Por Manuela Ferreira
Leia a edição de março/23 da Revista E na íntegra
A Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo executava os primeiros acordes da peça O Último Tango em Vila Parisi, em 1987, quando uma cena impensável, ainda que ensaiada, ocorreu diante do público: em movimentos rápidos e precisos, o regente se dirigiu à violinista Chang Chung Mei e a tirou para dançar. A musicista reagiu com surpresa, levantou-se e, sem que os demais instrumentistas parassem de tocar, deu início à coreografia conduzida pelo maestro – o compositor, escritor e professor Gilberto Mendes (1922-2016). A ação cênica teve ainda a participação do violinista e ator Jean Pierre Kaletrianos. Os três dançaram juntos, mas, aos poucos, simularam também uma disputa com arcos fazendo as vezes de espadas, conferindo ao espetáculo as nuances dramáticas características da dança e do gênero musical tradicional da Argentina. Por fim, quando o trio se desfez e os violinistas retornaram às suas posições, foi a vez do regente reassumir a batuta.
Tal inventividade em cena é uma das características que fazem do compositor um dos mais importantes nomes da música contemporânea erudita de vanguarda, no Brasil e no exterior. Notável pela abertura a diversos sons e estilos musicais, Gilberto Mendes esteve à frente da transformação da música de concerto no Brasil ao criar, em 1962, o Festival Música Nova – que permanece como a mais longeva mostra internacional de música contemporânea das Américas. Foi também signatário do Manifesto Música Nova, publicado em 1963 pelo compositor Rogério Duprat (1932-2006). Sob forte influência do movimento concretista, o texto defendia uma posição estética oposta ao nacionalismo, à época predominante nas orquestras e escolas de música brasileiras.
“A atuação de Gilberto Mendes não se limitou à música: seu interesse por literatura, teatro, cinema, política, além de sua relação visceral com a cidade de Santos e sua atividade incansável como agitador e organizador cultural, estão incorporados em sua música e são fatores importantes de sua grande riqueza e originalidade”, definiu o escritor e professor Lorenzo Mammì, curador da exposição Gilberto Mendes 100, que celebra o centenário do compositor [Leia mais em Compondo novos mundos].
Dor e melodia
Aquela apresentação músico-teatral marcada pelos passos de tango fez parte da edição do Festival Música Nova de 1987, e foi, também, a estreia de um dos trabalhos mais aclamados da trajetória do artista. Além da citação ao filme O Último Tango em Paris (1972), do cineasta italiano Bernardo Bertolucci (1941-2018), Gilberto Mendes elaborou o título da sua composição comovido pelo noticiário socioambiental. Vila Parisi, antigo bairro operário de Cubatão (SP), na Baixada Santista, pertencia ao “Vale da Morte” – como ficou conhecida mundialmente a zona ao redor do polo industrial do município, declarada uma das regiões mais poluídas do planeta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na década de 1980.
Em sua autobiografia Uma Odisséia Musical: Dos Mares do Sul à Elegância Pop/Art Déco (Edusp, 1994), o músico escreveu: “Misto de abertura trágica à la Brahms e divertimento à la Mozart, [O Último Tango em Vila Parisi] é evidentemente uma música de protesto. Não sou propriamente um compositor de música politicamente engajada, como o foram, por exemplo, Hanns Eisler (1898-1962) e Cornelius Cardew (1936-1981). Mas sou uma pessoa politicamente engajada. E minha música, sempre que tomo uma posição política, reflete, em parte, essa atitude”.
Lirismo iconoclasta
Não era a primeira vez, contudo, que o compositor olhava para a Baixada Santista com especial preocupação e afeto. Em Vila Socó meu amor (1984), que figura entre suas peças para coro mais conhecidas, Gilberto Mendes homenageou as vítimas do incêndio que devastou a localidade cubatense (atual Vila São José), em fevereiro de 1984, causando a morte de 93 pessoas. Diz a letra: “Não devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó, transformados em cinzas, lixo em pó. A tragédia da Vila Socó mostra como o trabalhador é explorado, esmagado sem nenhum dó”.
Em depoimento ao pianista, professor e amigo José Eduardo Martins, publicado na edição de dezembro de 1991 da revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP), Gilberto Mendes detalhou suas referências. “Com minha música, pretendi ter feito alguma coisa in memoriam dos mortos por aquela verdadeira bomba de Hiroshima que foi a explosão da Vila Socó. Por isso a lembrança, no título, do [diretor francês] Alain Resnais (1922-2014), da imensa piedade pelo destino dos homens, que seu extraordinário filme [Hiroshima meu amor (1959)] comunica. Meu colega Celso Delneri dirigia um coral feminino no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP e me havia pedido uma música. O horror diante da terrível notícia deu-me o impulso”, comentou Mendes.
Odisseias musicais
Gilberto Mendes começou a estudar música aos 19 anos, no Conservatório Musical de Santos. Foi aluno da pianista Antonietta Rudge (1885-1974) e recebeu orientações profissionais do compositor Claudio Santoro (1919-1989). Em 1949, compôs sua primeira obra para voz e piano a partir do poema Episódio, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Seis anos depois, lançou Peixes de Prata (1955), com poesia de Antonieta Dias de Moraes (1916-1999), também para canto e piano. Ao se vincular ao Manifesto Música Nova, passou a ser porta-voz da poesia concreta paulista, encabeçada pelo grupo Noigandres, composto pelos poetas Haroldo de Campos (1929-2003), Décio Pignatari (1927-2012), Augusto de Campos e, posteriormente, por Ronaldo Azeredo (1937-2006) e José Lino Grünewald (1931-2000).
É nesse período que ganha reconhecimento como um dos pioneiros, no Brasil, no campo da música concreta e da música aleatória, no qual elementos da composição são deixados ao acaso – e cujo expoente foi o compositor e teórico musical norte-americano John Cage (1912-1992). Com Moteto em Ré Menor (1967), rebatizado como Beba Coca-Cola, levou o poema vanguardista de Décio Pignatari para vozes corais – no encerramento da obra, o coro declama a inusual “cloaca”, última palavra dos versos concretistas. Outras composições do período, como Santos Football Music (1968) e Vai e vem (1969) também despontaram pela atitude crítica, contestatória e libertária.
À frente do futuro
Para o pianista, compositor e arranjador André Mehmari, alguns aspectos da trajetória de Gilberto Mendes são proeminentes a ponto de dialogar com o seu próprio trabalho, influenciando-o. “Há inquietude musical, vontade de procurar livremente caminhos musicais que não se enquadrem em estéticas muito fechadas. Percebo que nele não há julgamentos excessivos. Há curiosidade e vontade de aprender. Existe uma criança ali dentro, um olhar puro diante das coisas e dos sons, algo que para muitos se perde ao longo da vida – essa relação direta com a matéria do som e com a própria criação musical”, analisa o artista, que participou do Festival Música Nova pela primeira vez aos 13 anos, época em que, prodigiosamente, começava a compor. “Podemos ver que Gilberto Mendes, pela sua obra, nunca firmou o barco em um único cais, navegando por muitos mares diferentes”, pontua.
A pianista e professora Mirna Azevedo, por sua vez, considera que Mendes desbravou caminhos significativos para a formação de novos compositores e intérpretes ao contribuir para a expansão de perspectivas expressivas, especialmente através de uma aproximação irrestrita com o pensamento artístico de qualquer natureza. “Sua concepção musical destemida e progressista, que busca extrapolar os limites do tradicional, do convencional, ou mesmo do estereótipo da música erudita, pode ser considerada como fonte de possibilidades criativas que instigam não apenas a composição e a performance, mas também, a apreciação musical”, reflete a docente.
Dentre as facetas da profícua trajetória do compositor, Mirna Azevedo destaca a abordagem simples, extrovertida, calorosa, participativa e desmistificada da música erudita trazida por Mendes. “Em contínuo diálogo com outros meios de expressão artística, como artes visuais, literatura, cinema, teatro etc., [ele] levou o fazer musical a limites criativos singulares”, acrescenta.
Em cartaz no Sesc de Santos (SP), terra natal de Gilberto Mendes, exposição celebra a memória e revisita os caminhos experimentais do artista
Gilberto Mendes 100, exposição em cartaz no Sesc Santos, litoral do estado, revisita, ao longo de cinco áreas temáticas (ou ilhas), diversos aspectos da vida e obra do artista, sob curadoria de Lorenzo Mammi. O primeiro espaço, dedicado a Santos Football Music, aprofunda-se em uma de suas composições experimentais mais complexas e ambiciosas; a segunda ilha aborda a relação com a cidade de Santos, terra natal do músico; o terceiro recorte é voltado para as composições experimentais da década de 1960, à exploração de grafismos musicais e ao diálogo com a poesia concreta; na quarta área da mostra, o foco é a relação de Gilberto Mendes com o teatro, como compositor de música de cena e, também, como criador daquilo que ele próprio gostava de definir como “música-teatro”.
Por fim, na quinta ilha, a relação do maestro com a música para o cinema é examinada a partir de uma de suas composições mais importantes: Ulysses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour (1988). As diferentes áreas são conduzidas por depoimentos do próprio Gilberto Mendes, reunidos pelo filho Carlos Mendes – e acessíveis em telas distribuídas no espaço expositivo.
SANTOS
Curadoria de Lorenzo Mammì. Até 30/4, de terça a sexta, das 10h às 21h30, sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Livre. GRÁTIS.
Música Nova, uma homenagem
O programa exibe o concerto de despedida do Ensemble Música Nova, gravado no Sesc Santos, em 2017, sob a regência do maestro norte-americano Jack Fortner, com um repertório que homenageia o compositor Gilberto Mendes e o Festival Música Nova. 4/3, às 22h
Gilberto Mendes e a Música Nova (2017)
O documentário dirigido por Marcelo Machado homenageia o compositor com depoimentos de representantes da música instrumental contemporânea, além de peças relevantes que recuperam sua importância na cena artística. 18/3, às 22h
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