentou. Não é porque nasceram muitos negros, mas porque a gente passa a se autodeclarar. E o processo da autodeclaração vem, para mim, por três fatores importantíssimos. Um deles, pela cultura. Não vejo o processo de transformação da população negra dissociada da cultura – nas músicas dos Racionais, do Olodum, na Bahia, dos bailes funks, no Rio de Janeiro, e em outras manifestações.
Muita coisa da cultura negra vem sendo produzida por coletivos e artistas, por uma cena independente e emergente de coletivos em áreas importantes, trazendo uma perspectiva racial para a produção cultural com uma qualidade estética e também com reivindicações. Esse contexto
da cultura mais as ações afirmativas do movimento negro, sobretudo voltadas para a questão das cotas nas universidades, fazem com que a Feira Preta tenha um cenário importante para a sua construção. A gente começou com 40 empreendedores e mais de cinco mil pessoas (visitantes), isso sem dinheiro no bolso, fazendo comunicação de guerrilha, panfletagem – a gente deixava as filipetas na Galeria 24 de Maio, na Galeria do Rock, nas lojas e nos cabeleireiros. Então, esse contexto foi muito importante para o surgimento da Feira Preta.
"QUE ESSE LUGAR ONDE NOS COLOCARAM, DO EMPREENDEDORISMO POR NECESSIDADE, POSSA SER DO EMPREENDEDORISMO POR OPORTUNIDADE"
Sueli Carneiro uma vez falou que à medida que a população negra ascende, mais o racismo aparece. Então, quanto mais espaços a gente vai ocupando, mais as manifestações racistas vão encontrando lugar para abafar todo esse nosso processo de emancipação. Mas a gente tem que celebrar, porque o Brasil hoje é uma referência para os países da América Latina. Seja pelos movimentos da sociedade civil que influenciam políticas públicas e a iniciativa privada de maneira sistêmica, seja pelo próprio Estatuto da Igualdade Racial [lei federal nº 12.288, que entrou em vigor em julho de 2010], e quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, como o primeiro ministro negro, trazendo propostas muito importantes.
Tem muitos movimentos evoluindo e acho que o motivo principal vem desse processo individual e subjetivo de se declarar negro. À medida que eu me declaro, vou buscar meus direitos e ocupar mais espaços. Hoje falar de ESG [Environmental Social Governance, em português, governança ambiental, social e corporativa] é falar da questão racial. Quando se fala de governança, de investimento social privado e de mudança climática, a gente tem que fazer esse recorte racial. Então, as mudanças estão acontecendo de forma simultânea em muitas áreas. Eu ainda tenho que passar por muitas situações de racismo para provar que estou empreendendo, mas vejo muitos avanços, por outro lado, também.
Antes, a gente só olhava para os empreendedores da população negra do ponto de vista do empreendedorismo por necessidade, que ainda é a maioria. E se você olha para os dados, a cara do empreendedorismo no Brasil é a mulher negra. Elas são maioria na categoria micro e pequeno negócio, que foram as categorias que sustentaram a economia na pandemia. Fico muito feliz quando vejo as mulheres negras falando: “Eu sou empreendedora; Eu sou empresária”, porque antes ela falava: “Só estou aqui vendendo café na porta do trem”. Tá certo que isso está ligado à precarização do empreendedorismo, mas ainda assim ela é uma empreendedora.
É ela quem levanta às duas da manhã e prepara o café, quem vai comprar o café, quem vai fazer a planilha financeira e criar sua estratégia de comunicação. A gente glamuriza o termo e invisibiliza a história da população negra como empreendedora. Se você pensa na abolição, há 135 anos, não havia mercado de trabalho. Até então, era empreender. Por isso que mulheres negras são maioria empreendendo. Mas tudo é empreendedorismo? Não é a mesma coisa de um rapaz que é obrigado a fazer um MEI para trabalhar com delivery, de bicicleta, e ganhar 50 reais por dia. A gente tem empreendido há muito tempo, mas é preciso que a gente quebre o teto de vidro, que esse lugar onde nos colocaram, do empreendedorismo por necessidade, possa ser do empreendedorismo por oportunidade.
Pelo que percebo conversando com jovens, eles querem ser felizes e não é o trabalho que os escolhe. Na minha época, eu era escolhida pelo trabalho, era o que tinha pra mim. Já hoje, eles têm a possibilidade de escolher e essa escolha está associada a um propósito. Outra questão é que eles estão mais preocupados com causas sociais. Então, se uma empresa não tem preocupação com questões de diversidade, por exemplo, eles não se engajam. Eles preferem criar a própria empresa e quebrar a cabeça por terem mais liberdade de errar.
Hoje esses jovens negros vêm de uma geração de pais que os permitem testar, experimentar e vivenciar porque conseguiram acessar a universidade, conseguiram ter mais tranquilidade e não estar sempre sob a perspectiva da sobrevivência. Mesmo uma galera que está dentro da periferia também. Porque às vezes a gente tem uma visão de escassez da periferia e isso não é verdade. Tem uma galera que mora na periferia e que tem se desenvolvido, que o pai permite que ele ou ela possa fazer as escolhas necessárias para experimentar e errar e falar: “Não quero estar dentro de uma empresa”. Então essa é uma geração mais consciente do ponto de vista da sua identidade. É essa a geração que se autodeclara negra, diferentemente da minha época.
Por outro lado, tem aquilo que Sueli Carneiro falou, de quanto mais espaços ocupamos, mais o racismo aparece. E essa geração também sofre muito racismo. Dentro de casa, ela está protegida e os pais falam que ela pode ser negra, que ela pode ser maravilhosa, que ela é linda, mas quando ela vai para a rua, para o mercado de trabalho, ela escuta: “Aí você não pode.” Por isso, precisamos estar atentos à dimensão da saúde
mental, ao enfrentamento.
Profissionalmente, gostaria de, talvez, desacelerar um pouco porque a gente teve que trabalhar muito mesmo. Também gostaria de trabalhar muito numa perspectiva sem fronteiras com a diáspora, o sexto território, como a gente fala. Que a gente possa colaborar com os países
africanos e outros países latino-americanos. Olho para a Colômbia e falo: ela é tão parecida com o Brasil, por que a gente não faz coisas juntos? Se a gente pudesse se unir, olha a potência que seria. Então, eu adoraria que a gente pudesse não ter fronteiras, que a gente pudesse colaborar, que houvesse uma mobilidade dos artistas que quisessem fazer coisas em outros países e que outros países pudessem fazer no Brasil. Eu tenho este desejo: da diáspora africana.
ADRIANA BARBOSA esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 23 de março de 2022.
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Neste mês, refletimos sobre o retorno da atividade turística a partir de novos mapas que fomentam a economia local e valorizam a diversidade cultural de uma região. Ao repensar o turismo, convidamos você a dobrar a esquina, descobrir outras narrativas e visitar novos universos dentro da sua própria cidade. Aproveite para conferir as novidades do processo de retomada dos roteiros do Turismo Social do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E traz outros destaques em maio: uma reportagem que defende a importância do livre brincar como ação essencial para o desenvolvimento das crianças; um papo com a atriz e performer Denise Stoklos sobre processo criativo, velhice e família; um passeio visual pelos figurinos do CPT_SESC, centro teatral criado por Antunes Filho no Sesc Consolação; um depoimento com Sebastião Salgado sobre sua imersão na floresta, o que gerou a exposição Amazônia, no Sesc Pompeia; um perfil de Maria Firmina dos Reis, fundadora da literatura abolicionista no Brasil; um encontro com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país; um roteiro por espaços e projetos que praticam o acolhimento materno na capital paulista; o conto inédito As Substitutas, do escritor João Anzanello Carrascoza; e dois artigos que abordam conquistas e desafios da presença das mulheres indígenas na literatura.
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