A presença de mulheres nos festivais pelo Brasil: um estudo quantitativo (2016-2024) de Thabata Lima Arruda
Thabata Lima Arruda é pesquisadora e analista de conteúdo, com foco em diversidade, equidade e representatividade na música e no setor cultural. Há oito anos, realiza levantamentos sobre a presença feminina em festivais, produzindo relatórios e artigos publicados pela revista digital Zumbido, do Selo Sesc, que ampliam o debate sobre desigualdades na indústria musical. Seu trabalho foi reconhecido com o 4° Prêmio SIM São Paulo (2021), na categoria Pesquisa em Música, e como semifinalista no 8° Prêmio Profissionais da Música (2025), na categoria Pesquisador(a) Musical. Além da pesquisa, atua com curadoria e criação de conteúdo, desenvolvendo narrativas estratégicas para diferentes plataformas e públicos.
Ilustrações por Ale Amaral — designer e produtor gráfico do Selo Sesc, ainda com esperança de um dia ver árvores dominando prédios.
Coletar, sistematizar e disseminar dados que exponham as lacunas e desigualdades históricas presentes na indústria musical, especialmente nos palcos dos principais festivais brasileiros, tem sido o foco deste estudo ao longo dos últimos sete anos.
Embora tenha havido avanços desde as primeiras publicações de 2019 e 2020, a disparidade de gênero nos palcos continua sendo uma realidade evidente, o que reforça a urgência da implementação de ações efetivas e, principalmente, consistentes, para que um cenário musical brasileiro inclusivo se torne uma realidade.
Esses dados têm, antes de tudo, a função de evidenciar a desigualdade de oportunidades e postos de trabalho no mercado de festivais no Brasil, com foco especial nas mulheres que escolhem a música e o palco como profissão.
Este artigo apresenta uma análise quantitativa e crítica da participação feminina nos festivais brasileiros entre 2016 e 2024. A revisão dos dados anteriores busca incorporar informações recentes, oferecendo um panorama que evidencia avanços, retrocessos, desafios e possíveis caminhos para a equidade de gênero nos palcos — um dos muitos setores desiguais da indústria musical.
Nos estudos anteriores, “A presença feminina nos festivais brasileiros de 2016 a 2018” (LIMA ARRUDA, 2019) e “A presença feminina nos festivais brasileiros de 2019” (LIMA ARRUDA, 2020), a metodologia consistiu na seleção de festivais de diferentes portes, análise das programações e categorização dos atos musicais para cálculo das porcentagens. Neste novo estudo, a metodologia permanece em grande parte a mesma, mas com a inclusão de novos parâmetros e categorias. A seguir, apresento uma explicação detalhada de cada aspecto, incluindo as categorizações e os cálculos percentuais.
Foram selecionados 42 festivais para a análise: 9 no Nordeste, 3 no Norte, 21 no Sudeste, 4 no Sul e 5 no Centro-Oeste, totalizando 246 edições realizadas entre 2016 e 2024. Nove desses eventos surgiram após a pandemia e foram analisados separadamente, enquanto 21 tiveram início em 2016 ou antes. Além disso, todos os festivais incluídos no estudo realizaram, no mínimo, quatro edições, o que garante uma amostragem mais consistente.
Também foram levantados 6.954 atos musicais que participaram dos festivais entre 2016 e 2024, além de 6.667 artistas que participaram entre 2020 e 2024 foram contabilizados individualmente (integrantes individuais).
Vale destacar que alguns festivais deixaram de acontecer, especialmente após a pandemia, enquanto outros já apresentavam edições irregulares antes desse período. O número de festivais analisados anualmente seguiu uma média ajustada, levando em conta tanto os cancelamentos quanto a inclusão de novos eventos. Essa abordagem busca garantir uma avaliação equilibrada das tendências de participação feminina ao longo do tempo.
Como o estudo acompanha festivais específicos ao longo dos anos, não foram incluídos novos eventos apenas para manter uma quantidade fixa a cada ano. A redução no total foi mais acentuada em 2020 e 2021, devido ao impacto da pandemia, cujos reflexos se estenderam até 2022.
Embora essa variação dificulte comparações diretas entre os anos, a decisão metodológica priorizou a coerência da amostragem e o reconhecimento das circunstâncias excepcionais do período.
Para contabilizar todas as atrações artísticas de cada edição, foi analisada a programação completa de cada festival. As informações foram obtidas diretamente de fontes oficiais, como redes sociais dos eventos ou produtoras, sites e matérias da imprensa publicadas próximas à data do evento.
No contexto deste estudo, um ato musical refere-se a qualquer performance ao vivo durante o festival, seja por artista solo (incluindo DJs), duo ou grupo musical, abrangendo tanto apresentações principais quanto secundárias.
Foram excluídos da análise:
Os atos musicais de cada festival foram classificados em três categorias:
As porcentagens foram calculadas com base no número de atrações de cada categoria em relação ao total de atrações de cada ano, multiplicando o valor por 100. Isso facilita a comparação da participação de cada grupo ao longo do tempo e a identificação de tendências nos line-ups.
Além da categorização dos atos musicais, também foi realizada a categorização dos integrantes individuais de cada ato musical, com foco no período de 2020 a 2024. Essa abordagem metodológica foi essencial para aprofundar a análise sobre a disparidade de gênero nos festivais, uma vez que os integrantes de cada grupo foram contabilizados individualmente.
Consideram-se integrantes individuais quem é parte de duos, grupos ou bandas, excluindo artistas contratados apenas para apresentações pontuais ou turnês temporárias, bem como profissionais não-músicos, como produtores ou dançarinos. As fontes para identificar os integrantes incluem sites oficiais, redes sociais, fotos promocionais e matérias jornalísticas, e foram consultadas de acordo com o ano de cada festival, levando em consideração que as formações dos grupos/bandas podem mudar ao longo do tempo.
A classificação dos integrantes seguiu três categorias:
É importante destacar que mulheres trans são mulheres, e homens trans, homens. A categorização é baseada na identidade de gênero autodeclarada ou nos pronomes utilizados, obtidos em fontes confiáveis. Suposições foram evitadas, e esforços consideráveis foram feitos para não presumir as identidades de gênero durante o levantamento. Para artistas com múltiplos pronomes, foram feitas pesquisas adicionais para garantir precisão.
Critérios de classificação baseado nos pronomes:
Esse método assegurou uma categorização precisa e ética, respeitando a diversidade de gênero na música.
A evolução da representatividade feminina nos festivais musicais, desde a publicação inicial deste estudo em 2019, revela um crescimento significativo. Embora ainda não reflita um cenário de equidade, o avanço é nítido: de 11% em 2016, a presença de atos musicais compostos exclusivamente por mulheres alcançou 35,6% em 2024, com um marco importante em 2020, quando ultrapassou os 30% pela primeira vez, atingindo 30,4% e seguindo em ascensão até 40,9% em 2023.
Os anos de 2020 e 2021, no entanto, foram marcados por uma redução drástica no número de festivais devido às restrições sanitárias da pandemia de COVID-19. Dos 31 festivais analisados em 2019, apenas 13 foram realizados em 2020 – oito em formato online e cinco presenciais, ocorridos antes das principais restrições. Em 2021, dos 13 festivais analisados, seis foram online e sete presenciais. Apesar da diminuição de quase 50% no número de eventos, a representatividade feminina continuou em crescimento.
Essa tendência sugere que as políticas públicas e o fomento privado à cultura implementados durante a pandemia, ao priorizarem critérios de diversidade e inclusão na avaliação de projetos, podem ter contribuído de forma relevante para esse avanço. Um exemplo são os editais emergenciais da Lei Aldir Blanc, nos âmbitos estadual e municipal, que atribuíram pontuação específica a projetos protagonizados por mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIAP+, como forma de fomentar um ecossistema cultural mais representativo.
Ainda que nem sempre de forma direta, esse tipo de incentivo pode ter influenciado a ampliação da diversidade nas programações dos festivais durante o período. Entre os eventos analisados que contaram com fomento nesse contexto, destacam-se as edições online de 2020 do Coala, No Ar Coquetel Molotov, Sarará e Se Rasgum, todas patrocinadas pela Natura Musical, sendo que o Se Rasgum também contou com apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Pará, além de patrocínio da Petrobras Cultural.
Em 2021, vale mencionar os festivais Favela Sounds, Suíça Bahiana, Timbre e Vaca Amarela, todos contemplados por leis de incentivo à cultura em nível estadual. O No Ar Coquetel Molotov, mais uma vez, teve a Natura Musical como um dos principais patrocinadores.
Contudo, quando ampliamos o olhar para o mercado musical como um todo, os dados indicam que a desigualdade de gênero permanece estrutural. Segundo o relatório “Mulheres na Música – Edição 2025”, elaborado pelo Ecad, entre os 4 milhões de titulares cadastrados como pessoas físicas nas associações de gestão coletiva de direitos autorais (Abramus, Amar, Assim, Sbacem, Sicam, Socinpro e UBC), apenas 10% são mulheres. Entre os R$ 926 milhões distribuídos em 2024 em direitos autorais para pessoas físicas, apenas R$ 75 milhões foram destinados a mulheres, o que representa cerca de 8%, mesmo percentual registrado no ano anterior. Ainda mais expressiva é a disparidade entre os 100 autores com maior rendimento: somente 5% eram mulheres em 2024, abaixo do pico de 6% registrado em 2023. E entre as 100 músicas mais tocadas em shows, apenas 16 contavam com mulheres na autoria. No segmento de música ao vivo, a presença feminina chegou a apenas 3,12%.
Esses números revelam desigualdades que atravessam toda a cadeia do mercado musical, da profissionalização ao acesso aos palcos, passando pela execução pública de obras e arrecadação de direitos autorais. Em todos esses níveis, a participação feminina segue significativamente inferior à dos homens.
Nos festivais, esse desequilíbrio também aparece. Após alcançar 40,9% em 2023, a presença de atos exclusivamente femininos caiu para 35,6% em 2024. Embora ainda represente um avanço expressivo em relação aos anos anteriores, a oscilação mostra que, sem ações consistentes e planejamento a longo prazo, os ganhos em representatividade não se sustentam.
Para que esse avanço não seja passageiro, é preciso encarar a equidade de gênero como parte central da estrutura dos festivais. Isso envolve investir em curadorias diversas, garantir a presença de mulheres em posições de decisão, estabelecer metas públicas de representatividade, acompanhar periodicamente os dados e ampliar a responsabilidade com a equidade para todas as etapas de produção, dos palcos aos bastidores.
A análise da participação feminina por categorias, entre 2016 e 2024, revela tendências significativas: crescimento de artistas solo, declínio dos grupos mistos e uma evolução modesta das bandas femininas.
As bandas compostas exclusivamente por mulheres mantiveram-se em patamares baixos, oscilando entre 1,3% em 2016 e 2% em 2024, com um pico de 3,4% em 2021. Em contraste, as bandas masculinas sofreram uma queda expressiva de 51,6% para 18,9% – uma redução de 64%. Apesar dessa diminuição, o número de bandas masculinas ainda supera em aproximadamente 9,5 vezes o de bandas femininas, evidenciando a persistente desigualdade. Paralelamente, os grupos mistos também encolheram, de 14,6% em 2016 para 7,1% em 2024.
Um dos movimentos mais marcantes desse período foi a ascensão dos artistas solo. Entre 2019 e 2020, as mulheres solistas cresceram de 22,1% para 28,3% – um aumento de 28%, o primeiro dessa magnitude desde 2016. No entanto, os homens solistas registraram um crescimento ainda mais expressivo, saltando de 31,6% para 45,3% no mesmo período, com incremento de 43%.
Embora o aumento de artistas solistas possa sugerir uma aproximação da equidade, a realidade por trás desses números é mais complexa. Os dados seguintes revelam que a distribuição dos integrantes individuais nos atos musicais evidencia a persistência de desigualdades estruturais na ocupação dos palcos.
Até agora, os dados apresentados referem-se aos atos musicais, conforme explicado na metodologia. No entanto, desde o início deste estudo — e de forma ainda mais evidente após a pandemia —, percebe-se que muitos festivais têm priorizado a inclusão de artistas solo mulheres em maior número, enquanto os grupos masculinos permanecem dominantes. Muitas vezes, essa estratégia é apresentada como um avanço em diversidade ou até mesmo equidade. Porém, ao analisarmos os integrantes individuais de cada ato musical, fica evidente que as mulheres continuam sendo minoria nesses espaços.
Essa abordagem metodológica, aplicada desde 2020, será mantida em estudos futuros para oferecer um panorama mais preciso sobre a diversidade nos palcos dos festivais de música. Ao individualizar a contagem de artistas, a disparidade de gênero se torna ainda mais evidente do que na análise baseada apenas em atos musicais. Por exemplo, em 2024, 35,6% dos atos musicais foram compostos exclusivamente por mulheres, mas a participação feminina, quando analisada individualmente, foi de apenas 26,7%. As pessoas não-binárias, por sua vez, representaram apenas 0,2%.
Essa disparidade entre os dados de atos musicais e a contagem individual de artistas também se reflete na análise de festivais específicos. Comparando os percentuais de atos musicais com a análise individual dos integrantes, apenas dois festivais mantiveram uma equidade de gênero superior a 50% em ambas as abordagens: No Ar Coquetel Molotov (53%) e CarnaUOL São Paulo (50%). O Nômade Festival (55%), que não atingiu esse equilíbrio ao considerar os atos musicais, conseguiu o palco mais igualitário ao analisarmos os integrantes individualmente. Já festivais como CoMA e Sarará, que tiveram uma distribuição equilibrada entre os atos musicais, registraram percentuais menores de participação feminina quando analisados individualmente, alcançando 34% e 39%, respectivamente.
Dos 31 festivais originalmente previstos para análise, apenas 13 foram realizados em 2020, devido às restrições impostas pela pandemia de COVID-19. Nesse cenário limitado, somente o No Ar Coquetel Molotov alcançou a paridade de gênero, com 57,6% de participação feminina, considerando atos musicais compostos exclusivamente por mulheres, sejam solistas ou grupos. Esse dado evidencia não apenas os desafios estruturais das curadorias, mas também a precariedade de oportunidades para artistas femininas em um contexto marcado por profundas adversidades.
Em 2021, com a retomada gradual dos eventos, observou-se uma tímida melhora. Dos 13 festivais analisados, quatro superaram a marca de 50% de participação feminina, incluindo solistas e grupos.
Se entre os festivais tradicionais a equidade de gênero ainda caminha de forma desigual, entre os eventos surgidos após a pandemia há cenários contrastantes. Nove festivais que realizaram suas primeiras edições entre 2022 e 2023 foram analisados separadamente, revelando tanto avanços significativos quanto a perpetuação de padrões excludentes.
O Presença Festival, realizado no Rio de Janeiro, se destacou pelo compromisso contínuo com a representatividade feminina. Em sua estreia, em 2022, alcançou 75% de participação de mulheres, percentual que caiu para 50% em 2023, mas atingiu 100% em 2024. Além disso, todas as edições do festival tiveram predominância de artistas negras, reforçando a importância da interseccionalidade na curadoria.
Por outro lado, a ausência de mulheres ainda é uma realidade em alguns festivais recentes. O Plantão Festival, voltado para o rap, estreou em 2023 sem nenhuma artista mulher em sua programação. Em 2024, a participação feminina foi de apenas 10,5%, mantendo um cenário de forte desigualdade. O evento foi transmitido pelo canal do YouTube PodPah, um dos maiores do Brasil, com mais de 8 milhões de inscritos, ampliando ainda mais o impacto dessa falta de diversidade.
Já o The Town, festival criado e produzido pela Rock World — empresa da família Medina e da gigante Live Nation —, estreou em 2023 e seguirá a mesma periodicidade do Rock in Rio, ocorrendo em anos alternados. Em sua primeira edição, o megafestival registrou uma participação feminina de 42,5%, um percentual superior ao do Rock in Rio 2024, que foi de 30,4%.
Em 2023, a participação feminina nos festivais atingiu 40,9%, o maior percentual desde 2016. Esse resultado foi diretamente influenciado pela programação do Rock The Mountain, realizado em Petrópolis (RJ), cuja edição contou exclusivamente com atos musicais com pelo menos uma mulher. No estudo, foram sistematizadas 88 apresentações: 91% de artistas solistas, 7% de grupos inteiramente femininos e 2% de grupos mistos. Considerando apenas solistas e grupos femininos, o percentual alcançado foi de impressionantes 98%.
O Rock The Mountain teve sua primeira edição em 2013 e, após uma pausa em 2016 e 2017, retornou em 2018 com uma participação feminina de 16,8%. Esse número cresceu progressivamente ao longo das edições e atingiu seu pico em 2023, como mencionado.
A curadoria do festival foi amplamente celebrada por artistas, público e pelo mercado musical. Além disso, a produção do evento anunciou seu compromisso em manter a equidade de gênero nas edições futuras. No entanto, em 2024, a participação feminina caiu para 45%, uma porcentagem que, embora próxima de um cenário de equidade, ainda está bem distante dos mais de 95% alcançados em 2023.
Ano passado, em 2024, alguns festivais se destacaram por uma participação feminina expressiva, ultrapassando a marca de 50%. O CarnaUOL São Paulo e o No Ar Coquetel Molotov lideraram com 57,1%, seguidos pelo Suíça Bahiana (54,5%) e CoMA (53,2%). Eventos como Sarará (50%) e Rec-Beat Festival (47,8%) também registraram percentuais elevados.
Entre esses festivais, o No Ar Coquetel Molotov se consolidou como um dos mais consistentes na promoção da diversidade, apresentando crescimento contínuo na representatividade de artistas mulheres ao longo dos anos. Outro exemplo é o brasiliense Favela Sounds, que não aconteceu em 2024, mas desde sua primeira edição em 2016 mantém um compromisso com a inclusão, garantindo não apenas um maior equilíbrio de gênero, mas também uma presença significativa de artistas negros, tornando-se um modelo de diversidade entre os festivais analisados.
No entanto, apesar desses avanços, muitos festivais ainda reproduzem padrões históricos de exclusão. Em 2024, o Abril Pro Rock não contou com nenhuma mulher em sua programação, enquanto o Planeta Atlântida teve apenas 12,1% de participação feminina. Outros festivais, como STL Festival (16,7%), Vaca Amarela (18,9%), Goiânia Noise (20%) e Rock in Rio (30,4%), reforçam que, mesmo com alguns avanços, a equidade de gênero nos eventos musicais ainda está longe de ser uma realidade.
Desde 2016, os festivais Abril Pro Rock e João Rock (que tiveram edições com 0% de participação feminina em 2024, 2018 e 2017, e em 2020 e 2016, respectivamente) foram os que mais apresentaram esse cenário em seus palcos. Também se destacam negativamente o Porão do Rock (2016) e o Goiânia Noise (2018). Entre 2016 e 2024, apenas o João Rock ultrapassou 30% de participação feminina, atingindo 32% em 2023 e 30,8% em 2024.
Todos esses festivais têm, no mínimo, 20 anos de existência e, apesar da forte identidade com o rock, também abrem espaço para outros gêneros musicais. O João Rock, por exemplo, tem ampliado sua proposta e se tornado cada vez mais multigênero. No entanto, essa trajetória não tem se refletido na participação feminina em seus line-ups. A exclusão histórica das mulheres nesses festivais segue sem justificativas claras por parte de suas curadorias.
O Abril Pro Rock, tradicional festival de Recife, registrou sua maior participação feminina em 2019, quando alcançou 26%, impulsionado pela “Noite das Minas” – uma das três noites do evento dedicada a mulheres, seja na forma de solistas ou bandas. O pôster da edição, criado pela artista Hallina Beltrão, reforçou esse posicionamento, e a principal patrocinadora, a Pitú, produziu 3.000 latas de cachaça com a arte da campanha.
Na época, o curador Paulo André afirmou que a iniciativa foi “uma opção política do festival”, ressaltando a importância de fortalecer o protagonismo feminino diante do cenário conservador e dos retrocessos no Brasil. Contudo, essa ação não se traduziu em uma mudança duradoura. Após 2019, a participação de atos musicais compostos exclusivamente por mulheres caiu progressivamente, atingindo 0% em 2024.
Na edição de 2024, o line-up do Abril Pro Rock apresentou um cenário marcado por uma forte predominância masculina: 80% das atrações foram bandas exclusivamente masculinas ou solistas homens, enquanto apenas 16% foram bandas mistas – aquelas com pelo menos uma integrante mulher. Analisando os membros individuais, o festival contou com 94 homens e apenas 4 mulheres, o que equivale a aproximadamente 23,5 homens para cada mulher.
O festival anunciou, em seu perfil oficial no Instagram, que não haverá edição em 2025, tratando-se apenas de uma pausa e não do encerramento do evento.
O Goiânia Noise nunca ultrapassou 9% de participação feminina entre 2016 e 2023, apresentando um histórico inconsistente. No entanto, de 2023 para 2024, houve um crescimento expressivo, de 3% para 20% — um aumento de 567%. Ainda não está claro se essa mudança reflete uma nova tendência ou se foi apenas pontual.
Para a edição de 2025, que marca os 30 anos do festival, a programação ainda não foi divulgada.
O Porão do Rock, tradicional festival de Brasília, também apresenta uma participação feminina instável. Em 2020, na edição online, o percentual de mulheres cresceu, sugerindo uma possível mudança. No entanto, em 2023, a presença feminina caiu de 23% (2021) para 15%.
O festival é organizado pela Associação de Educação, Esporte, Cultura e Economia Criativa (AECEC), também conhecida como ONG Porão do Rock. A entidade possui mais de 20 anos de atuação e experiência na gestão de recursos federais diretos, convênios e emendas parlamentares para o financiamento de seus projetos.
Para 2025, a produção promete a maior edição desde 1998, com três palcos simultâneos, dois dias de evento e mais de 30 atrações, em uma estrutura de 30 mil m² no estacionamento da Arena BRB. Até o momento, foram anunciadas 14 atrações, das quais apenas duas contam com mulheres: a banda argentina Fin Del Mundo e a brasileira The Mönic, que atualmente tem uma formação totalmente feminina.
O João Rock, um dos maiores festivais do Brasil, atrai cerca de 70 mil pessoas por edição e tem sua programação transmitida por grandes veículos como os canais BIS e Multishow. Apesar desse alcance, o festival de Ribeirão Preto, que completou 20 anos em 2023, carrega um histórico de exclusão feminina.
Em 20 edições do João Rock, seis não tiveram nenhuma mulher no line-up: 2002, 2003, 2011, 2014, 2016 e 2020 – sendo que, nesta última, Pitty e Bia Ferreira participaram apenas de entrevistas. Em outras seis edições (2004, 2005, 2008, 2015, 2017 e 2019), Pitty foi a única mulher da programação. Casos semelhantes ocorreram em 2006, com Rita Lee como única artista feminina, e em 2007 e 2018, quando Pitty foi a única mulher solista, embora Anelis Assumpção e Chiara Civello tenham participado do show coletivo Refavela 40 em 2018.
Lurdez da Luz foi a única solista feminina em 2012 e 2013, mas acompanhada da banda Aláfia. Já em 2009 e 2010, apenas duas mulheres estiveram no line-up inteiro: Pitty e Mallu Magalhães em 2009, e Pitty e Rita Lee em 2010.
Em 2023, o festival criou o palco Aquarela, dedicado exclusivamente a artistas mulheres, o que contribuiu para a participação feminina ultrapassar 30% pela primeira vez, chegando a 32%. No entanto, o palco principal, o Palco João Rock, continuou praticamente restrito a homens. A única mulher a se apresentar nele foi Pitty, às 17h50.
Já em 2024, a participação feminina caiu para 30,8%. As únicas mulheres no palco principal foram Marina Sena, às 15h40, e Pitty, que encerrou o evento ao lado de Emicida. Para 2025, nenhuma mulher foi escalada para esse palco.
Uma ação semelhante ocorreu no Rock in Rio 2024, com a criação do “Dia Delas”, promovido como um marco de representatividade. No entanto, a participação feminina no festival como um todo foi de apenas 30,4%, evidenciando que iniciativas isoladas não são suficientes para alterar o cenário estrutural de sub-representação das mulheres nos grandes festivais.
O que se percebe, tanto no caso do Rock The Mountain, do João Rock e do Rock in Rio, é que mudanças estruturais não têm sido adotadas. A criação de palcos específicos ou campanhas de marketing voltadas à equidade de gênero parecem funcionar mais como estratégias de ativação de marca do que como compromissos reais com a inclusão. Sem medidas consistentes e transparentes, esses festivais seguem reforçando desigualdades históricas na cena musical.
O fato de os festivais, mesmo após a pandemia, continuarem sendo uma opção de entretenimento altamente consumida nos ajuda a entender que a busca por um ambiente culturalmente diverso tem se tornado cada vez mais desejada pelas pessoas que apreciam esses espaços. A maioria dos palcos dos festivais analisados neste estudo contribuiu para contar e construir a história da música brasileira, além de popularizar grandes vozes. Por isso, muitos deles se consolidaram não apenas como uma marca ou evento, mas também como parte importante da vida das pessoas. Portanto, é essencial que esses palcos reflitam e comuniquem a diversidade do País e de sua música, ressoando com o público.
Os dados sistematizados e analisados indicam que a participação das mulheres nos festivais está crescendo, refletindo uma preocupação crescente de diferentes curadorias e produções. No entanto, ainda estamos longe de alcançar um cenário de total igualdade. Embora os números mostrem um progresso promissor, eles também evidenciam a persistente disparidade de oportunidades entre homens e mulheres, com algumas curadorias ainda ignorando o trabalho das mulheres durante seus processos de contratação. Ou seja, é importante celebrar o copo meio cheio, mas não esquecer que ele segue meio vazio há muito tempo e que estamos com sede.
É necessário conceder às mulheres — todas aquelas que escolheram a música como profissão, que dedicaram horas para se aperfeiçoar e que enfrentam um caminho de concessões e renúncias, distinto do dos homens — a realidade material de uma profissão sustentável. É urgente que se ofereçam, não apenas visibilidade pontual, mas também os espaços para que possam exercer essa profissão a longo prazo.
Logo, criar line-ups que não sejam apenas diversos, mas verdadeiramente inclusivos, vai muito além de uma ação simbólica ou de marketing. É reconhecer que os festivais são parte de uma cadeia produtiva lucrativa e influente, que envolve grandes conglomerados comerciais como patrocinadores, e, portanto, têm responsabilidade sobre como as oportunidades de trabalho são distribuídas. A indústria musical historicamente falhou e continua falhando ao permitir que o potencial criativo e de carreira de parte dessa cadeia continue sendo limitado pela misoginia, pelo racismo e pela LGBTfobia.
Há uma necessidade urgente de um plano de ação sério para confrontar, desafiar e legislar sobre as condições desiguais apresentadas neste estudo.
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