Jornalista Tiago Rogero fala sobre podcasts e luta antirracista

31/12/2022

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CRIADOR DO PROJETO QUERINO, JORNALISTA TIAGO ROGERO FALA SOBRE POPULARIZAÇÃO DE SÉRIES EM ÁUDIO, PROTAGONISMO NEGRO E LUTA ANTIRRACISTA

Por Luna D'Alama

Ele cresceu ouvindo histórias contadas pelos avós, em Minas Gerais, gostava de parar todo dia, às 19h, para escutar A Voz do Brasil, e seu primeiro emprego foi como repórter e apresentador numa rádio de Belo Horizonte. Ainda na faculdade de jornalismo, Tiago Rogero queria se formar para ser setorista de esportes e acompanhar o clube do coração, o Atlético Mineiro, mas logo se encantou pela cobertura de direitos humanos e viu aí uma oportunidade para contribuir com a reparação e a revisão históricas do protagonismo negro na construção do Brasil.

Em 2019, morando no Rio de Janeiro e trabalhando no jornal O Globo, lançou seu primeiro podcast – Negra Voz –, com o qual venceu o 42º Prêmio Vladimir Herzog de Produção Jornalística em Áudio. Já no fim de 2020, nascia o Vidas Negras, série em 30 episódios realizada pela produtora Rádio Novelo. Hoje, Rogero é gerente de criação da Novelo e, nela, encabeçou o trabalho mais ambicioso de sua carreira (até agora): o projeto Querino, inspirado em The 1619 Project, que a The New York Times Magazine lançou em 2019, com um olhar afrocentrado sobre os principais momentos históricos dos Estados Unidos.

No fim de novembro de 2022, o podcast do projeto Querino ultrapassou a marca de um milhão de downloads. Segundo Rogero, a série em oito episódios (mais um extra), disponível como podcast narrativo, além de publicações em texto na revista piauí, ajuda a refletir sobre o racismo estrutural, olhando para os últimos 200 anos da nossa trajetória como nação. O projeto foi batizado em homenagem ao intelectual baiano Manuel Raimundo Querino (1851-1923), que no início do século 20 já reivindicava o papel de pessoas africanas e afrodescendentes na formação do Brasil.

Professor de oficinas e cursos de podcasts, Rogero também é um dos atuais diretores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Neste Encontros, ele faz uma retrospectiva de sua atuação na podosfera, fala sobre o crescente interesse por esse formato e pela produção de conteúdos em áudio com temáticas negras e antirracistas.

Assista ao vídeo com trechos desta conversa com Tiago Rogero
Oralidade ancestral

Gosto muito de acreditar que [o interesse pela narrativa em áudio] vem da nossa formação como brasileiros e da contribuição africana, decisiva para a nossa formação também, que é a questão da oralidade. Contar histórias é das coisas mais antigas da humanidade, é de todos os povos. E o brasileiro gosta da contação de histórias, [isso] faz parte da minha vida, da minha tradição. Meu avô era um contador de histórias, minhas avós [também]. E eu sempre ouvi muito rádio, gostava de escutar A Voz do Brasil. Achava ótimo, principalmente quando comecei a trabalhar com jornalismo, porque [o programa] era bom para saber das notícias e dos projetos que estavam em votação, a opinião de alguns parlamentares. Meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] foi todo sobre história oral, e meu primeiro emprego foi numa rádio, como repórter e apresentador da BandNews FM, em Belo Horizonte. Depois, fui para o jornalismo impresso, na sucursal do Estadão no Rio de Janeiro, e então para o jornal O Globo. Mas, minha paixão pelo rádio continuou e, quando descobri a mídia podcast, me encantei e decidi fazer algum projeto nessa área.

Popularização gradual

O podcast, enquanto mídia, ainda não é algo popular no Brasil. Existem mídias que são muito mais consumidas, como os vídeos. Embora, na maioria das vezes, o podcast seja gratuito, ele é uma mídia digital, então requer acesso à internet, a algum celular, computador, tablet ou a uma TV. E a gente mora num país profundamente desigual, que se manifesta [também] no acesso à internet. Isso ficou evidenciado no período da pandemia. Mas, apesar disso, [o podcast] é uma mídia que está crescendo a cada ano, e há movimentos que favorecem esse crescimento. Grandes plataformas internacionais, como o Spotify, começaram a investir na produção nacional de conteúdo em podcasts. [Além disso,] na página de cada episódio [do projeto Querino], há a transcrição na íntegra para deficientes auditivos, para que eles também possam consumir o conteúdo. [Também incluímos] todas as referências bibliográficas a que a gente recorreu, com o devido link. Então, é uma série de fatores que vai ajudando a difusão desse tipo de formato.

Possibilidades de imaginação

A [minha] ideia [de podcasts] é, aos poucos, também brincar como se fosse uma radionovela, lançando mão de elementos [como efeitos sonoros, trilha musical e recursos na voz e na respiração]. O áudio é muito interessante, porque o que poderia ser visto por algumas pessoas como uma limitação, que é a ausência de imagem, é uma superpossibilidade para o campo da imaginação. É poder construir uma cena, pensar em como transportar uma pessoa para determinado lugar. Por exemplo, a cena que abre o primeiro episódio do projeto Querino é o incêndio no Museu Nacional [ocorrido em 2018, no Rio de Janeiro].

Como a gente iria transportar as pessoas para aquele momento? Abre, literalmente, com barulho de fogo queimando madeira, dá aqueles estalos, [e há] uma sirene de bombeiros ao fundo. [Usamos] esse tipo de recurso para tentar criar um clima, transportar a pessoa e fazê-la visualizar aquele momento, estar nele. Outra coisa que acho superinteressante [num podcast] é essa intimidade. O que é mais íntimo do que você falar ao pé do ouvido de alguém? O podcast acaba tendo isso, porque, na maioria das vezes, a pessoa escuta com fone de ouvido. Tem gente que consome com o celular alto enquanto lava louça, outros colocam numa caixinha de som, na TV. Mas, no fone, cria uma relação de fidelização, de intimidade, e o ideal é trabalhar para que a pessoa se sinta próxima de você, quase como uma amiga. Tem gente que me chama de “Ti” nas redes, porque sente essa proximidade.

“Uma vez que a gente abriu essas portas,
não vai deixar que elas se fechem de novo”

Tiago Rogero
Jornalista Tiago Rogero é o convidado do Encontros de janeiro. Foto: Leo Martins.
Negra Voz

A ideia do projeto Querino começou a surgir logo depois que fiz o [podcast] Negra Voz, que tinha uma pegada mais de biografias, [apresentando] pessoas cujas histórias a gente não aprende na escola nem no dia a dia vendo TV, ou lendo um livro. É óbvio que elas existem [em livros], a gente não revelou nenhuma história inédita, mas divulgamos coisas que, por uma série de motivos, num país estruturalmente racista como o Brasil, acabaram escanteadas, não receberam o destaque que merecem. Uma delas é [a primeira romancista negra do país, a escritora maranhense] Maria Firmina dos Reis (1822-1917), homenageada de 2022 da Flip [Festa Literária Internacional de Paraty]. Mas, naquela época [em 2019] falava-se pouquíssimo sobre ela. Outra [personalidade que o podcast destaca] é Ruth de Souza (1921-2019), uma das atrizes mais importantes da história do cinema mundial, e que não é tratada no Brasil como deveria.

Querino

O nome do projeto é uma referência e reverência ao intelectual Manuel Raimundo Querino, um homem negro que nasceu livre ainda no período da escravização, na Bahia. Como uma exceção da exceção, não só para as pessoas negras, ele conseguiu estudar, se tornou professor, abolicionista, desenhista, artista, estudioso. Em 1918, publicou um livro [O colono preto como fator da civilização brasileira] reivindicando o protagonismo das pessoas africanas e afrodescendentes na formação do Brasil. É um pensamento que, hoje em dia, ainda é considerado disruptivo e inovador.

O projeto Querino é uma versão [da história do Brasil] mais completa e mais complexa. [Ao todo] foram dois anos e oito meses de trabalho, até ser lançado em agosto de 2022. Os primeiros dez meses foram só de pesquisa, sob a consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos. Na equipe [mais de 40 profissionais, a maioria negra] havia também um pesquisador-jornalista, um pesquisador-historiador e duas consultoras narrativas. Na primeira reunião, decidimos quais seriam os temas e, no fim das contas, chegamos a oito [um para cada episódio]. Passei, então, dois meses complementando as pesquisas e transformando os relatórios produzidos em narrativas únicas. Agora, o projeto vai continuar com outros desdobramentos, como um livro. A gente também está sendo procurado por produtores para adaptar o podcast para um conteúdo audiovisual [TV ou streaming] para poder alcançar um público muito maior.

Sala de aula

Logo na primeira semana [do lançamento do projeto Querino], teve um professor de Manaus que colocou os alunos do ensino médio para escutar o primeiro episódio. A partir daí, ele propôs uma atividade de história em quadrinhos, me mandou e eu postei nas minhas redes sociais. Assim como ele, vários professores [pelo país] têm usado o podcast em sala de aula. Eu reconheço que o formato não é o ideal [pensando na didática], pois uma criança ou adolescente pode achar chato escutar mais de 50 minutos de um podcast [na escola]. Eu tenho sugerido a professores e alunos de licenciatura que usem trechos de episódios para falar sobre alguma coisa. Acho que assim funciona melhor, é mais fácil de captar a atenção [dos estudantes]. Nosso foco [para o futuro] é adaptar o projeto para a sala de aula.

Exemplos de vida

O Brasil é um país majoritariamente afrodescendente: mais da metade da população é negra, mas, entre essas pessoas, muitas não se consideram negras. Porque o país comunica, por todos os lados, que não é bom ser negro. E, se você tiver pele clara, deve se considerar branco, embora, quando for receber seu salário, ele será menor que o de uma pessoa branca. Na escola, ao se ensinar sobre pessoas negras nos períodos da colônia e do Império no Brasil, elas só aparecem como escravizadas no tronco. Ignora-se que, mesmo nessa condição, muitas estavam resistindo, formando quilombos, professando sua fé, formando famílias, aprendendo a ler, ensinando outros, matando seus senhores – ainda que [tudo] isso fosse proibido. A maior e mais incrível das biografias brasileiras, e do mundo, é a do [jornalista e advogado abolicionista] Luiz Gama (1830-1882). [Outra figura que merece ser lembrada é o psiquiatra] Juliano Moreira (1873-1933), que teve sucesso e vivência como escritor, médico e cientista, e foi [na minha opinião] o maior escritor brasileiro.

Ações afirmativas

A gente está amadurecendo [no debate racial] graças a uma das coisas mais importantes que já aconteceram na história do Brasil, que é a política de ação afirmativa e a Lei de Cotas. A gente tem [hoje] o acesso dessas pessoas à universidade. E o que a gente ganha com isso é que a produção intelectual brasileira está muito mais complexa. A gente [agora] tem acesso a um mundo de saberes que antes era impossibilitado [de ser estudado e divulgado], porque só eram permitidos chegar à academia os filhos dessa elite que vem lá do século passado. Então, realmente [havia] um limite para a produção intelectual. Agora, a gente está vendo mais discussão porque há um acesso muito maior [de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência] à academia. Ocupando esse espaço, a gente está trazendo novas formas de pensar. Esse é um caminho sem volta. Uma vez que a gente abriu essas portas, não vai deixar que elas se fechem de novo.

Assista ao vídeo com trechos da conversa com o jornalista Tiago Rogero:
Assista ao vídeo com trechos da conversa com o jornalista Tiago Rogero. Edição: Tiago Marinho (Vivarium Filmes)

A EDIÇÃO DE JANEIRO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

No mês em que acontece o Sesc Verão 2023, discutimos a relação entre as tecnologias e a prática físico-esportiva. A reportagem principal desta edição defende que usar o tempo livre para atividades que não movimentam o corpo favorece o sedentarismo, além de elevar o risco de doenças crônicas. No entanto, o texto também aponta que, quando utilizado de maneira equilibrada, o tempo em frente às telas pode motivar a prática de atividades físicas, por meio do uso de aplicativos e aparelhos que medem frequência cardíaca, gasto calórico, qualidade do sono, entre outros indicadores.

Além disso, a Revista E de janeiro/23 traz outros conteúdos: uma reportagem que percorre os caminhos de gestação de uma obra literária, desde o surgimento da ideia original até chegar à mão dos leitores; uma entrevista com a escritora cubana Teresa Cárdenas, que conta sobre sua relação com a literatura brasileira, seu processo criativo e revela de que forma os antepassados guiam sua escrita; um depoimento com a cantora e compositora Ellen Oléria sobre música, teatro e afrofuturismo; um passeio visual por imagens que celebram o universo feminino indígena no universo das artes visuais; um perfil da médica Nise da Silveira (1905-1999), pioneira na humanização do atendimento psiquiátrico por meio da arte; um encontro com o jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, que fala sobre popularização de podcasts e luta antirracista no Brasil; um roteiro nostálgico pelas miudezas arquitetônicas de São Paulo, em celebração aos 469 anos da capital paulista; um conto inédito da escritora Natalia Timerman; e dois artigos que discutem a relação entre envelhecimento e inclusão digital.

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