Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente acredita na educação como chave de transformação para equidade social e na luta contra o racismo
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Por Maria Júlia Lledó
Fotos Adriana Vichi
O dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, um dos mais importantes nomes da história do Brasil pela luta contra a escravidão, é celebrado, a partir deste ano, como feriado nacional. O Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, Dia da Consciência Negra, é resultado da luta do movimento negro por reparação histórica, uma vez que Zumbi foi retratado, por séculos, como um criminoso. “Sou de uma geração de crianças negras que cresceu ouvindo dizer que Zumbi era um fantasma sem beira nem eira, doido perambulando pelas encruzilhadas, assombrando como alma penada. O nome de Zumbi sempre foi identificado, associado como negro à imagem do diabo, do pecado”, relatou a filósofa e doutora em educação Sueli Carneiro, em texto publicado em 2009, pelo jornal Correio Braziliense. Na ocasião, Carneiro escreveu sobre as constantes tentativas de demérito e apagamento da liderança de Zumbi dos Palmares, não só pela historiografia, e por livros didáticos, mas também pelo que chamou de “golpes de caneta” que, finalmente foram desmobilizados com a sanção da Lei 14.759/2023.
Em São Paulo, a Universidade Zumbi dos Palmares (UZP) carrega no nome a luta antirracista iniciada por Zumbi, e comemora neste mês não somente o feriado nacional, mas também a inauguração, há exatos 20 anos, da instituição de ensino superior focada na inclusão de pessoas negras e de baixa renda. Doutor em educação e mestre em administração pela Universidade Metodista de Piracicaba, além de mestre em ciências jurídicas pela Escola Paulista de Direito, o reitor da UZP, José Vicente, vê como auspiciosa a ocasião. “Eu gosto muito da simbologia. O Brasil, minimamente, se redimiu e entendeu que esse tema, essa agenda e, sobretudo, esse personagem é importante para todos os brasileiros a ponto de, primeiramente, reconhecê–lo como herói nacional e, depois, transformar o dia da sua morte em feriado para todas as pessoas”, constata.
Há, contudo, muito chão pela frente, segundo o reitor, para que negras e negros – aproximadamente 56% da população do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – tenham, de fato, seus heróis, suas histórias e seus direitos respeitados. E um dos caminhos para essa reivindicação se dá pela educação. Nesta Entrevista, Vicente fala sobre as reviravoltas de sua trajetória: de boia-fria a reitor; sua participação na luta por ações afirmativas; a criação da Universidade Zumbi dos Palmares e de duas iniciativas pioneiras: o Procon Racial e a Brigada Climáticos, programa que visa erradicar o racismo ambiental.
Nascido em Marília, no interior do estado de São Paulo, caçula de seis irmãos, criado por uma mãe que trabalhava na lavoura, como boia-fria. Como foi sua infância?
Por incrível que pareça, apesar das faltas de toda natureza e das limitações, me parece que na cabeça da criança qualquer coisa que possa ser disponibilizada se transforma em diversão. Então, por conta disso, mesmo como boia-fria, transitar nos cafezais de Marília, naquela época, não me pareceu alguma coisa que me causasse qualquer desconforto ou mal-estar. Eu era criança, então, pegar um caminhão, ir para lá e para cá, me misturar com as pessoas e com as outras crianças, brincar nessas localidades, foi divertido. Porque era uma diversão disponível. Logicamente, eu não tinha clareza das coisas, de modo que ali, para mim, era um pedacinho do universo. Eu estava, afinal de contas, com a minha mãe, irmãos e amigos, e isso era importante, além de estar fazendo uma atividade essencial: ganhar o dinheiro do dia a dia.
E como a escola atravessou seu caminho?
Eu morava numa cidade muito pobre e limitada na época. Minha família não tinha acesso a livros, revistas, teatro, cinema. No entanto, no início do ensino fundamental, fiz amizade com uma família que morava próxima da gente, sobretudo com Eunice Pelegrini – não me esqueço desse nome –, secretária na escola onde eu estudava. Na casa dela, onde eu ficava depois da escola, tinha muitas revistas, fotonovelas. Logo em seguida, tive contato com os primeiros livros, sobretudo, Jorge Amado (1912-2001) – li Capitães da Areia (1937) e Tereza Batista cansada de guerra (1972). Por conta disso, eu também enveredei pela poesia e pela música. Eu acho que elas salvaram a minha vida porque o bairro onde eu morava, Morro da Querosene, era de faltas e necessidades. O jornal da cidade leu minhas poesias e me convidou para escrever. De repente, saí do anonimato. E, por fim, como eu sempre gostei muito de banda marcial, me encorajei e fiz a inscrição para entrar na Banda Marcial da Associação de Ensino de Marília. Pude andar pelas cidades do interior e conheci São Paulo. Na hora, eu falei: “É aqui que eu preciso estar”.
Em São Paulo, o senhor cursou a faculdade de direito. Por que escolheu esse curso?
Nesse momento, aconteceram dois fatos marcantes na minha vida. Na faculdade, na minha sala, havia muitos policiais. Em algum momento, houve um aumento de mensalidades e um grupo de alunos resolveu fazer passeata e puxar uma greve. Decidi me juntar ao protesto. Meus comandantes estavam de braços cruzados, olhando a manifestação e eu, como soldado, feliz e puxando aquele movimento. Foi curioso porque, em algum momento, eu me dei conta de que, por ser policial, eu não poderia estar ali. Depois, num segundo momento, eu nunca tinha participado de nada e iam montar uma chapa para o diretório e um amigo propôs que eu fosse o vice–presidente. Foi aí que surgiram intervenções: “A gente vai pôr um negro na chapa?”; “Nós vamos perder”. Depois disso, prestei atenção em algo que, até então, não tinha me dado conta. Quando olhei ao redor, entre os demais alunos do curso direito, e na minha sala, não havia negros. Foi aí que percebi como as coisas são, que eu teria que me preparar para outros questionamentos, hostilização e ataques dessa natureza. Essa coisa ficou tão latente ali, que comecei a fazer o tal “teste do pescoço” [reconhecer se no ambiente há pessoas negras] para todas as situações em que estava, a fim de entender essa discrepância que, até então, não tinha me dado conta.
Foi esse episódio na faculdade de direito que provocou uma reorientação da sua carreira para trabalhar na luta por ações afirmativas e pela defesa dos direitos humanos?
Eu comecei a gostar muito dessa agenda de direitos humanos, de combate ao racismo e à discriminação e, curiosamente, foi um momento muito importante, porque começaram os debates da Constituinte. Eu me formei em 1984. A partir daquele momento, em todos os espaços, os debates começaram a se constituir, e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) montou uma comissão para discutir direitos humanos, da qual fiz parte. Então, essa ampliação de consciência veio dentro da luta da reabertura política, com posições para combater o racismo e construir ações afirmativas de toda natureza. Essa bandeira de que uma das ferramentas mais importantes para combater o racismo seria pela educação começou ali. As pessoas que tinham essa afinidade com a educação começaram a se juntar e disso nasceu o primeiro Encontro de Estudantes Negros do Estado de São Paulo, que montamos para discutir efetivamente o quê e como fazer.
Tem uma classe média intelectual em construção e que, se ainda não está em todos os espaços, já começa a se apresentar, a se posicionar e fazer suas reivindicações
Nesse momento, seria plantada a semente do que viria a ser a Universidade Zumbi dos Palmares?
Depois que me formei em direito, no caminho para o trabalho, eu passava em frente à Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e aí me matriculei. Na Escola, curiosamente, havia muitos negros e o debate era uma discussão que eu já trazia sobre um dos caminhos para a igualdade racial passar pela educação. Então, foi lá que começou esse embrião da Universidade Zumbi dos Palmares. Criamos um grupo de estudos que convidava pessoas para debater essa agenda. E numa dessas atividades, convidaram o adido cultural dos Estados Unidos para falar sobre educação. Ele falou sobre a história das universidades negras estadunidenses: são 150 universidades negras, desde 1800, que formaram personalidades fantásticas e que são importantes para a vida do país. Perguntamos se dava para conhecer uma delas e uma universidade se dispôs a pagar a passagem. Então, fui conhecer a Howard University, em Washington D.C. (Estados Unidos). Imagina uma USP só de negros? Essa universidade fica no coração do império, em Washington D.C., perto da Casa Branca. Fotografei, voltei e contei para os meus camaradas: “Que tal se a gente fizer uma dessas aqui no Brasil?”.
E o que resultou, nessa época, dessa viagem?
Na USP, como nas demais universidades naquela época, não havia negros, proporcionalmente. Então, a gente montou um cursinho chamado Cais, porque era um porto seguro para o jovem negro realizar seu sonho. Depois de sete meses, o cursinho faliu. Aí alguém disse: “Em vez de preparar o jovem negro para entrar na USP, por que a gente não reúne aqueles que já estão prontos e tenta colocá-los nas universidades privadas?”. Criamos o projeto Mais Negros nas Universidades e fomos bater nas portas das universidades privadas. Em algum momento, nós tínhamos mil jovens negros bolsistas e isso começou a fortalecer a ideia da Universidade Zumbi dos Palmares. Em São Paulo, procuramos duas universidades ligadas à Igreja Metodista, de São Bernardo e de Piracicaba, e perguntei se eles não tinham alguma ação para incluir os negros, como as metodistas dos Estados Unidos. Aí saiu a contribuição mais importante daquele momento: um projeto técnico para a criação de uma universidade. Falamos com o consulado americano e eles nos ajudaram. Com isso, nós lançamos a ideia de construir a Universidade Zumbi dos Palmares.
Neste mês, a Universidade Zumbi dos Palmares completa 20 anos. Além de ser a única na América Latina focada na inclusão de pessoas negras, a instituição destaca–se por dois programas: o Procon Racial, fruto de uma parceria com o Procon-SP, e o programa Brigada Climáticos. O que são e quais os objetivos desses programas?
O Procon Racial faz duas desconstruções. A primeira delas é de que haveria uma isonomia no consumo. Ou seja, a ideia de que todos são tratados iguais pelo mercado porque, afinal de contas, o mercado não faria distinção da cor do dinheiro. Mas, um dos lugares em que o racismo e a discriminação mais se manifestam é justamente nessa relação de consumo. Quando se mensurou essa violência, isso fez o ambiente corporativo se mexer. Sobre o programa Brigada Climáticos, ele é resultado de outra constatação importante: os efeitos extremos da mudança climática. Ela atinge a todos, mas aqueles que serão atingidos com mais intensidade estão em territórios onde o equipamento público não existe ou não chega. Nós criamos e temos o primeiro espaço de combate ao racismo ambiental e isso se faz através de uma ação estruturada para qualificar as pessoas e auxiliá-las a fim de que estejam prontas para fazer os enfrentamentos dessas manifestações dos extremos climáticos em seus territórios.
Além desses mecanismos de monitoramento, as redes sociais também se tornaram uma plataforma de grande alcance para a discussão de pautas de reivindicação de direitos, valorização de expressões culturais e no combate à discriminação. Que avaliação faz desse ambiente na luta contra o racismo?
A partir das redes sociais, esse público e essa agenda que não tinha voz e que não conseguia pressionar politicamente, agora está lá: pressiona ou constrói os seus argumentos, apresenta a sua voz, expõe suas contestações, seu ponto de vista, enfim. Agora esse público é um objeto de política e de consumo potente e relevante. Então, por conta disso, as marcas começam a ter preocupação, cuidado e atenção. O ambiente político, da mesma maneira, o ambiente governamental, enfim todos os espaços que antes não davam atenção para esse público começam a ter essa preocupação e esses últimos 20 anos ajudaram a consolidar se não uma aversão inconcebível contra o racismo, uma mudança no olhar no sentido de que algumas coisas não se debatem, algumas coisas não se põem mais na mesa, e para muitas delas se pôs uma trava: “Isso aqui não é justificável;” “Isso não é permissível”. Por conta disso, muito do discurso, da atitude, da postura, da prática que antes passava batido, hoje “dá B.O.” como diz a molecada. Então, tem responsabilização por danos morais na rede social. Ela lacra e cancela.
Entre tantos obstáculos enfrentados para o reconhecimento e respeito à cultura afro-diaspórica, para a garantia de espaço em todas as esferas da sociedade, que mudanças efetivas orientam o século 21?
A gente está mais ou menos nessa situação de um copo meio cheio e meio vazio. Até 30 anos atrás, eram só reivindicações de passeatas: o combate ao racismo, lei de cotas etc. Eram coisas que só estavam nas ruas ou nos cartazes, que se debatia por aí, e foi para dentro da Constituição. A Constituição diz que racismo é um crime inafiançável, imprescritível, punido com cinco anos de reclusão. A mesma Constituição diz que o racismo produz distorção e distanciamentos e, por conta disso, é preciso produzir ações afirmativas. Por conta dessa formalização é que nós produzimos as políticas públicas, com base em lei. As cotas nas universidades, as cotas no serviço público, tudo está descrito na lei, não é uma concessão do governo. Então, nós saímos do nada, e agora, nós estamos a caminho de tentar transformar todas essas medidas e essas ações em resultado efetivo e eficiente. A lei é importante, mas é indispensável que ela seja cumprida. Mas a gente pode dizer que houve uma verdadeira revolução social no país e, diga-se de passagem, uma revolução que foi construída e conduzida pelos negros. Não fossem os negros, o nosso país ainda seria aquele país bárbaro de 30 anos atrás, quando o apartheid era tanto que os negros ocupavam somente 1% dos bancos das universidades do nosso país.
A partir das redes sociais, esse público e essa agenda que não tinha voz e que não conseguia pressionar politicamente, agora está lá: pressiona ou constrói os seus argumentos, apresenta a sua voz, expõe suas contestações, seu ponto de vista
Nessa agenda de décadas da luta por ações afirmativas, a Lei nº 12.711/2012 permitiu a ampliação do acesso de jovens negros às instituições de ensino superior federal, mas também, novas ponderações quanto a esse acesso. Que balanço faz dessas últimas duas décadas da Lei de Cotas?
Precisávamos de uma transformação que exigiria uma profunda revolução para ser uma república democrática, um Estado democrático de direito. Mas impossibilitado de fazê-lo, limitado ou desinteressado, o que o país fez? Entregou cotas para jovens negros nos bancos escolares. Ninguém falou, mesmo naquela época, dos professores, dos pesquisadores, dos gestores da universidade. Então, as cotas cumprem o objetivo de ser um remendo possível para uma agenda que estava premida. Nesse exato momento, nosso país tem 300 universidades públicas, mas temos quatro reitores negros. O corpo docente nas universidades públicas continua sendo um espaço da branquitude. Além disso, mesmo com as cotas nas universidades, não conseguimos ocupar as contas na magistratura, no judiciário e nas empresas públicas. Nesse exato momento de 20 anos da implementação da lei, a gente saiu de 300 mil jovens negros em formação para, aproximadamente, um milhão. Então, tem uma classe média intelectual em construção e que, se ainda não está em todos os espaços, já começa a se apresentar, a se posicionar e fazer reivindicações.
E o que representa para a história brasileira a sanção da Lei 14.759/2023, que determina que o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra e Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, seja feriado nacional?
Eu gosto muito da simbologia. O Brasil minimamente se redimiu e entendeu que esse tema, essa agenda e, sobretudo, esse personagem é importante para todos os brasileiros a ponto de, primeiramente, reconhecê-lo como herói nacional e, depois, transformar o dia da sua morte em feriado para todas as pessoas. Isso transforma um imaginário, porque, há 30 anos, quando se lia sobre escravizados, descrevia-se Zumbi dos Palmares como um criminoso, um marginal, um pária social que semeava o ódio e o terror. Essa construção política e ideológica servia a uma hegemonia de pensamento e à manutenção dessa demonização do negro, algo que sempre se pretendeu. Mas isso é artificial e carente da verdade desse povo que se juntou e fez a segunda revolução, acho que a mais importante da história desse país, que foi tirar Zumbi da imagem de pária social. Isso não é pouca coisa.
Atualmente, o senhor também se dedica à criação do Museu da História do Negro em São Paulo, no Bom Retiro. Como será esse museu?
A inspiração é no museu da história e cultura afro-americana em Washington D.C. [Museum of African American History and Culture], que é um negócio fabuloso. Acho que tem uma grande parcela do povo brasileiro, negros e brancos, que tem uma profunda compreensão de que nós temos uma dívida moral, espiritual, ética com o próprio país e com nós mesmos pelo fato de que nunca nos foi concedido conhecer nossa história por inteiro. Um país que não tem um registro da sua memória e um equipamento museológico para falar dessa memória é injustificável. Então, nasceu nosso desejo de deixar um museu que possa ter essas histórias, que possa ter esses registros acessíveis, disponíveis para a gente achar um pouquinho da gente neles. A proposta do museu é da Universidade Zumbi dos Palmares, mas a justificativa é de todos nós, brasileiros. A gente só vai dar o pontapé e vai ajudar a trilhar os caminhos, mas todo mundo tem que colocar um tijolo nessa obra. A gente quer começar e no nosso tempo fazer a parte que nos compete. E depois, os que vierem em seguida, que deem continuidade.
Assista a trechos da entrevista com o advogado e reitor José Vicente, realizada em outubro de 2024, na Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo.
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